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domingo, 31 de julho de 2011

Um erístico engano


Devo confessar-me entre o número das pessoas iludidas.

Entretanto, não o fui por um descuido dentro do debate. Posso dizer que o fui somente antes que o debate se iniciasse.

Esse é o problema da atualidade: o adversário usa de artimanhas erísticas mesmo antes de começar a debater.

O debate a que refiro, assim como o engano em que caí, foi a compra do livro Como vencer um debate sem precisar ter razão, publicado pela Topbooks. O primeiro estratagema usado pela editora é o argumentum ad verecundiam, já que ela atribui a Arthur Schopenhauer um livro de Orvalho de Carvalho. Obviamente que tal argumentum é extremamente eficiente, tanto que eu comprei o livro por querer aprofundar-me na obra do filósofo alemão (além do prazer que tenho em ler suas tiradas de ácido pessimismo). Se eu não compraria um livro de Olavo de Carvalho antes de conhecê-lo, muito menos o faria após.

Bem, no debate dialético que ocorre entre um livro e seu possível leitor, no qual o livro apresenta argumentos favoráveis e contrários à própria compra, saiu vencedora a editora, pois acabei cedendo aos argumentos favoráveis. Todavia, no debate com o livro já comprado, quando passa-se a discutir com o próprio autor, posso dizer que me saí melhor. Ao menos não comprei inadvertidamente seus conceitos.

Posso afirmar que muito disso se deve à falta de tato do Olavo mesmo. Sua nota prévia de dez páginas, nas quais só fala de si mesmo, já deixa o leitor alerta para possíveis enganos travestidos de erudição. Lá pelas cinquenta páginas que se passa à procura de Schopenhaeur, surge essa engenhosa descrição do mesmo: essa alma religiosa e sofredora. Pensei: teria pego um tratado sobre Kierkegaard por engano? Não, eu não estava enganado sobre o livro que tinha em mãos, e também não fui, daí em diante, enganado por ele.

Das duzentas e cinquenta páginas do volume há sim umas cinquenta do próprio Schopenhauer, e todas as outras são de Olavo de Carvalho comentando Aristóteles ou “demonstrando” o quanto Schopenhauer não é aristotélico. Ele poderia ao menos ter se perguntado se Schopenhauer tinha alguma intenção de ser aristotélico.

Corrijo-me: longe de serem todas as páginas escritas por Olavo comentários sobre Aristóteles, e estaria cometendo e sujeito e ser alvo de ampliação indevida: há um enorme espaço dedicado ao combate contra a “esquerda intelectualóide”, à defesa do mccarthismo como verdadeira prática democrática, e de empresas ou indivíduos investigados pelas ditatoriais CPI's do Congresso Nacional.

Em comentários sobre o argumentum ad verecundiam (argumento de autoridade), depois de uma longa nota em que reflete sobre a dificuldade que esquerdistas têm para raciocinar por si mesmos, e sensibilizado pelo fato de, para a “esquerda”, qualquer indivíduo sem nenhuma capacidade intelectual erigir-se a autoridade em qualquer matéria pelo simples fato de ter sido torturado pelo regime militar, escreve: “A autoridade dos poetas varia conforme a época e lugar. Clássicos gregos não exercem em geral, no Brasil de hoje, o menor efeito. Nos meios universitários, é preciso citar Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges ou Nélson Rodrigues (por irônica coincidência, todos conservadores, politicamente).” De fato, que “irônica coincidência” que seu exemplo posterior simplesmente contrarie sua tese! O autor simplesmente faz uma instância, ou exemplum in contrario, de si mesmo.

Porém não se engane o leitor, caindo numa pista falsa, ao acreditar ser isso um símbolo de honestidade de Olavo de Carvalho.

Veja como ele consegue utilizar diversos estratagemas erísticos para “rebater” a refutação do argumento ontológico de Anselmo de Canterbury, feita por Kant:

“(Anselmo) diz, em essência, o seguinte: 'deus é, por definição, o ser perfeito; ora, a inexistência é uma imperfeição; logo, ela não faz parte da natureza de deus'. Segundo Kant, a prova ontológica, sendo a priori, só se refere ao conceito de deus e não implica que o objeto conceituado exista realmente. Dito de outro modo, da análise de um conceito não se pode deduzir a existência de seu objeto. Mas as coisas não são tão simples. Coloco à refutação de Kant as seguintes objeções: 1º A evidência de uma proposição pode ser reconhecida não só pelo sentido de certeza, isto é, subjetivamente, mas também por análise lógica: proposição auto-evidente é aquela que só pode ser contraditada por uma proposição equívoca, isto é, de duplo sentido. 2º logo, um juízo auto-evidente não pode ser hipotético ou puramente formal: é sempre um juízo categórico de alcance ontológico. 3º A proposição “um ser necessário existe necessariamente” é auto-evidente, porque é impossível decidir se sua contraditória é “um ser necessário não existe de maneira necessária” ou “um ser necessário necessariamente inexiste”. 4º Logo, o juízo “um ser necessário existe necessariamente” não pode ser hipotético, não se aplicando portanto, ao caso, a distinção entre “Deus” e “o conceito de Deus”. Fica assim derrubada a objeção kantiana.”

Primeiro estratagema: misto de distinção de emergência e mutatio controversie: o argumento ontológico trata de perfeição, e não de necessidade.

Segundo: manipulação retórica e argumento sofístico: o jogo de palavras é bem lindinho, mas não passa de um jogo. Olavo parte de uma premissa “subentendida” que ninguém comprovou ou aceitou inicialmente: deus é necessário, e esse deus é o cristão. Ele deveria ter demonstrado como chegou a uma conclusão que tornou-se premissa para seus floreios retóricos. Como conheço alguns cristãos, dou-me a liberdade de imaginar o processo:

Um ser necessário é aquele do qual se necessita,

Eu necessito de deus; logo, ele é necessário.

O deus em que acredito é o cristão;

logo, os outros deuses não são necessários.

Conclusão: o deus necessário é o deus cristão.

Lembrando que essa lógica do “argumento auto-evidente” pode ser usada para afirmar ou refutar qualquer coisa. O Alcorão diz que atribuir um filho a deus é loucura, e que o fato de deus não ter nenhum filho é uma verdade auto-evidente. Devo então converter-me ao Islã?

Terceiro: falsa proclamação de vitória. Olavo de Carvalho derruba por terra a refutação ao argumento ontológico, aos seus próprios olhos. (Por que será que Craig não pensou nisso antes?)

Para não escrevermos um texto muito longo, atenho-me a outro exemplo aberrante de lógica:

Schopenhauer faz alusão à frase Quid est veritas?, atribuída a Pilatos, Olavo de Carvalho acresce uma nota comedida e necessária ao bom andamento do livro:

“Não devemos esquecer que, ao fazer essa pergunta com ar tão sábio, o pedantíssimo Pôncio tinha a verdade bem diante dos olhos da cara, e não a reconheceu.”

Por óbvio, um prisioneiro ferido que se nega a defender-se é também uma verdade auto-evidente. Sem contar que um livro de Schopenhauer não poderia passar sem uma apologia ao cristianismo. Na próxima vez, a Topbooks poderia contratar Silas Malafaia para comentar O Anticristo, de Nietzsche.

Aliás, a elegância dos argumentos ad hominem, de rótulo odioso e ad personam de Olavo são um capítulo à parte.

Para um Olavo de Carvalho que se arroga defensor da racionalidade, sua última frase é emblemática: “É sempre a tentação da Árvore da Ciência que leva o homem a perder a Árvore da Vida.”

Nada mais adequado para um filósofo do conhecimento, que despende grande volume dos comentários a um livro pretensamente de Schopenhauer a combater o “irracionalismo” do filósofo alemão.

Socó Pombo

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

De Direitos Humanos, censuras, deferências e Renascimento


“Antes a grande superpotência do seu mundo, o Irã passou a maior parte dos últimos dois séculos sendo saqueado, colonizado e humilhado pelos impérios europeus. Como uma nação xiita numa região dominada por governos árabes sunitas, o país também se sente cercado teologicamente.”


Robert Kagan


Recentemente o acadêmico Paulo Coelho divulgou nota baseada em emeio recebido do seu livreiro no Irã, Arash Hejazi, informando que seus livros haviam sido proibidos naquele país. A ministra da Cultura brasileira, Ana de Hollanda, assim como o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, apressaram-se a tecer comentários reprovadores sobre a atitude do governo iraniano e afirmaram que buscariam impedir a censura ao Coelho.
Um trecho da nota da embaixada iraniana no Brasil negando a censura diz mais sobre a situação no Irã do que as notícias anteriores:
“Infelizmente, esta noticia fora criada e planejada por Arash Hejazi (indivíduo acusado do homicídio da Sra. Neda Aghar Soltan depois das últimas eleições presidenciais, o qual é o principal suspeito e que encontra-se neste momento foragido e procurado), com a colaboração e orientação de agentes dos Estados Unidos da América e Israel, em consonância com um plano global com o intuito de manchar a imagem do Irã, cujo aproveitamento político busca falsificar a verdade. Infelizmente conseguiram juntar-se a personalidades e autoridades no propósito desta armadilha.”
Neda Aghar Soltan foi morta pelas forças governamentais durante protesto contra a corrupção na reeleição de Mahmoud Ahmadinejad, com um tiro que lhe acertou o coração. Arash Hejazi estava ao lado dela no protesto e tentou salvá-la. Há vídeos que mostram o momento da morte dela, enquanto seu amigo tenta estancar a hemorragia. A teocracia muçulmana ignorou que ele estava desarmado e tentando salvá-la, ignorou o vídeo, ignorou a prova balística e os disparos da polícia, ignorou os direitos humanos e a verdade. Arash vive exilado, pois se for preso será sumariamente condenado à pena de morte, a exemplo do que aconteceu com Sakineh, que ainda não foi executada por pressões internacionais.
O Irã não precisa de um plano global para manchar sua imagem. Eles sabem fazer isso muito bem. Suas eleições foram ainda mais fraudulentas que a de George Bush, ditadas pelo aiatolá Khamenei, o verdadeiro governante do país. Seu antecessor, o líder da Revolução Islâmica aiatolá Khomeini, deixou bem claro o que pensam os teocratas sobre democracia e direitos humanos: “Sim, nós somos reacionários, e vocês são intelectuais iluminados: vocês, intelectuais, não querem que nós voltemos 1400 anos.” Ele tinha razão. Os únicos intelectuais que recordo terem a intenção de voltar mil e quatrocentos anos foram os renascentistas europeus, que buscavam resgatar o passado de esplendor jônico.
Abu Musab Al-Zarqawi, a exemplo de outros líderes islâmicos fundamentalistas, repudia a democracia, pois “o legislador que deve ser obedecido na democracia é o homem, e não Deus.” Eleições transformam o “homem, fraco e ignorante, parceiro de Deus na Sua prerrogativa mais importante e divina – a saber, governar e legislar.” Eles creem mesmo que há homens que falam por deus, que o ouvem e sabem exatamente o que ele quer. E tais homens sabem que seu deus quer sangue e ranger de dentes, que repudia tudo que é novo, inclusive direitos iguais para as minorias. A existência de tantos líderes que se arrogam a prerrogativa de estar acima do legislador humano, como canais diretos para captação da vontade divina, gera distorções para as relações internacionais difíceis de serem solucionadas, pois seu argumento trata discordâncias como blasfêmia, e qualquer opositor como um canal direto para captar a vontade do Diabo.
Tal noção não está presente apenas em alguns países do Oriente Médio, espalhando-se pelo extremo oriente, África e América. O grupo islamista radical al-Shabab proibiu o aperto de mãos entre homens e mulheres na cidade de Jowhar, no sul da Somália. Além de proibir o aperto de mãos intersexual, a organização também vetou conversas em público e até o caminhar lado a lado entre homens e mulheres sem laços familiares. O governo do al-Shabab afirma que todo aquele que for flagrado descumprindo as regras será julgado segundo a lei islâmica, a Sharia, mesma lei utilizada pelo Talibã no Afeganistão.
A Tunísia, Cartago na antiguidade e atualmente um país de governo islâmico, começou a viver uma forte turbulência social, quando jovens e estudantes iniciaram protestos contra os altos índices de desemprego nas ruas da capital Túnis. As manifestações logo tomaram vulto e assumiram uma conotação política, criticando a falta de liberdade política no país.
O governo se viu obrigado a agir. Em meio a pedidos de calma à população, o então presidente Ben Ali anunciou o fechamento de universidades e escolas, enquanto o Exército saía às ruas para frear as manifestações. Passaram a haver confrontos regulares, gerando um número ainda incerto de mortos, mas que já passa de 70, segundo dados do governo. Ben Ali deixou o governo e saiu do país, e o novo governo não parou a repressão aos protestos. Há países de maioria muçulmana que vivem democracias, a exemplo da Turquia, mas esse número era maior quando do fim do Império Otomano.
Diante de tantas violações aos direitos humanos, a literatura perde até um pouco da importância, e estranhou-me especialmente a deferência da prontidão em defender Paulo Coelho, quando tantos outros autores brasileiros são censurados no Irã. Não seria mais positiva uma tentativa de inserir outros escritores nacionais nas livrarias iranianas, como Milton Hatoum, Cristovão Tezza, Chico Buarque, Raimundo Carrero ou Alessandro Palmeira? Ou pedir mais transparência nos procedimentos governamentais em áreas como segurança e direitos humanos?
Não é minha intenção afirmar que o modo ocidental seja melhor que o oriental. Considero a democracia política uma aristocracia mais dispendiosa, com um povo que não toma decisões, mas cujas eleições consomem orçamentos enormes. Sequer a negação do sangue azul foi capaz de impedir o luxo dos governantes. Uma ditadura da maioria como a imposta pela maioria cristã em países do continente americano não é muito diferente da imposta por uma minoria. Basta lembrar que em alguns países latino-americanos mulheres são proibidas de abortar mesmo se o feto tiver origem em um estupro. No país que se considera a lâmpada da democracia no mundo seu ex-presidente George Bush pai declarou que os ateus não deveriam ter cidadania americana, pois seu país fora fundado com base no cristianismo. Os pais fundadores discordariam, mas quando o filho invadiu o Iraque baseado num sonho em que deus lhe disse que o governo de Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa (o que leva a crer que deus anda mal informado e talvez precise atualizar seu sistema de onisciência) a fidelidade à coerência histórica por parte do pai fica em último plano. As religiões abraâmicas não receberam esse nome por acaso: as crianças aprendem com o exemplo do patriarca que, quando deus dá uma ordem, não cabe questionamento, ela deve ser cumprida, mesmo que seja para matar o próprio filho. E as pessoas não param de receber ordens divinas, transmitidas em frequências diferentes para judeus, cristãos e muçulmanos, mas sempre com pedidos de sacrifício.
Pesquisas em países asiáticos indicam que as populações preferem bem estar a liberdade, desenvolvimento a eleições. Não tenho certeza que nosso jeito seja o jeito certo, e estou certo de que impor democracia goela abaixo é um atentado à autodeterminação dos povos.
Contudo, ditaduras violentas para seu próprio povo também são atentados à autodeterminação dos povos. Que povo autodeterminaria levar noventa e nove chibatadas por trocar apertos de mão ou usar calças? Como autodeterminar-se quando a própria menção a uma escolha é proibida?
Penso que a maneira europeia de tratar as relações internacionais seja mais positiva que a maneira americana, em especial em relação a nações com apego maior à religião. O sistema puramente punitivo tende a criar maior atavismo, um repúdio mais profundo e duradouro a influências estrangeiras, vistas como interferência não de um povo igual, mas de um poder hostil. Uma política integracionista, com incentivos ao exercício pleno dos direitos humanos, conseguiu integrar sessenta milhões de turcos à União Europeia. Aliás, a atual política internacional europeia em muito diverge do que foi em séculos anteriores. Não custa lembrar que o Islã tem hoje quase a mesma idade que tinha o cristianismo quando os europeus lançaram-se às cruzadas. Inclusive São Luiz tinha como um dos principais objetivos em sua cruzada destruir os vestígios da biblioteca de Alexandria, o qual teria sido plenamente cumprido não fosse pelo senso de conservação dos sábios árabes.
Assim como foi função dos muçulmanos preservar livros antigos da sanha religiosa dos europeus no passado, e transmitir essa sabedoria na clandestinidade, talvez seja nosso momento de retribuir o favor, permitindo aos nossos irmãos muçulmanos que conheçam uma sabedoria diferente, não por meio de uma imposição que instigue a desconfiança, e sim por meio de uma cooperação que incentive a boa vontade e a cooperação.
O Islã está próximo da idade em que iniciamos nosso Renascimento e nosso Iluminismo. Todos os povos que seguem essa religião merecem recuperar o tempo em que viviam em harmonia e tolerância entre si e com o restante do mundo. Uma civilização que nos deu Averróis e Khayyam merece o seu próprio Iluminismo.


Amâncio Siqueira

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

De teocracias disfarçadas e a última minoria


“Os loucos, aleijados, cegos e mudos são homens em quem os demônios fizeram a sua morada. Os médicos que curam estas enfermidades como se tivessem causas naturais são idiotas ignorantes.
As pessoas deram ouvidos a um astrólogo novato (Copérnico) que lutou para provar que a terra é que gira, não os céus ou o firmamento, o sol e a lua. Este louco quer contrariar toda a ciência da astronomia. Mas as Sagradas Escrituras dizem-nos (Josué 10:13) que Josué ordenou que o sol parasse e não a Terra.
A Razão deveria ser destruída em todos os cristãos. Ela é o maior inimigo da Fé. Quem quiser ser um cristão deve arrancar os olhos da sua Razão.”


Martinho Lutero


Para os líderes religiosos radicais, não basta elevar o vício da ignorância a virtude imprescindível para a salvação. Também precisam demonizar aqueles que não concordam com isso. Mais, fazem o caminho inverso e transformam a inteligência em pecado, a razão em apostasia, a sabedoria em heresia.
Já escrevi sobre a imposição a todos de dogmas que deveriam ser privados e sobre os problemas de uma democracia que dá às maiorias o direito de impor-se sobre as minorias. Na ocasião, alguns me acusaram de fundamentalizar os contrários ao aborto e de subverter o conceito de democracia. Poucos meses depois, vimos uma disputa eleitoral ir ao segundo turno graças a uma minoria populacional que detém um grande poder econômico e midiático e quer mandar na maioria, mudando a agenda política para tirar o foco das grandes questões nacionais e colocar em discussão opiniões sobre temas que não competem ao poder executivo, e sim ao legislativo. Os pastores evangélicos mobilizam-se para usar seu rebanho imerso na ignorância a uma cruzada para estabelecer uma nova idade das trevas, dessa vez com sermões via satélite. Os mesmos satélites que foram criados por cientistas “imorais e demoníacos” no passado.
Além da televisão, outro produto de “impiedosos filhos de Satanás” que agora serve para propagar seus preconceitos, sua intolerância e seu ódio é a internete. Milhares de emeios, postagens em blogues, fóruns e redes sociais dão o recado do fundamentalismo: não toleraremos qualquer avanço nos direitos humanos, em especial no que tange a mulheres e homossexuais. O próximo passo? Abolir religiões de origem africana ou indígena. Afinal, eles lutaram por liberdade religiosa enquanto não possuíam o poder que detêm agora. Devem erradicar qualquer outro deus, já que o deles é o único. Uma denominação religiosa monoteísta só defende liberdade de culto quando é minoria.
Os pastores e padres não aceitam tratamento com células-tronco embrionárias. Por quê? Aos fiéis, dizem que por princípios cristãos. Mas será um princípio cristão condenar pessoas a deficiência e dor quando se pode salvá-las? Há apenas um motivo para que a religião lute tanto contra o avanço na medicina: se todas as doenças fossem curadas pela ciência, não haveria tantos desiludidos da realidade iludindo-se com as curas imaginárias das igrejas.
No primeiro mandato de Lula fiquei pasmo com o destaque que a imprensa deu à declaração do cardeal Eusébio Scheid, que disse: “Lula não é católico, é caótico.” Vários jornalistas cercaram o presidente da República para cobrar-lhe uma resposta, como se qualquer cidadão, inclusive um Chefe de Estado, fosse obrigado a ser católico. Pior, Lula respondeu defensivamente, confirmando tal obrigatoriedade.
Agora são os evangélicos e grupos católicos de orientação fascista que querem obrigar os candidatos a alinharem-se aos seus dogmas. Sob o emblema da família e dos valores morais cristãos, escondem seu patriarcalismo, seu ódio a todos que ousam ser diferentes.
O mais cruel é que o PSDB, que já sofreu com uma campanha difamatória semelhante quando Fernando Henrique Cardoso, concorrendo à prefeitura de São Paulo em 1985, teve seu ateísmo explorado pela campanha de Jânio Quadros, agora se utiliza do mesmo expediente sem qualquer receio. Muitos PSDBistas acusam o PT de demonizar FHC ao comparar os períodos em que estes partidos estiveram na presidência. Qualquer pessoa isenta perceberá na campanha serrista do segundo turno que é o próprio PSDB que demoniza o ex-presidente. Não bastasse eles tentarem esconder FHC no primeiro turno, agora vão para o ataque contra pessoas com o seu perfil. Espalham-se os emeios que dizem que os “ateus satanistas” (sic) querem dominar o mundo e instituir uma “ditadura homossexual”, com direito a “comer criancinhas e legalização da maconha”. Escondem ainda mais Fernando Henrique, que participa de um grupo internacional que defende a descriminalização da erva.
Dilma, para não perder votos, enreda-se no esvaziamento do discurso eleitoral e se vê na necessidade de deixar de lado os grandes temas como saúde, direitos humanos e educação. Aliás, o manifesto dos reitores do Brasil em favor de Dilma, por considerá-la a melhor candidata para fazer avançar o ensino superior no Brasil, é um verdadeiro fogo amigo contra a candidata, já que para fundamentalistas falar em avanço da educação é falar em escassez de fiéis, digo, de “domínio do demônio” sobre uma sociedade racional, quer dizer, “ímpia”.
O fato é que, a depender dos líderes cristãos, a Terra ainda seria o centro fixo e achatado do universo e estaríamos tratando as doenças com exorcismos (na verdade, anda há muitos doentes procurando esse tipo de tratamento).
Os ateus são chamados diuturnamente de imorais e criminosos, e tal preconceito é ampliado na campanha eleitoral. Os ateus são a última minoria, a mais marginalizada e hostilizada. Sempre que um crime bárbaro é cometido, seu autor é taxado como alguém “sem deus no coração”. É imperativo que aqueles sem deus (na mente, no coração ou em qualquer outro lugar) demonstrem que são seres humanos morais, responsáveis, preocupados não com crenças de foro íntimo, e sim com o bem-estar social e os direitos humanos. Enquanto os ateus se calam e se escondem, com um discurso de não se declarar para não criar problemas com os religiosos, estes perseguem aqueles em seus púlpitos e na vida pública, condenando-os ao inferno, no qual desejam avidamente que queimem junto com homossexuais, mulheres insubmissas e tudo o mais que não se adéque ao padrão patriarcal do seu cristianismo do orgulho branco.
Quando José Serra fala em “valores religiosos das pessoas de bem”, insinua que quem não tem valores religiosos não presta. O próprio termo “cidadão de bem” subverte o conceito de cidadania, gerando o ideia de uma divisão dos cidadãos em diferentes castas sociais. São os “nós”, cristãos de classe alta, urbanos, esbranquiçados, heterossexuais defensores da vida, contra os “eles”, os promíscuos, degenerados, anticristãos, ateus. Não é necessário dizer que os “nós” possuem os meios de comunicação e o poder econômico para difundir seus preconceitos como uma verdade inalienável.
Caminhamos a passos largos para um estado teocrático, com líderes religiosos radicais elaborando as leis que devem reger a todos. Religiosos de outros credos, cristãos moderados, agnósticos e ateus que se calarem agora não poderão reclamar quando forem obrigados à conversão, ao ostracismo, quando estiverem no exílio da vida pública.
Ou na fogueira.


Amâncio Siqueira

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A inocência baleada do coronel Nascimento


A esperança foi baleada e respira com a ajuda de aparelhos na UTI. Torcemos para que ela abra os olhos, sem perceber que são nossos olhos que precisam abrir-se.
Tropa de Elite 2 é uma poderosa metáfora. E também uma tese de sociologia:
O sistema estende seus tentáculos a uma distância muito maior do que podemos captar, e sabe usar tudo que toca, mesmo aqueles que pensam combatê-lo.
Capitão Nascimento, agora coronel, passa por uma jornada que, de tão oposta, é idêntica à de Dom Vito Corleone, que no capítulo final de O Poderoso Chefão descobre que, quanto mais tentamos legalizar nossas ações, mais afundamos no lamaçal de um sistema inerentemente corrupto.
As atuações magistrais do todo o elenco abrilhantam o genial roteiro. Há um duro aprendizado não apenas para Nascimento, como para todos nós. A realidade subjacente estapeia nossas caras e diz: vocês são moleques. Peçam pra sair.
O sistema não tem um comando central. Como a Hidra de Lerna, crescem-lhe novas cabeças à medida que uma é cortada. Seus tentáculos multiplicam-se. Vencê-lo é um trabalho hercúleo.
Devemos deixar de lado o simplismo das ideologias, seja à esquerda ou à direita, e compreender como o sistema funciona em suas mais profundas raízes. Sim, esta obra-prima do nosso cinema é também uma lição.E não são apenas seus personagens que aprendem da forma mais dolorosa.
Socó Pombo

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Intensidade

A fala que se segue é do personagem Giordano Bruno, no meu romance A Ceia das Cinzas. A primeira frase é do personagem histórico que inspira o livro.

A bela ordem e hierarquia da natureza são um sonho ingênuo e um gracejo de velhas decrépitas.

Aqueles que falam em viver intensamente referem-se ao oposto do que exprimem. Viver intensamente para eles significa dedicar-se o máximo possível a afazeres que os distraiam da vida. Colecionar passatempos, eis ao que se referem. Com vida intensa dizem fuga da vida.

Pois ninguém quer verdadeiramente viver intensamente.

A vida é tédio e sofrimento, acordar, labutar e dormir, um castigo de Sísifo só encerrado pela morte, que nos cerca dia a dia. Feliz é aquele que gasta todas as suas energias com divertimentos, perdido no esquecimento do permanente esgotamento de sua vitalidade.

Se alguém quisesse sinceramente uma vida intensa, não se dedicaria com tamanho afinco a fazer que o tempo, em ligeira fuga, arraste para longe a verdadeira natureza da vida.

A felicidade dos homens tem repousado na distração de si mesmos.

Os sábios, por tentar conhecer a verdade encarando a vida em toda a sua crueza, são condenados à infelicidade.

Amâncio Siqueira

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

De tiranias do povo, pelo povo e para o povo


“O sufrágio universal é a mais monstruosa e mais iníqua das tiranias, pois a força do número é a mais brutal das forças, não tendo a seu lado nem a audácia, nem o talento.”

Bourget

A democracia surgiu em moldes bem diversos dos das atuais. Quando tal forma de governo foi adotada na Grécia, os cidadãos tomavam parte ativa no governo da Polis. Reunidos em assembleia, votavam diretamente sobre os temas do debate, sem a escolha de intermediários para tomar suas decisões, como ocorre atualmente, com a escolha de “representantes” (embora houvesse cargos eletivos para execução de questões mais práticas). Obviamente, com apenas algumas centenas de cidadãos era mais fácil reuni-los. E para ser cidadão não havia a mesma facilidade que atualmente: mulheres, homens jovens ou pobres e escravos não podiam tirar o título eleitoral. Continuava, portanto, o governo de poucos sobre muitos, embora os poucos passassem a se chamar “maioria”.
Os cargos eletivos foram criando mais e mais importância e acumulando maior poder, até que os cidadãos passaram a participar de um sistema que daria origem ao parlamentarismo: cidadãos escolheriam um conselho de anciãos (senado) que por sua vez escolheriam um governante em situações especiais. A última dessas situações especiais deu origem à tirania de Júlio César, já no incipiente Império Romano, que poria fim à democracia até então praticada.
Nos séculos seguintes, poucos povos tiveram o mesmo ímpeto por auto-governar-se que os gregos. Discordo de Aristóteles, quando diz que “a democracia surgiu quando, devido ao fato de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si”. Vejo no surgimento da democracia grega mais o desejo de não ser superado por outrem do que o de igualdade. O afã de governar, não o de repartir o poder. Não por acaso o próprio Aristóteles diz que “democracia é a mais severa forma de despotismo”. Quando os cidadãos querem, pela força do número, governar seus iguais, determinando seu comportamento em todos os âmbitos da vida, um despotismo da “maioria” está instaurado. Tal despotismo não vê igualdade absoluta entre as pessoas: obriga os desiguais a igualar-se à maioria.
Os movimentos que fizeram ressurgir a democracia a partir do iluminismo não tinham sentimento muito diferente do antigo. Cidadão passou a ser sinônimo de burguês de grandes posses, embora muitos ativistas da Revolução Francesa discordassem disso. O sistema presidencialista, erigido nos Estados Unidos, foi exportado para vários lugares do mundo, inclusive o Brasil. Seria um sistema ideal para qualquer país que quisesse ter um rei eleito pelo povo.
Todas as formas de poder democrático até a atualidade mantiveram o sistema de eleição de representantes do povo, que não toma decisões diretamente. No Brasil, o processo de escolha dos representantes se dá a cada dois anos, com ciclos de escolha de legisladores e governantes municipais intercalados pelos dos estados e da União. O poder judiciário não é eletivo. Na luta pelo poder, via de regra há que se gastar muito dinheiro para obtê-lo. Quantias vultosas são despendidas nas campanhas eleitorais.
Primeiramente, quero frisar bem o termo campanha eleitoral. Erroneamente, as pessoas em sua maioria se referem às eleições como “tempo de política”, e considero importante partir daí para lembrar que é sempre tempo de política, de lutar pela melhoria da polis, da cidade (ou Estado e União, exemplos mais amplos de Polis). Portanto, cabe sempre destacar que campanha eleitoral não é sinônimo de campanha política. Campanha eleitoral é também uma campanha política, o ápice da luta pelo poder na democracia representativa que vivenciamos atualmente. Entretanto, há campanhas políticas que fogem do eleitoral, que mobilizam parcelas populacionais desinteressadas do poder, mas engajadas na luta pelo estado de direito. A campanha pela lei da Ficha Limpa foi um exemplo pontual. Exemplos constantes de campanhas políticas são os movimentos pela reforma agrária, pelos direitos dos homossexuais ou pela descriminalização do aborto. Em geral, os temas debatidos em campanhas políticas extensas e apartidárias não entram no debate das campanhas eleitorais, devido ao fato de serem temas polêmicos, desaprovados pelo público mais amplo, o que faz os candidatos preferirem ignorá-los.
Para obter o poder, o candidato se faz candidato da maioria, pois é a maioria que tem o poder de outorga do governo.
A pergunta que me faço e ao leitor é: será esse o melhor sistema de governar? Talvez o fosse, quando havia barreiras intransponíveis para o reunião de todos os cidadãos para deliberar sobre qualquer assunto. Mas tais barreiras não existem mais. Cem milhões de pessoas podem votar para a saída de algum participante de um reality show. Por que, então, os cidadãos não poderiam participar mais ativamente do governo da nação?
Além de propiciar maior transparência nas decisões do governo, uma democracia mais participativa teria o poder de trazer todas as minorias para o debate social. Talvez, lentamente, a maioria passasse e respeitar os anseios das minorias. E, o mais importante, chegar ao ponto que Platão tanto criticava: “A democracia é uma constituição agradável, anárquica e variada, distribuidora de igualdade indiferentemente a iguais e desiguais”. Não seria exatamente este o ponto: chegar ao respeito e inclusão de todos? Trata-se não de levar todos à igualdade, mas de levar a igualdade a todos. Qual o direito mais igualitário, senão o de sermos todos diferentes?
Democracia modernamente não significa governo de muitos sobre poucos, mas governo para inclusão de todos no processo social. Temos que ter o esclarecimento de que não é porque nossas opiniões são majoritárias que devem ser impostas a todos, quando se trata de questões de foro íntimo.
Quando eu digo que não é um governo de muitos, não quero com isso dizer que uma minoria deve governar. Quero salientar que a democracia deve ser um governo de todos, com a inclusão de todos no processo. Por exemplo, não é porque sou heterossexual que devo determinar que todos o sejam, ou cercear os direitos daqueles que não o são. Incluir também os homossexuais é um exemplo de democracia inclusiva.Em questões de foro íntimo, que não interfiram na vida pública, os particulares devem ter o direito de se determinarem, por mais minorias que sejam. Até que o termo minoria deixe de fazer sentido em outro âmbito que não o estatístico.

Amâncio Siqueira

quinta-feira, 24 de junho de 2010

De leis mortas por “defensores da vida” ou um embrionário diálogo sobre fatos e fetos


“O que a sua geração não sabe e a minha quase já esqueceu é o quanto éramos ignorantes naquele tempo, como eram estranhas nossas atitudes – para com sexo e tudo que se relacionava a ele. Anticoncepcionais, divórcio, homossexualismo, doença venérea. E gravidez fora do casamento, nem pensar, a pior coisa que podia acontecer. Nas décadas de 1920 e 1930 famílias respeitáveis internavam as filhas grávidas em asilos de loucos. Mães solteiras eram obrigadas a marchar pelas ruas, humilhadas pelas instituições que deviam tomar conta delas. As moças se matavam tentando o aborto. Parece loucura agora, mas naqueles dias, uma jovem grávida provavelmente achava que todos estavam certos e ela era louca e merecia todo o castigo. As atitudes oficiais eram extremamente punitivas, extremamente rigorosas.”

No trecho acima, extraído do romance Cães Negros, de Ian McEwan, a personagem fala das décadas de vinte e trinta do século XX, na Europa; contudo, não pude deixar de pensar que as mulheres do fim desse século nas Américas, e mesmo do fim do próximo, nos países teocráticos islâmicos, poderão referir-se com o mesmo alívio e espanto quando falarem das suas próprias décadas de vinte.

Sempre que se pede uma justificativa para as grandes tragédias naturais, os fiéis das religiões abraâmicas dizem que os desígnios de deus, qualquer deles, são inescrutáveis, e não nos cabe tentar compreender as milhares de mortes de inocentes. Entretanto, esses mesmos fiéis parecem possuir uma linha direta com sua divindade, quando se trata de nossa sexualidade. São verdadeiros psicólogos de deus, conhecendo cada pormenor de seus traumas. Sim, pois deus deve trazer terríveis traumas de infância, para se preocupar tanto com o que as pessoas fazem com seus pênis, vaginas e ânus, com seus testículos e úteros.

E essas pessoas, que desejam carregar consigo os traumas do seu deus, que consideram pecado a felicidade e o prazer, que consideram boa e bela a auto-castração, não se limitam a conduzirem-se (quando se conduzem, o que é raro) conforme acreditam ser vontade de deus, mas querem transformar sua conduta privada em lei pública, obrigatória mesmo para aqueles que não compartilham das mesmas certezas que eles sobre o que seja deus ou sua vontade.

Há países em que a mulher que puser fim ao fruto de um estupro será condenada à prisão perpétua, lei essa que recebe a bênção da Igreja Católica, que aliás não considera mesmo estupro como algo grave. Nos Emirados Árabes, recentemente um caso chamou atenção mundial, quando líderes religiosos, sabendo que uma menina havia nascido grávida, devido ao embrião de seu irmão gêmeo ter-se unido ao seu útero em formação, não quiseram permitir o aborto, preferindo condenar a criança à morte a extirpar algo que jamais se tornaria um ser humano. São comuns penas de morte na Indonésia, maior país islâmico. Nos Estados Unidos, os mesmos grupos religiosos que invadem clínicas de aborto e fazem campanhas para derrubar leis que permitem sua prática, que são contrários à eutanásia, ao suicídio assistido e às pesquisas com células-tronco, também vão às portas das penitenciárias defender a pena de morte.

Na verdade, é impressionante como é exatamente na parcela da população que mais defende o “não matarás”, dos auto-declarados “defensores da vida”, que encontramos os maiores defensores da pena de morte, inclusive com requintes de crueldade, enquanto se opõem ferrenhamente a que uma pessoa que saiba que tem uma moléstia progressiva que a tornará um vegetal, uma cruz para sua família, possa morrer dignamente.

É também muito comum ver pessoas religiosas que, ao saber que uma grávida decide abortar um feto sem cérebro, desejam que a mãe também morra no processo, e que vá arder no inferno. São defensores da vida, claro.

Evidentemente que não há muita gente que faça questão de ir para o paraíso passar um trilhão de anos acompanhado dessa gente, mas deixemos o além e todo o paraíso para esses indivíduos, e pensemos na realidade que sabemos que existe, a nossa.

Primeiramente, para acalmar os fanáticos que chegaram até aqui, devo dizer que as leis penais servem para dizer o que não se deve fazer, e não o que se deve; ou seja, uma lei que descrimine o aborto não obrigará aquelas que não quiserem fazê-lo a aderir. Todas continuarão tendo a liberdade de ter seus filhos (embora os argumentos dos líderes religiosos digam o contrário: pastores vivem no Congresso dizendo que a legalização do casamento gay será o fim da família, como se todo mundo fosse gay e estivesse apenas esperando a liberação para começar a casar com pessoas do mesmo sexo. Da mesma maneira, acham que nenhuma mulher tem instinto materno, e que não nascerá mais ninguém, pois todas abortarão tão logo deixe de ser proibido).

Agora que está claro que as que não quiserem não serão obrigadas a abortar, assim como quem quiser continuar vegetando não será obrigado a receber eutanásia, pensemos naquelas que poderão optar, seja por questões sociais, médicas ou econômicas, pelo aborto.

Atualmente, estima-se que setenta mil mulheres morrem anualmente ao praticar abortos ilegais, noventa e cinco por cento delas nos países em desenvolvimento, exatamente aqueles que têm maioria religiosa e leis que criminalizam o aborto. Os mesmos países que estão atrasando sua medicina ao impedir pesquisas com células-tronco embrionárias, e que possuem péssimos sistemas de saúde e programas deficitários de segurança. Preciso lembrar da educação?

O cientista Carl Sagan defendia como critério para a permissão do aborto o período de formação daquilo que diferencia o ser humano dos demais animais: o neo-córtex cerebral. Essa camada do cérebro, que recobre nossa psiquê reptiliana e mamífera, forma-se no início do segundo trimestre de gestação. Seria esse o período limite para Sagan. Pensamento até retrógrado ou reacionário para alguns países europeus, que permitem o aborto até o início do terceiro trimestre. Todavia, compreendo que seja muito avançado para países como o nosso, que ainda permitem campanhas contra o uso de contraceptivos em nome da liberdade religiosa. Infelizmente, em nome da religião se permite o estelionato, a lavagem de dinheiro e a desinformação em massa, o ativismo contra a ciência e a educação, a verdadeira guerra contra a liberdade de opinião. Mas prossigamos.

Sendo o pensamento de Sagan avançado para nossos padrões, já que o critério que os religiosos insistem em utilizar é não o da humanidade, mas o do início da vida, considero que um passo importante seria tomar como critério para o começo da vida o mesmo que utilizamos para decidir seu fim: o funcionamento do cérebro, ou a atividade encefálica. Tal entendimento solucionaria não apenas a questão do aborto, como das pesquisas com células-tronco embrionárias.

Nossa lei concorda com a opinião científica de que, a partir do momento em que o indivíduo deixa de apresentar atividade encefálica, deixa de estar vivo, mesmo que aparelhos o façam respirar. É justo, então, considerar que o embrião, quando não apresenta ainda atividade encefálica, ou seja, antes de desenvolver um cérebro e órgãos auxiliares (o que ocorre por volta da sétima semana de gravidez, com a encefalização), não é um ser vivo, mas apenas um corpo que respira com a ajuda de um aparelho, a mãe.

A única diferença é que aqui não se desliga o aparelho, mas o ser que funciona sem sentir e sem saber.

Desumano? Apenas para aqueles que creem que um erro deve ser carregado para todo o sempre, ou que a vida deve ser vivida não importa como, com que dores e desgraças. Para esses, planejamento familiar é desnecessário, assim como condições básicas de vida que garantam a dignidade das famílias e de seus recém-nascidos. Para aqueles, o sofrimento é satisfatório e merecido. Para ambos, viver sem atividade encefálica é mesmo uma bênção.

Nada contra. Queremos apenas que não imponham sua bênção aos demais.


Amâncio Siqueira

terça-feira, 25 de maio de 2010

Cubículo 69

Pintura: Detalhe de Esboço para Guernica - Pablo picasso

Morto, abandonado, jogado maltrapilho no quadrado do seu mundo.
Morto, com sonhos enfermos amontoados sobre seu leito, impedido-lhe de deitar sua eternidade.
Morto. Com o nome escrito no mármore frio, orvalhado pela brisa da noite, a única que não o esqueceu.
Morto, agora sem sonhos, sem lágrimas, sem oração, mas existindo orgulhoso no esquecimento do seu deus.
No esquecimento de Deus.
Alessandro Palmeira

segunda-feira, 17 de maio de 2010

De escritores e autores e suas manias



“Um autor deve considerar-se não um cavalheiro que oferece um banquete particular ou de caridade, e sim alguém que dirige uma casa pública de pasto, na qual são bem-vindas todas as pessoas em troca do seu dinheiro. No primeiro caso, é sabido que o hospedeiro apresenta as iguarias que bem entende; as quais, embora indiferentes ou absolutamente desagradáveis ao paladar do hóspede, não podem ser criticadas (…) Ora, o contrário sucede ao dono de uma casa de pasto. Os homens que pagam o que comem insistirão em satisfazer o seu paladar, por mais delicado e fantástico que seja; e, se alguma coisa lhes for desagradável, reivindicarão o direito de censurar, insultar e livremente maldizer o seu almoço.”
Henry Fielding
Como alguém que escreve, custa-me inserir-me numa categoria ou período ou movimento ou qualquer outro determinismo ou reducionismo. Também não suporto generalizações. O Movimento Lixista é atualmente o movimento de um homem só, e talvez por isso se encaixe tão bem na minha personalidade, embora aguarde avidamente o retorno de seus iniciadores. São excelentes para o lixismo, pois também não suportam generalizações. Dito isto, embora não saiba exatamente o que teria dito, passo ao assunto próprio dessa crônica: tentar generalizar o ofício da escrita.
Primeiramente, gostaria de delimitar aquilo que se pode chamar escritor da restante massa dos que escrevem. Todos que aprendem a ler escrevem algo mais cedo ou mais tarde, e essa é a nossa excludente primordial: o fato de criar um carro de madeira não me faz mecânico. Construir um castelo de cartas não me torna engenheiro. E escrever uma redação de vestibular ou um poema rimado para a namorada não torna ninguém escritor ou poeta.
Para ser mais exato no que pretendo esclarecer: ter um filho não gera um pai ou uma mãe; plantar uma árvore não cria um agrônomo ou agricultor; escrever um livro não produz um escritor. Não direi que o ofício da escrita seja uma vocação, já que me pretendo escritor, embora não seja vocacionado. Entretanto, há algo que delimita um escritor de um autor eventual, mesmo que este escreva mais que o primeiro: o compromisso com a palavra, mais que consigo mesmo. Alguém que tenha um rebento e o abandone na sarjeta é um procriador, não um pai. Aquele que lança ao vento seu texto, sem um mínimo de cuidado com o mesmo, é um autor, não um escritor.
E vemos que a multidão de livros sem escritor cresce mais que a de filhos sem pai atualmente. É feio um pai dizer “a educação é muito difícil; prefiro criar meu filho solto, de qualquer jeito, e ele que encontre um rumo”. Todavia, é costumeiro acessar fóruns de autores na internete que dizem com orgulho “a língua portuguesa é muito difícil; eu escrevo sem regras mesmo, pois o importante é a história”. Algo ainda mais salutar: em todas as profissões, os maus funcionários costumam ridicularizar os bons. Trabalhei como atendente em uma empresa, e disputava com um colega para ver quem atendia mais clientes. Aqueles que não atendiam ironizavam: “vão ganhar um aumento por isso.” Algo bem simplório, comparado aos autores que grassam na rede: “Eu que não leio um chato como Camões. Guimarães Rosa? Um lixo incompreensível. Machado de Assis? Melhor ler bula de remédio. Balzac é o tédio personificado. As descrições de José de Alencar são horrorosas. João Ubaldo Ribeiro é um pornográfico.” E segue o despeito daqueles que não conhecem sequer o objeto sobre o qual trabalham, contra aqueles que tão perfeitamente o trabalharam.
Outro ponto crucial: o compromisso. O autor não tem compromisso com a arte, com a linguagem ou com a realidade. Mesmo seu senso de compromisso consigo é deturpado: é o pacto com a fama, com o dinheiro, não com sua consciência, com suas dúvidas. Portanto, cria um laço de dever com o leitor, buscando adequar-se à moda para vender mais. Como a moda é sempre a fuga da realidade, o autor está sempre fugindo da verdade que o cerca, e tem verdadeiro prazer nisso. Afinal, nunca foi seu desejo confrontar-se com o mundo assustador à sua volta. Devo aqui fazer um breve parêntese: compromisso com a realdade não é realismo. Literatura é ficção, porém não é mentira. Quem entender o que digo saberá a diferença para a literatura entre um hobbit fascinado pelo poder de um anel e um vampiro adolescente cursando segundo grau.
O único compromisso que o escritor deve ter para com o leitor é o da honestidade: não mente para si mesmo, por que mentiria para quem o lê?
Desse compromisso excluem-se mais uns tantos milhões de autores, com seus segredos e sonhos e sucessos fáceis, embalando na mentira as multidões de miseráveis que precisam continuar vivendo. Um autor tem respostas. Um escritor tem perguntas.
Esclarecido simploriamente o que não é um escritor, tentemos definir o que é esse animal arisco e em vias de extinção:
Já disse que um escritor tem perguntas, não respostas. São essas questões que o mobilizam. Sabe-se mortal, vê a vida sem sentido tal qual é. Percebe o universo que pouco se importa se vivemos ou morremos. Sabe que o mundo não é perfeito e pensar o contrário é ilusão. Não mente a si mesmo.
Ama a língua, a palavra. Não se satisfaz com uma história, com a fama. Pretende construir uma obra perfeita. Visa extrair de sua constatação do mundo, de sua dor existencial, arte, pureza, beleza. Das imperfeições das tragédias humanas, retirar a perfeição estética, a emoção ainda mais clara e mais profunda do que o é em realidade. Procura a palavra exata e cria uma se não a encontra.
O escritor sabe-se só, e sabe que todos o somos. Sabe, e não dirá somos todos um, todos iguais. Dirá apenas “sim, sei de tua solidão, pois ela também é minha.”
Encara a irremediável mortalidade, o inexorável fim, e não busca subterfúgios. Sabe que não há soluções fáceis.
O escritor é naturalmente inoportunista. Escolhe exatamente o momento em que sua verdade será mais inoportuna, e a derrama violentamente sobre as gentes. Sem medo de ser insultado e livremente maldito.
Os autores têm gerações. Os escritores são sempre póstumos. Distantes da moda, desagradam o público. Solitários, desafiam os rebanhos. Sinceros, empecilham as religiões e os poderes. Escritores são como o rochedo que se interpõe no percurso do vagalhão, mesmo sabendo que será destruído. O autor segue a onda.
Contudo, talvez esse conjunto de delimitações seja uma generalização difícil de verificar pragmaticamente.
Talvez apenas o escritor desse texto tenha tais manias.


Amâncio Siqueira