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domingo, 31 de julho de 2011

Um erístico engano


Devo confessar-me entre o número das pessoas iludidas.

Entretanto, não o fui por um descuido dentro do debate. Posso dizer que o fui somente antes que o debate se iniciasse.

Esse é o problema da atualidade: o adversário usa de artimanhas erísticas mesmo antes de começar a debater.

O debate a que refiro, assim como o engano em que caí, foi a compra do livro Como vencer um debate sem precisar ter razão, publicado pela Topbooks. O primeiro estratagema usado pela editora é o argumentum ad verecundiam, já que ela atribui a Arthur Schopenhauer um livro de Orvalho de Carvalho. Obviamente que tal argumentum é extremamente eficiente, tanto que eu comprei o livro por querer aprofundar-me na obra do filósofo alemão (além do prazer que tenho em ler suas tiradas de ácido pessimismo). Se eu não compraria um livro de Olavo de Carvalho antes de conhecê-lo, muito menos o faria após.

Bem, no debate dialético que ocorre entre um livro e seu possível leitor, no qual o livro apresenta argumentos favoráveis e contrários à própria compra, saiu vencedora a editora, pois acabei cedendo aos argumentos favoráveis. Todavia, no debate com o livro já comprado, quando passa-se a discutir com o próprio autor, posso dizer que me saí melhor. Ao menos não comprei inadvertidamente seus conceitos.

Posso afirmar que muito disso se deve à falta de tato do Olavo mesmo. Sua nota prévia de dez páginas, nas quais só fala de si mesmo, já deixa o leitor alerta para possíveis enganos travestidos de erudição. Lá pelas cinquenta páginas que se passa à procura de Schopenhaeur, surge essa engenhosa descrição do mesmo: essa alma religiosa e sofredora. Pensei: teria pego um tratado sobre Kierkegaard por engano? Não, eu não estava enganado sobre o livro que tinha em mãos, e também não fui, daí em diante, enganado por ele.

Das duzentas e cinquenta páginas do volume há sim umas cinquenta do próprio Schopenhauer, e todas as outras são de Olavo de Carvalho comentando Aristóteles ou “demonstrando” o quanto Schopenhauer não é aristotélico. Ele poderia ao menos ter se perguntado se Schopenhauer tinha alguma intenção de ser aristotélico.

Corrijo-me: longe de serem todas as páginas escritas por Olavo comentários sobre Aristóteles, e estaria cometendo e sujeito e ser alvo de ampliação indevida: há um enorme espaço dedicado ao combate contra a “esquerda intelectualóide”, à defesa do mccarthismo como verdadeira prática democrática, e de empresas ou indivíduos investigados pelas ditatoriais CPI's do Congresso Nacional.

Em comentários sobre o argumentum ad verecundiam (argumento de autoridade), depois de uma longa nota em que reflete sobre a dificuldade que esquerdistas têm para raciocinar por si mesmos, e sensibilizado pelo fato de, para a “esquerda”, qualquer indivíduo sem nenhuma capacidade intelectual erigir-se a autoridade em qualquer matéria pelo simples fato de ter sido torturado pelo regime militar, escreve: “A autoridade dos poetas varia conforme a época e lugar. Clássicos gregos não exercem em geral, no Brasil de hoje, o menor efeito. Nos meios universitários, é preciso citar Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges ou Nélson Rodrigues (por irônica coincidência, todos conservadores, politicamente).” De fato, que “irônica coincidência” que seu exemplo posterior simplesmente contrarie sua tese! O autor simplesmente faz uma instância, ou exemplum in contrario, de si mesmo.

Porém não se engane o leitor, caindo numa pista falsa, ao acreditar ser isso um símbolo de honestidade de Olavo de Carvalho.

Veja como ele consegue utilizar diversos estratagemas erísticos para “rebater” a refutação do argumento ontológico de Anselmo de Canterbury, feita por Kant:

“(Anselmo) diz, em essência, o seguinte: 'deus é, por definição, o ser perfeito; ora, a inexistência é uma imperfeição; logo, ela não faz parte da natureza de deus'. Segundo Kant, a prova ontológica, sendo a priori, só se refere ao conceito de deus e não implica que o objeto conceituado exista realmente. Dito de outro modo, da análise de um conceito não se pode deduzir a existência de seu objeto. Mas as coisas não são tão simples. Coloco à refutação de Kant as seguintes objeções: 1º A evidência de uma proposição pode ser reconhecida não só pelo sentido de certeza, isto é, subjetivamente, mas também por análise lógica: proposição auto-evidente é aquela que só pode ser contraditada por uma proposição equívoca, isto é, de duplo sentido. 2º logo, um juízo auto-evidente não pode ser hipotético ou puramente formal: é sempre um juízo categórico de alcance ontológico. 3º A proposição “um ser necessário existe necessariamente” é auto-evidente, porque é impossível decidir se sua contraditória é “um ser necessário não existe de maneira necessária” ou “um ser necessário necessariamente inexiste”. 4º Logo, o juízo “um ser necessário existe necessariamente” não pode ser hipotético, não se aplicando portanto, ao caso, a distinção entre “Deus” e “o conceito de Deus”. Fica assim derrubada a objeção kantiana.”

Primeiro estratagema: misto de distinção de emergência e mutatio controversie: o argumento ontológico trata de perfeição, e não de necessidade.

Segundo: manipulação retórica e argumento sofístico: o jogo de palavras é bem lindinho, mas não passa de um jogo. Olavo parte de uma premissa “subentendida” que ninguém comprovou ou aceitou inicialmente: deus é necessário, e esse deus é o cristão. Ele deveria ter demonstrado como chegou a uma conclusão que tornou-se premissa para seus floreios retóricos. Como conheço alguns cristãos, dou-me a liberdade de imaginar o processo:

Um ser necessário é aquele do qual se necessita,

Eu necessito de deus; logo, ele é necessário.

O deus em que acredito é o cristão;

logo, os outros deuses não são necessários.

Conclusão: o deus necessário é o deus cristão.

Lembrando que essa lógica do “argumento auto-evidente” pode ser usada para afirmar ou refutar qualquer coisa. O Alcorão diz que atribuir um filho a deus é loucura, e que o fato de deus não ter nenhum filho é uma verdade auto-evidente. Devo então converter-me ao Islã?

Terceiro: falsa proclamação de vitória. Olavo de Carvalho derruba por terra a refutação ao argumento ontológico, aos seus próprios olhos. (Por que será que Craig não pensou nisso antes?)

Para não escrevermos um texto muito longo, atenho-me a outro exemplo aberrante de lógica:

Schopenhauer faz alusão à frase Quid est veritas?, atribuída a Pilatos, Olavo de Carvalho acresce uma nota comedida e necessária ao bom andamento do livro:

“Não devemos esquecer que, ao fazer essa pergunta com ar tão sábio, o pedantíssimo Pôncio tinha a verdade bem diante dos olhos da cara, e não a reconheceu.”

Por óbvio, um prisioneiro ferido que se nega a defender-se é também uma verdade auto-evidente. Sem contar que um livro de Schopenhauer não poderia passar sem uma apologia ao cristianismo. Na próxima vez, a Topbooks poderia contratar Silas Malafaia para comentar O Anticristo, de Nietzsche.

Aliás, a elegância dos argumentos ad hominem, de rótulo odioso e ad personam de Olavo são um capítulo à parte.

Para um Olavo de Carvalho que se arroga defensor da racionalidade, sua última frase é emblemática: “É sempre a tentação da Árvore da Ciência que leva o homem a perder a Árvore da Vida.”

Nada mais adequado para um filósofo do conhecimento, que despende grande volume dos comentários a um livro pretensamente de Schopenhauer a combater o “irracionalismo” do filósofo alemão.

Socó Pombo

domingo, 29 de maio de 2011

Gritos inaudíveis que ressoam no âmago


No seu Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer, ao discorrer sobre arte, toma como exemplo a escultura clássica Laocoonte, e discorre sobre as motivações do artista para esculpir sua figura central sem uma expressão de quem grita: “Nas artes plásticas, a representação do grito em si mesmo é completamente deslocada, completamente impossível; por conseguinte, a condição do grito – isto é, essa abertura violenta da boca que transtorna todos os traços e todo o resto da expressão – tornar-se-ia realmente incompreensível, visto que desta maneira e decididamente à custa de muitos sacrifícios apenas se representaria o meio, enquanto que o fim verdadeiro, o próprio grito e o seu efeito sobre a sensibilidade, permaneceria por exprimir.”

Teria Edvard Munch lido estas palavras? Teria encarado-as não como uma verdade, mas como um desafio para o artista? Teria passado os dias e as noites imaginando uma “abertura violenta da boca que transtorna todos os traços e todo o resto da expressão”? Não sei. Entretanto, tenho certeza de que Schopenhauer teria mudado de opinião se tivesse visto o quadro O Grito (Skrik), do pintor norueguês, desde que o filósofo alemão abrisse mão de seu classicismo.

Datado de 1893, a pintura símbolo do Expressionismo parece prever o século vindouro, o século da massificação. Massificação da tecnologia, das linhas de produção, do consumo e da guerra. Massificação da morte nas trincheiras, gulags e campos de concentração. Massificação do pensamento.

O pintor escreveu a respeito da experiência que o inspirou a pintar sua obra-prima, nascida O Desespero, na qual a figura central era um homem de cartola, sendo esta versão seguida por diversas outras, até a figura andrógena totalmente desfigurada da versão mais popular:

“Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol – o céu ficou de súbito vermelho-sangue – eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta – havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade – os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti o grito infinito da Natureza.”

A figura humana aparece “completamente deslocada”, a abertura de sua boca transtorna a própria natureza à sua volta, enquanto a doca de Oslofjord e os homens que passam permanecem indiferentes.

A impossibilidade da pintura de exprimir o grito é exatamente onde reside a força do quadro, sua poderosa carga dramática. O grito mais desesperado passará sem que ninguém esteja atento ao seu barulho. Haverá o barulho do trânsito, das telecomunicações, das máquinas, metralhadoras e bombas. O barulho ensurdecedor da propaganda a determinar como deve comportar-se o homem moderno. Diante disso, o homem que se entende indivíduo deslocado das massas gritará mais e mais, e mais e mais será ignorado.

Contudo, tal grito não cessará, pois é um grito da vontade, um terrível grito da natureza. Creio que Schopenhauer jamais teve acesso a uma obra que tivesse tanta relação com sua teoria estética, que exprimisse tão grandiosamente a marca do gênio, esse ser capaz de exprimir não um conceito, mas uma ideia. Uma ideia que pudesse resumir todo um século por vir, embora não pudesse jamais ser resumida apenas a esse século. Uma ideia que ecoaria ainda por milênios.

Era necessária uma forma de arte absolutamente silenciosa para que esse grito desesperado pudesse ser ouvido.

Socó Pombo

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Estorvos de Chico Buarque


Entre os gargalos para a criação literária, há dois que podem ser indicados como os piores estorvos: nomes de personagens e soluções de continuidade.
Sobre o primeiro não há muito a esclarecer para o não escritor: se já há uma dificuldade em nomear um filho, imagine dar nome a dezenas, sem se repetir e procurando associar o nome à personalidade e ainda ser fiel à geografia e à história.
As soluções de continuidade têm a função de ligar os fatos, para transformar contos isolados em romance. O escritor tem ideias geniais a todo momento. O problema é que, via de regra, as grandes ideias são para grandes momentos, momentos de clímax dramático. Ocorre que a narrativa longa não é uma linha reta, mas um movimento de onda, e não é possível manter a história sempre na crista da onda. Entre um moinho de vento e a nomeação de Sancho Pança a governador deve haver uma ligação, uma transição em geral chata de escrever (e por isso mesmo o autor sempre acha que será chata também de ler, tentando resumi-la ao máximo).
Para estes dois problemas Chico Buarque conseguiu soluções fáceis e nada ortodoxas para seu romance Estorvo: a abolição de nomes e soluções de continuidade.
Mesmo o estorvo – digo, personagem – principal não tem um nome. São minha mãe, minha irmã, meu cunhado, a magrinha, a índia, o negro com sunga que imita uma onça, o ex-pugilista, os irmãos gêmeos, o delegado, o caseiro, a magrinha, o amigo, a irmã do colega que dava festas, a menina. Apenas o copeiro em determinado momento recebe um nome, a aqui Buarque pretende mostrar que pode ser criativo também nessa matéria: Hidrólio.
Os capítulos também se sucedem sem qualquer ligação. Há uma ordem cronológica, mas a narrativa começa e termina, não apenas em cada capítulo, como em todo o conjunto, sem que o leitor saiba de onde veio ou para onde vai.
Contudo, encarar a ausência de nomes e ligações apenas como uma cômoda solução para a escrita seria uma análise superficial e mesmo uma simplificação leviana.
Analisando mais cuidadosamente, podemos perceber que não foi a preguiça ou um apertado prazo de entrega que levou o autor a criar assim sua história. Há na ausência de nomes um distanciamento do personagem, uma ausência de emotividade que nos leva a ignorar o absurdo de sua existência. Ora, esse mesmo distanciamento há entre o personagem e sua mãe, sua irmã e os demais. Não há nomes que os identifiquem porque não há uma identificação. Na verdade, sequer o personagem consegue identificar-se a si ou consigo mesmo.
Essa falta de identificação amplia o efeito do absurdo da narrativa. Os fatos que vão nos estorvando sucessivamente estorvam ainda mais por não conseguirmos reconhecer a realidade daqueles que os vivenciam.
Em determinados momentos sequer sabemos se é o sonho ou a realidade que estorva. E o próprio personagem que narra em primeira pessoa no presente (fato que deveria nos aproximar do narrador, mas não acontece) também sente o mesmo. E eis o grande trunfo: fatos em si terríveis nos aparecem como amiúde as notícias de jornal: sem qualquer sentimento de empatia, como advindos de uma outra realidade.
Realiza-se uma crítica social não apenas das situações limite entre os estratos sociais. Uma crítica ao nosso modo vazio de viver, numa anestesia coletiva que bloqueia mesmo nossos instintos mais primevos, como o sexual e o de sobrevivência.
Estorvo é um perfeito emblema de nossa sociedade. O absurdo torna-se cotidiano e já não nos chocamos. Anônimos, já não conseguimos sentir o que o outro sente, ou sequer compreender o que nós mesmos sentimos. Mesmo que saibamos seu nome.


Socó Pombo

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A inocência baleada do coronel Nascimento


A esperança foi baleada e respira com a ajuda de aparelhos na UTI. Torcemos para que ela abra os olhos, sem perceber que são nossos olhos que precisam abrir-se.
Tropa de Elite 2 é uma poderosa metáfora. E também uma tese de sociologia:
O sistema estende seus tentáculos a uma distância muito maior do que podemos captar, e sabe usar tudo que toca, mesmo aqueles que pensam combatê-lo.
Capitão Nascimento, agora coronel, passa por uma jornada que, de tão oposta, é idêntica à de Dom Vito Corleone, que no capítulo final de O Poderoso Chefão descobre que, quanto mais tentamos legalizar nossas ações, mais afundamos no lamaçal de um sistema inerentemente corrupto.
As atuações magistrais do todo o elenco abrilhantam o genial roteiro. Há um duro aprendizado não apenas para Nascimento, como para todos nós. A realidade subjacente estapeia nossas caras e diz: vocês são moleques. Peçam pra sair.
O sistema não tem um comando central. Como a Hidra de Lerna, crescem-lhe novas cabeças à medida que uma é cortada. Seus tentáculos multiplicam-se. Vencê-lo é um trabalho hercúleo.
Devemos deixar de lado o simplismo das ideologias, seja à esquerda ou à direita, e compreender como o sistema funciona em suas mais profundas raízes. Sim, esta obra-prima do nosso cinema é também uma lição.E não são apenas seus personagens que aprendem da forma mais dolorosa.
Socó Pombo

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Considerações sobre os livros eletrônicos

Artigo do Wall Street Journal analisa o mercado editorial do ponto de vista de livreiros e escritores, como pode ser conferido após minhas considerações.
Embora o artigo trate da realidade estadunidense, não é difícil perceber a implicação da entrada do livro eletrônico no mercado brasileiro. Os novos autores, que parecem ter uma capacidade de replicação infinita, costumam tratar o livro eletrônico como o momento da virada que redimirá os estreantes, garantindo-lhes a publicação e o sucesso de vendas. A realidade não é bem essa. O artigo mostra o oposto. Sem uma crítica literária que possa abordar todos os autores estreantes, sem o livro na prateleira pronto para ser folheado pelo leitor, sem os custos do livro físico que exigem da editora uma propaganda ativa, o mercado tende a ser dominado pelos best sellers.
Nos Estados Unidos, os adiantamentos para estreantes estão menores, imagine no Brasil, onde tais adiantamentos nunca existiram? Pior, lá sempre houve uma valorização do autor estreante, uma busca pelo novo escritor da moda, um mercado de livreiros empenhados em procurar novos talentos. Nada disso acontece ou já aconteceu em nosso país. Pelo contrário, as editoras nacionais temem o novo escritor e preferem buscar best sellers internacionais. Os leitores também seguem essa tendência.
Diante de tudo isso, parece que os livros eletrônicos anunciam o fim definitivo das aspirações dos novos escritores.
A não ser que queiram distribuir seus livros gratuitamente na internete.

Socó Pombo


Segue o Artigo por Jeffrey A. Trachtenberg

Quando a agente literária Sarah Yake ofereceu a algumas editoras o romance de estreia de Kirsten Kaschock, chamado "Sleight", ela pensava que seria um sucesso imediato com os editores nova-iorquinos."O projeto dela foi um dos melhores dos últimos dez anos", diz Jed Rasula, que desde 2001 leciona no departamento de letras da Universidade da Georgia. "Eu tinha certeza que ela encontraria uma editora em Nova York."

Mas as grandes editoras da cidade rejeitaram "Sleight", um romance sobre duas irmãs que são treinadas numa arte fictícia. Agora o livro será publicado pela Coffee House Press, uma pequena editora de Minneapolis que ofereceu a Kaschock um adiantamento de US$ 3.500 — uma pequena fração do que as grandes editoras costumavam pagar.

Sempre foi difícil para um autor estreante conseguir publicar seu livro numa grande editora. Mas a revolução digital que está mudando o modelo econômico da indústria editorial tem tido um impacto exagerado na carreira dos escritores.

Por ter preços menores que os de livros tradicionais, muitas edições digitais rendem menos para as editoras. E as grandes varejistas têm comprado menos títulos. O resultado é que as editoras que acalentaram gerações de escritores americanos passaram a fechar menos acordos com escritores estreantes. A maioria dos que conseguem a publicação tem recebido adiantamentos menores.

"Os adiantamentos encolheram e não há tanta gente estreando como antes", diz Ira Silverberg, uma conhecida agente literária. "Estamos todos tentando entender como vai ficar o negócio enquanto ele passa por essa turbulência digital.

"Da mesma maneira que a música barata na internet fez com que menos bandas conseguissem ganhar a vida fechando contratos com gravadoras, à medida que o e-book se popularizar, menos escritores conseguirão se sustentar, dizem editores e agentes. "Em termos de ganhar a vida como escritor, é melhor que você tenha outra fonte de renda", diz Nan Talese, cujo selo Nan A. Talese/Doubleday publica autores como Ian McEwan, Margaret Atwood e John Pipkin.

Em alguns casos, pequenas editoras estão atendendo à demanda e fechando contratos com escritores promissores. Mas elas oferecem em média US$ 1.000 a US$ 5.000 de adiantamento, em comparação com US$ 50.000 a US$ 100.000 que as grandes editores geralmente pagavam por um livro de estreia.

As novas relações econômicas do livro eletrônico mostram bem o problema enfrentado pelos escritores: um livro de capa dura de US$ 28 rende metade disso à editora, e 15%, ou US$ 4,20, para o autor. Em vários acordos de publicação de e-books recentes, um livro digital é vendido por US$ 12,99, rendendo US$ 70% à editora e geralmente 25% do total, ou US$ 2,27, para o autor.

Em resumo: o autor fatura com a venda de um e-book pouco mais da metade do que obtinha com a de um livro de capa dura.O faturamento menor gerado pelos livros digitais é um fenômeno que ocorre ao mesmo tempo em que caem as vendas de livros. As aparentemente infinitas opções de entretenimento criadas pela internet roubaram o tempo que as pessoas costumavam passar lendo. A fraqueza da economia também tem contribuído para esse declínio."Não existe uma geração de leitores hoje em dia que possa sustentar escritores do jeito que os jovens sustentavam J.D. Salinger e Philip Roth quando eles estavam começando", diz Talese, que é casada com o escritor Gay Talese.As vendas de livros chegaram ao auge nos EUA em 2008, com 1,63 bilhão de unidades, excluindo volumes educativos e técnicos, e devem cair para 1,47 bilhão este ano e 1,43 bilhão em 2012, diz Albert Greco, pesquisador do mercado editorial.

Já as vendas de livros eletrônicos estão crescendo rapidamente. Calcula-se que os e-books já respondam por cerca de 8% do faturamento total da venda de livros, ante 3% a 5% um ano atrás. Mike Shatzkin, consultor editorial, calcula que os e-books podem evoluir para 20% a 25% do total de vendas até 2012. "Os livros digitais vão acabar substituindo os livros de papel", prevê Greco.Alguns especialistas no setor editorial dizem que os preços menores dos e-books podem resultar em vendas maiores no futuro. Mas ainda não se sabe se eles vão compensar a perda da receita obtida com os livros de capa dura.

Embora os e-books ainda estejam começando, as editoras afirmam que o adiantamento médio dos livros de ficção já está encolhendo. Para comprar os direitos de publicação e distribuição de um livro, as editoras pagam adiantamentos das futuras vendas do livro. Depois que o livro é publicado, o autor recebe um royalty do qual é descontado o adiantamento. Quando as vendas quitam o adiantamento, o escritor começa a receber uma porcentagem da venda de cada livro.

Sempre vai existir aquele escritor sortudo cujo livro de estreia é disputado pelas editoras. Mas muitos romances de estreia que teriam recebido adiantamentos lucrativos cinco anos atrás passaram a receber US$ 15.000 ou menos atualmente, diz Adam Chromy, um agente literário nova-iorquino. Chromy ficou decepcionado recentemente com a resposta das editoras a um romance de estreia que ele achou muito bom."O nível de exigência aumentou", diz Jamie Raab, editor do selo Grand Central Publishing, da Lagardère SCA, que tem publicado menos livros de estreia que antes. Embora lançar livros de estreia seja um das atividades de maior retorno no mundo editorial, diz Raab, "as editoras estão publicando mais seletivamente, os agentes estão ficando mais exigentes na hora de escolher os clientes e os varejistas estão distribuindo menos títulos".

O e-book é uma boa notícia para alguns. Ele está aumentando a demanda por autores e livros famosos, considerados comerciais, porque muitos de seus leitores tendem a preferir best-sellers com tramas complexas. Diferentemente das livrarias tradicionais, em que um cliente pode descobrir um livro numa prateleira, as lojas de e-books geralmente não são formatadas para permitir que as pessoas achem novos autores, dizem agentes. Os escritores famosos e seus polpudos orçamentos de marketing é que estão conseguindo vender bem nesse novo mercado.

Em julho, a Amazon.com Inc. anunciou que o falecido escritor sueco Stieg Larsson, cujo romance "Os Homens que Não Amavam as Mulheres" abre uma trilogia de livros de mistério, é o primeiro escritor a vender mais de 1 milhão de cópias digitais para o leitor Kindle.

O celebrado escritor americano Jonathan Franzen, que já é considerado um dos principais autores dos Estados Unidos, tem conseguido vender bem as cópias eletrônicas de seu novo romance, "Freedom", que já totaliza 35.000 cópias nas primeiras duas semanas desde o lançamento, em 31 de agosto."Os grandes best-sellers ainda são as obras que impulsionam os lucros das editoras e dos escritores — e são esses os livros que os leitores de livros eletrônicos estão comprando", diz Laurence Kirshbaum, um agente literário nova-iorquino.

A situação é diferente para os autores estreantes e os de menos apelo comercial, cujas tiragens às vezes não chegam a 10.000 livros. Kirshbaum diz que tem sido difícil vender às editoras um romance de estreia sobre a vida numa cidade pequena, porque muitos editores não querem mais apostar em escritores novos tendo em vista a possibilidade de que suas habilidades narrativas evoluam com o segundo, terceiro e quarto livros. Antigamente, muitos escritores conseguiram ficar conhecidos por causa dessa paciência, diz Kirshbaum."Escritores como Anne Tyler e Elmore Leonard tiveram que cozinhar bastante antes de ferverem. As editoras não têm mais paciência para esperar um autor que só consegue vários sucessos modestos", diz Kirshbaum. "Há o perigo de perdermos essas pessoas."

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Consciências personalísticas

Pintura: Sísifo, por Tiziano

Li recentemente um comentário no Digestivo Cultural de um leitor que disse não gostar de Saramago. Sua razão para tal: ”Os personagens não têm vida e a história está lá para dar voz às pontificações do autor.”

Pensei em responder-lhe apenas com um “Bemvindo à literatura”, mas ao ler O Homem Duplicado encontrei este texto interessantíssimo, no qual o próprio Saramago ironiza sua queda pelas pontificações:

“Um parêntesis indispensável. Há alturas da narração, e esta, como já se vai ver, foi justamente uma delas, em que qualquer manifestação paralela de ideias e de sentimentos por parte do narrador à margem do que estivessem a sentir ou a pensar nesse momento as personagens deveria ser expressamente proibida pelas leis do bem escrever. A infracção, por imprudência ou ausência de respeito humano, a tais cláusulas limitativas, que, a existirem, seriam provavelmente de acatamento não obrigatório, pode levar a que a personagem, em lugar de seguir uma linha autónoma de pensamentos e emoções coerente com o estatuto que lhe foi conferido, como é seu direito inalienável, se veja assaltada de modo arbitrário por expressões mentais ou psíquicas que, vindas de quem vêm, é certo que nunca lhe seriam de todo alheias, mas que num instante dado podem revelar-se no mínimo inoportunas, e em algum caso desastrosas.”

Na literatura imortal não têm os autores servido como amigos imaginários ou vozes de consciência para seus personagens? As narrativas são meios para o desabafo de almas atormentadas. Longe de tirar a vida dos personagens, é a voz do autor que preenche de sangue suas veias.

Embora no mais das vezes os personagens discutam e discordem do autor, em alguns momentos até sabem ouvir seus conselhos, que nem sempre vêm para o seu bem.

Pontificações como a baleia branca de Melville ou os moinhos de vento de Cervantes jamais serão apagadas, pois simbolizam a pedra no caminho de Drummond, o trabalho de Sísifo que é arrumar a casa. A eterna busca a que nós nos entregamos vida afora, quando nos propomos uma missão, um sentido para o existir. Eterna não porque fora do tempo, e sim porque circular. Vivenciamos todos em nossa vida fugaz o eterno retorno nietzschiano. Os grandes personagens literários mostram isso. Quanto maior sua tarefa, mais certo o fracasso que leva ao recomeço.

Isso é vida.

Socó Pombo

domingo, 18 de julho de 2010

Sobre questões culturais e religiosas e liberdade


A Assembleia Nacional francesa aprovou um projeto de lei que proíbe o uso em público de burca ou de outro veu que cubra o rosto. Pelo projeto, mulheres vistas em público de burca ou niqab - que deixa apenas os olhos à vista (há vestimentas que sequer deixam o olho à mostra, cobrindo-o com uma fina rede) - terão que pagar multa de 150 euros. Se um homem obrigar a mulher a usar esses veus será multado em 30 mil euros e pode pegar um ano de cadeia.

Muitos defensores da “liberdade cultural e religiosa” têm se posicionado contrários à decisão.

A mais corrente analogia que se faz mundo afora é entre a burca e o hábito das freiras. Impressionantemente, as pessoas que tecem essa tosca comparação são os defensores do viés religioso. Deveriam lembrar que as freiras não usam o hábito porque o marido manda, até porque não se casam. Também não escondem o rosto. Podem deixar o claustro quando desejarem. Algum defensor do direito dessas mulheres de exercer sua religiosidade acredita mesmo que elas podem deixar o uso do veu quando desejarem? Por que será que em Cabul, depois da queda do Talibã, mulheres deixaram de usar os veus e passaram inclusive a exibir unhas pintadas? Teriam deixado de ser religiosas?

Outro ponto importante: países de população majoritariamente islâmica já proibiram a burca em locais públicos, como a Turquia e a Tunísia. A verdade é que tal vestimenta nada tem que ver com exercício da religiosidade. Se assim fosse, os homens também a usariam. Tais vestes são utilizadas por uma regra patriarcal e arbitrária imposta por homens inseguros em relação às mulheres, que se negam a enxergá-las como seres humanos.

Ser contra a proibição de burcas por questões culturais, pelo direito das mulheres de “expressarem suas crenças”, é como ser contra a Lei Maria da Penha, levando em conta que é cultural no Brasil e América Latina chegar bêbado em casa e espancar a mulher. Tem mulher que gosta. Deve ser permitido, então?

As mulheres participam de atos violentos como a retirada cirúrgica do clitóris de meninas em determinados países. Algumas mulheres apóiam, é parte da cultura. Devemos permitir que tal aberração ocorra em nosso país?

Que tal permitir que mulheres sejam proibidas de votar ou trabalhar, desde que seja parte de sua cultura?


Quando um indivíduo gosta de algo simplesmente porque foi educado, adestrado, espancado e condicionado a gostar, cabe sim ao Estado intervir. Não duvido nada que as mulheres passem a mostrar rostos marcados por hematomas, quando se virem livres das burcas.


Evidentemente, a lei não é para proteger apenas essas mulheres. Não sou tão inocente a ponto de não perceber o lado ideológico agindo aqui. Há um contexto bem maior e mais importante, que diz respeito principalmente às mulheres europeias: os povos islâmicos se reproduzem mais rapidamente que os não islâmicos, e seus filhos migram principalmente para a Europa. Em algumas décadas, serão maioria nesse continente. Cabe às mulheres europeias (e àqueles que lhes são simpáticos) lutar contra as leis culturais islâmicas de submissão feminina, para que, quando muçulmanos forem maioria, não consigam impor suas leis com o apoio das suas mulheres.
As mulheres muçulmanas merecem o exercício do direito a votar e ser votadas, a trabalhar, e tomar decisões sobre o próprio corpo. Depois que conquistarem esses direitos, não abdicarão deles por “questões culturais”.

Aí, sim, aquelas que preferem usar um veu que lhes cubra todo o corpo, inclusive os olhos, que lhes tolha movimentos e a própria visão, que dificulte mesmo sua respiração, poderão fazê-lo, se assim desejarem. Então se saberá que o uso se dá por questões religiosas, não por imposição masculina.

Socó Pombo