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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Um rei mago


A Ceia das Cinzas

Livro Um

Capítulo Um

Os Reis Magos

(...)

Falar que chora o coração é mais que pura metáfora. Nosso coração pranteia mais do que poderiam nossos olhos suportar. Felizmente, não há vias naturais pelas quais possam esvair-se as lágrimas sangrentas que o coração derrama pelo nosso corpo quando lamuria-se no silêncio de uma dor aprisionada. Assim soluçaram os corações de Cristóbam e Felipa ao chegarem a Veneza, a belamente livre e livremente bela terra em que haviam batido ao mesmo ritmo pela primeira vez. A crônica sobrepusera-se à poesia de tal maneira que tais dias de felicidade pareciam pertencer a outros. A antiga felicidade ficou-lhes ainda mais alheada quando Cristóbam descobriu por intermédio de seu banqueiro que não havia qualquer ordem de pagamento em seu benefício. Seus corações choraram o desgosto de um paraíso perdido e de uma traição que os impediria de reavê-lo.

Somente o indulgente auxílio de Ariosto poderia salvaguardar aquela família errante. Os corações murmurando uma súplica, abalados pela expectativa, finalmente ultrapassaram a Porta Degli Angeli e viram-se cercados pelas seguras muralhas de Ferrara. A família Este transformara toda a cidade num gigantesco monumento em homenagem à arte e à ciência. Em meio à suntuosidade dos palácios e obras de arte, não era difícil identificar a simples casa de Ludovico Ariosto, com sua fachada de tijolos avermelhados e as nove largas janelas gravitando em torno de uma grande porta ovalar. Cristóbam leu a inscrição da fachada antes de bater: “Parva, sed apta mihi, sed nulli obnoxia, sed non sordida, parta meo, sed tamen aere domus”. Relembrou o orgulho que aquele homem sábio e importante guardava pela sua casa simples, porém aconchegante e, o mais importante, comprada com seu próprio dinheiro. Recobrou a esperança de auxílio de um homem simples e bom, e bateu a aldraba.

O largo e bondoso rosto de Alessandra Benucci surgiu na porta entreaberta, e logo expandiu-se num largo sorriso que os envolveu no aconchego da casa. Em poucos instantes surgia Ariosto de braços abertos, ao abraço de Cristóbam e Felipa. A simpatia entre o idoso e a criança foi mútuo. Antes que Cristóbam pudesse explicar a visita, o poeta falou-lhe:

– Lembra-te do meu poema Orlando Furioso? Acabo de receber alguns exemplares de sua edição definitiva – ao menos assim espero. Espera que já te trago um.

Daí a instantes voltou com um grosso volume ricamente encadernado.

– Dedicar-vos-ei este volume.

– Temo não poder pagá-lo por agora, Don Ludovico.

– Ora, Cristóbam. Não te devo dinheiro e nem poderia, já que não devo a ninguém. Contudo, contraí outras dívidas contigo. Vosso amor muito me inspirou, de modo que há versos nesse livro que vieram de tal fonte. Percebi que em eras de loucura é preciso lutar e amar loucamente. Quando assisti a vosso matrimônio, percebi quanto o amor é importante. Aceitai, se não como presente para vós, como um legado para vosso filho. Vosso amor motivou-me a trazer Alessandra para cá, mesmo sob o risco de perder os benefícios eclesiásticos.

– Amigo, foi nosso amor que aqui nos trouxe, em busca de tua mercê, pois ele não foi suficiente para evitar nossa ruína.

– Seria demasiado fácil acalentar um amor louco se não houvesse riscos. Os riscos e as penas nos mostram o valor do prêmio. Não merecerei ser criticado se vos der pouco, pois dar-vos-ei o que puder dar.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Um novo evangelho

Pintura: A Morte de Sócrates - Jacques-Louis David

Capítulo IV

Os dois ainda procuravam memorizar as primeiras lições de latim, quando o sol surgiu no horizonte, mostrando o caminho que tomariam. Seus companheiros acordaram surpresos pelo fato de não terem sido chamados para seus turnos de guarda. Entre o preparo da primeira refeição e o desmonte do acampamento, souberam por desenhos traçados na areia que sua viagem seria alongada por uma parada que desviaria sua trajetória: passariam por Antioquia[1] antes de seguir em direção ao crescente fértil[2], passando pelas margens do Eufrates e dando a volta pelo lado oriente do Mar Negro, para enfim chegar ao Quersoneso Táurico, onde os documentos deveriam ser entregues a um general que tinha sua identidade preservada para segurança da missão.
É a partir da passagem que fizeram por Antioquia que começa a narrativa do livro de Tiago
[3], demonstrando a sua impressão da civilização de reminiscência helênica.
Nos dias e principalmente nas noites em que seguiram viagem, Tiago e Melquisedeque se aprofundaram mais na língua latina, e mesmo seus companheiros, radicalmente xenófobos, passaram a estudar. Mas, se todos o faziam por motivações políticas, Tiago desenvolvera em seu íntimo uma outra motivação para o aprendizado da língua gentia: sentia-se curioso em relação a uma cultura que, apesar da imoralidade do culto religioso, dera origem a homens como Horácio e Júlio César
[4]. Sentia o ar mais puro e o dia mais luminoso sempre que esquecia o pessimismo em face da vida para lembrar-se da expressão carpe diem. À medida que crescia em sabedoria, vacilava sua fé na seriedade da vida e seu horror ao pecado. Não seriam os grandes acontecimentos históricos frutos da vontade e do gênio do homem mais que o resultado de desígnios divinos? Foi com esse pensamento gritando e debatendo-se para libertar-se do seu peito que Tiago adentrou as ruas de Antioquia junto de seus parceiros.
Havia cavalgado poucos metros, quando o seu interesse pela língua latina o fez parar para prestar atenção às palavras de um homem que falava a muitas pessoas embaixo de uma oliveira:
― E eu vos digo que este homem, que odiava os erros e as imperfeições das gentes, no entanto amou de tal forma a espécie humana que por ela se recusou a negar sua verdade e a fugir da lei, e morreu por nós. Foi morto pelos poderosos, que o acusaram de blasfêmia por não compreenderem sua teogonia. Foi morto, enfim, porque não estávamos preparados para sua verdade, pois que sua verdade teria mudado para sempre a compreensão dos seres humanos e as estruturas das civilizações.
Tiago compreendeu em partes o que o homem dizia, mais pelo seu tom e seus gestos que pelo discurso em si, e sentiu-se curioso por conhecer a história de que falava. Seus companheiros deram por sua falta e voltaram para chamá-lo. Ele então perguntou a Marco:
― Quem é o homem de que ele fala?
― Semástocles ensina filosofia grega. Nunca ouviste falar de Sócrates
[5]?


[1] Outra importante cidade comercial da Síria, a norte de Tiro.
[2] Região entre os rios Tigre e Eufrates, no Oriente Médio, onde surgiram algumas das mais importantes civilizações da história. Nessa região as lendas babilônias que influenciaram o Gênese situam o Jardim do Édem, o paraíso terrestre.
[3] Na verdade, o livro de Tiago não é bem uma narração, mas uma coletânea de crônicas e poemas que ajudam a compreender a dimensão humana dos conflitos de seu tempo. Estes textos serão usados com propriedade por Siqueira como falas de Tiago em momentos importantes de sua vida.
[4] Gaius Julius Caesar (100 a.C. – 44 a. C.) – Grande general romano, sendo primeiro triúnviro e depois tirano vitalício do império. Apesar de ter governado no fim da República, foi o responsável pela Era Imperial, fato que levou a uma conspiração culminada em sua morte. Escreveu sobre as guerras de que participou.
[5] Sócrates (c. 469 – 399 a.C.) – Filósofo grego que consolidou a filosofia como a conhecemos, separada das ciências naturais. Morreu ao beber uma taça de cicuta, sentença recebida após um julgamento em que foi acusado de corromper a juventude ateniense.


Amâncio Siqueira - Trecho do romance O Evangelho de São Pecador

sábado, 26 de dezembro de 2009

Um velho diálogo

Pintura: Hieronymus Bosch - Tentação de Santo Antonio

- Meu jovem rapaz, a ética nos impede causar tal transtorno e tamanha desfeita. Devemos manter a palavra, pois ela carrega nossos nomes. Minha família jamais perdoaria tal descaso. Os laços da honra prendem-nos à palavra dada.

- Homessa! Ora, Lúcia, tenha suas próprias volições. Auto-independa-se de qualquer promessa, de qualquer palavra, de qualquer ética, de qualquer honra, de qualquer ulrapassado conceito de certo e errado. Não siga o que te disseram, sem a liberdade de julgar por si mesma. Pensa a respeito. Por toda sua vida você seguiu as regras do jogo. Experimente agora fazer suas próprias regras. Não se arrependerá como daquela vez, pois já não há quem lhe impeça. Com certeza, não esqueceu aquela linda manhã ensolarada, há trinta anos. Lembra-se que seus pais diziam: Nunca vá ao lago sozinha. Nunca. Não se esqueceu que queria muito ir ao lago, mas sua mãe não a quis levar. Era seu aniversário, mas sua mãe estava tão atarefada que tempo algum podia delegar à sua felicidade. Estou fazendo o almoço, disse ela. O que você fez? Desobeceu sua mãe pela primeira vez. Última e única. Lembra que sentiu o gosto da plena liberdade? O sentimento de pureza, sentada numa pedra à beira do lago, levantando seu limpo e engomado vestido e banhando seus pés na água cristalina? Ah, jamais se esquecerá da eufórica caminhada até sua casa, do seu sorriso, de sua alegria ao sentir a liberdade plena inundar todo o seu ser... e tampouco esquecerá do que ocorreu ao chegar em casa. O rosto de desespero de sua mãe e suas duras palavras: Onde estavas, menina desnaturada? Procurei-te por toda parte. Olha só teu vestidinho, todo sujo e amassado. Fui ao laguinho, mamãe. Foste? Pois jamais esquecerás deste dia... Foi a maneira de sua mãe demonstrar a alegria de ver a filha sã e salva. De fato, você jamais esqueceu do único momento em que foi tocada pela violência, sua mãe batendo com mãos e palavras; e sua irmã Ângela rindo de você e de seu sofrimento. Ria de sua vergonha, de sua humilhação. Das suas lágrimas. Sentiu naquele dia liberdade e dor plenas, contrabalanceando-se. Todavia, pareceu-lhe a dor mais poderosa que a liberdade, pois a liberdade trazia dor. A dor, porém, não trazia liberdade. A dor era apenas dor. Estava errado o catecismo. Não existia redenção. Contudo, hoje você pode desobedecer sua mãe e tudo que ela disse. Está lá, ao lado de sua querida Ângela. Hoje, se você quiser sentir a liberdade da desobediência, não sentirá a dor como paga. Não será espezinhada pela humilhação de sua irmã escarnecendo. Apenas o prazer pleno e total da liberdade. O que escolhe, Lúcia, o compromisso ou a felicidade de sua filha? A ética ou a alegria, a honra ou a liberdade? Faça sua escolha.

Lúcia olhava dentro dos olhos de Luiz, e em cada traço do seu rosto adivinhava verdade. Cada palavra despertava-lhe o prazer que sentira naquele dia e despertava-lhe o desejo de reparação. Deleitou-se ao imaginar os rostos tristonhos e indignados. A água da liberdade, que outrora banhara seus pés, correria caudalosa sobre todo seu ser. Ao ouvir as últimas palavras, abriu um sorriso, entrevendo a tão reprimida vontade de desforra desabroxar numa oportunidade tão latente. Tinha em suas mãos o poder de escolha, sem o temor do castigo.


Amâncio Siqueira