quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Schopenhaur como educador


Esse foi o primeiro perigo à sombra do qual Schopenhauer cresceu: isolamento. O segundo é: desespero da verdade. Este perigo acompanha todo pensador que toma seu caminho a partir da filosofia kantiana, pressuposto que seja um homem vigoroso e inteiro no sofrer e desejar, e não apenas uma sacolejante máquina de pensar e de calcular. Mas sabemos todos muito bem que vergonhosa é a situação, precisamente quanto a esse pressuposto; e até mesmo me parece, de modo geral, que somente em pouquíssimos homens Kant atuou vivamente e transformou sangue e seivas. Aliás, como se pode ler por toda parte, desde o feito desse tranquilo erudito deveria ter irrompido uma revolução em todos os domínios do espírito; mas não posso acreditar nisso. Pois não o vejo claramente em homens que antes de tudo teriam de ser eles mesmos revolucionários, antes que quaisquer domínios inteiros pudessemos sê-lo. Mas, tão logo Kant comece a exercer um efeito popular, nós o perceberemos na forma de um corrosivo e demolidor ceticismo e relativismo; e somente nos espíritos mais ativos e mais nobres, que nunca aguentaram permanecer na dúvida, apareceria, por Heinrich von Kleist, como efeito da filosofia kantiana: "Há pouco", escreve ele, certa vez, a seu modo cativante, "travei conhecimento com a filosofia kantiana, e agora tenho de comunicar-te um pensamento tirado dela, pois não posso temer que ele te abalará tão profunda, tão dolorosamente quanto a mim. - Não podemos decidir se aquilo que denominamos verdade é verdadeiramente verdade ou se apenas nos parece assim. Se é este último, então a verdade que juntamos aqui não é mais nada depois da morte e todo esforço para adquirir um bem que nos siga até mesmo no túmulo é vão. - Se a ponta desse pensamento não atinge teu coração, não sorrias de um outro que se sente profundamente ferido por ele, em seu íntimo mais sagrado. Meu único, meu supremo alvo foi a pique, e não tenho mais nenhum." Sim, quando voltarão os homens a sentir dessa forma kleistiana, natural, quando reaprenderão a medir o sentido de uma filosofia em "íntimo mais sagrado"? E no entanto isso é necessário antes que se possa avaliar o que pode ser, para nós, depois de Kant, precisamente Schopenhauer - ou seja, o guia que conduz, da caverna do desânimo cético ou da abstinência crítica à altura da consideração trágica, o céu noturno com suas estrelas sobre nós até o infinito, e que conduziu a si mesmo, como o primeiro, por esse caminho. Essa é sua grandeza: ter-se colocado em face da imagem da vida como um todo, para interpretá-la como todo; enquanto as cabeças mais perspicazes não podem libertar-se do erro de pensar que se chega mais perto dessa interpretação quando se investigam meticulosamente as cores com as quais, e a matéria sobre a qual essa imagem está pintada; talvez chegando ao resultado de que é uma tela de urdidura intricadíssima e, sobre ela, cores que são quimicamente insondáveis. É preciso adivinhar o pintor, para entender a imagem - disso Schopenhauer sabia. Mas a corporação inteira de todas as ciências saiu em campo para entender aquela tela e aquelas cores, mas não a imagem; e até mesmo se pode dizer que somente aquele que captou firmemente no olho a pintura universal da vida e da existência se servirá das ciências singulares sem dano próprio, pois sem uma tal imagem de conjunto reguladora elas são malhas que nunca conduzem ao fim e tornam o curso de nossa vida ainda mais confuso e labiríntico. Nisto, como foi dito, Schopenhauer é grande, em perseguir aquela imagem como Hamlet persegue o espírito, sem se deixar distrair, como fazem os eruditos, ou ser emaranhado por uma escolástica conceitual, como é o destino dos dialéticos desenfreados. O estudo de todos os filósofos de compartimento só é atraente por dar a conhecer que estes, no edifício das grandes filosofias, encalham logo naqueles lugares onde é permitido o pró e o contra em termos eruditos, onde é permitido o cismar, duvidar, contradizer, e que com isso eles se furtam à exigência de toda grande filosofia, que, como um todo, sempre diz unicamente: esta é a imagem de toda vida, aprende nela o sentido de tua vida. Ou vice-versa: lê tua vida e entende nela os hieróglifos da vida universal.

Nietzsche

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