quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Estorvos de Chico Buarque


Entre os gargalos para a criação literária, há dois que podem ser indicados como os piores estorvos: nomes de personagens e soluções de continuidade.
Sobre o primeiro não há muito a esclarecer para o não escritor: se já há uma dificuldade em nomear um filho, imagine dar nome a dezenas, sem se repetir e procurando associar o nome à personalidade e ainda ser fiel à geografia e à história.
As soluções de continuidade têm a função de ligar os fatos, para transformar contos isolados em romance. O escritor tem ideias geniais a todo momento. O problema é que, via de regra, as grandes ideias são para grandes momentos, momentos de clímax dramático. Ocorre que a narrativa longa não é uma linha reta, mas um movimento de onda, e não é possível manter a história sempre na crista da onda. Entre um moinho de vento e a nomeação de Sancho Pança a governador deve haver uma ligação, uma transição em geral chata de escrever (e por isso mesmo o autor sempre acha que será chata também de ler, tentando resumi-la ao máximo).
Para estes dois problemas Chico Buarque conseguiu soluções fáceis e nada ortodoxas para seu romance Estorvo: a abolição de nomes e soluções de continuidade.
Mesmo o estorvo – digo, personagem – principal não tem um nome. São minha mãe, minha irmã, meu cunhado, a magrinha, a índia, o negro com sunga que imita uma onça, o ex-pugilista, os irmãos gêmeos, o delegado, o caseiro, a magrinha, o amigo, a irmã do colega que dava festas, a menina. Apenas o copeiro em determinado momento recebe um nome, a aqui Buarque pretende mostrar que pode ser criativo também nessa matéria: Hidrólio.
Os capítulos também se sucedem sem qualquer ligação. Há uma ordem cronológica, mas a narrativa começa e termina, não apenas em cada capítulo, como em todo o conjunto, sem que o leitor saiba de onde veio ou para onde vai.
Contudo, encarar a ausência de nomes e ligações apenas como uma cômoda solução para a escrita seria uma análise superficial e mesmo uma simplificação leviana.
Analisando mais cuidadosamente, podemos perceber que não foi a preguiça ou um apertado prazo de entrega que levou o autor a criar assim sua história. Há na ausência de nomes um distanciamento do personagem, uma ausência de emotividade que nos leva a ignorar o absurdo de sua existência. Ora, esse mesmo distanciamento há entre o personagem e sua mãe, sua irmã e os demais. Não há nomes que os identifiquem porque não há uma identificação. Na verdade, sequer o personagem consegue identificar-se a si ou consigo mesmo.
Essa falta de identificação amplia o efeito do absurdo da narrativa. Os fatos que vão nos estorvando sucessivamente estorvam ainda mais por não conseguirmos reconhecer a realidade daqueles que os vivenciam.
Em determinados momentos sequer sabemos se é o sonho ou a realidade que estorva. E o próprio personagem que narra em primeira pessoa no presente (fato que deveria nos aproximar do narrador, mas não acontece) também sente o mesmo. E eis o grande trunfo: fatos em si terríveis nos aparecem como amiúde as notícias de jornal: sem qualquer sentimento de empatia, como advindos de uma outra realidade.
Realiza-se uma crítica social não apenas das situações limite entre os estratos sociais. Uma crítica ao nosso modo vazio de viver, numa anestesia coletiva que bloqueia mesmo nossos instintos mais primevos, como o sexual e o de sobrevivência.
Estorvo é um perfeito emblema de nossa sociedade. O absurdo torna-se cotidiano e já não nos chocamos. Anônimos, já não conseguimos sentir o que o outro sente, ou sequer compreender o que nós mesmos sentimos. Mesmo que saibamos seu nome.


Socó Pombo

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