sábado, 26 de junho de 2010

quinta-feira, 24 de junho de 2010

De leis mortas por “defensores da vida” ou um embrionário diálogo sobre fatos e fetos


“O que a sua geração não sabe e a minha quase já esqueceu é o quanto éramos ignorantes naquele tempo, como eram estranhas nossas atitudes – para com sexo e tudo que se relacionava a ele. Anticoncepcionais, divórcio, homossexualismo, doença venérea. E gravidez fora do casamento, nem pensar, a pior coisa que podia acontecer. Nas décadas de 1920 e 1930 famílias respeitáveis internavam as filhas grávidas em asilos de loucos. Mães solteiras eram obrigadas a marchar pelas ruas, humilhadas pelas instituições que deviam tomar conta delas. As moças se matavam tentando o aborto. Parece loucura agora, mas naqueles dias, uma jovem grávida provavelmente achava que todos estavam certos e ela era louca e merecia todo o castigo. As atitudes oficiais eram extremamente punitivas, extremamente rigorosas.”

No trecho acima, extraído do romance Cães Negros, de Ian McEwan, a personagem fala das décadas de vinte e trinta do século XX, na Europa; contudo, não pude deixar de pensar que as mulheres do fim desse século nas Américas, e mesmo do fim do próximo, nos países teocráticos islâmicos, poderão referir-se com o mesmo alívio e espanto quando falarem das suas próprias décadas de vinte.

Sempre que se pede uma justificativa para as grandes tragédias naturais, os fiéis das religiões abraâmicas dizem que os desígnios de deus, qualquer deles, são inescrutáveis, e não nos cabe tentar compreender as milhares de mortes de inocentes. Entretanto, esses mesmos fiéis parecem possuir uma linha direta com sua divindade, quando se trata de nossa sexualidade. São verdadeiros psicólogos de deus, conhecendo cada pormenor de seus traumas. Sim, pois deus deve trazer terríveis traumas de infância, para se preocupar tanto com o que as pessoas fazem com seus pênis, vaginas e ânus, com seus testículos e úteros.

E essas pessoas, que desejam carregar consigo os traumas do seu deus, que consideram pecado a felicidade e o prazer, que consideram boa e bela a auto-castração, não se limitam a conduzirem-se (quando se conduzem, o que é raro) conforme acreditam ser vontade de deus, mas querem transformar sua conduta privada em lei pública, obrigatória mesmo para aqueles que não compartilham das mesmas certezas que eles sobre o que seja deus ou sua vontade.

Há países em que a mulher que puser fim ao fruto de um estupro será condenada à prisão perpétua, lei essa que recebe a bênção da Igreja Católica, que aliás não considera mesmo estupro como algo grave. Nos Emirados Árabes, recentemente um caso chamou atenção mundial, quando líderes religiosos, sabendo que uma menina havia nascido grávida, devido ao embrião de seu irmão gêmeo ter-se unido ao seu útero em formação, não quiseram permitir o aborto, preferindo condenar a criança à morte a extirpar algo que jamais se tornaria um ser humano. São comuns penas de morte na Indonésia, maior país islâmico. Nos Estados Unidos, os mesmos grupos religiosos que invadem clínicas de aborto e fazem campanhas para derrubar leis que permitem sua prática, que são contrários à eutanásia, ao suicídio assistido e às pesquisas com células-tronco, também vão às portas das penitenciárias defender a pena de morte.

Na verdade, é impressionante como é exatamente na parcela da população que mais defende o “não matarás”, dos auto-declarados “defensores da vida”, que encontramos os maiores defensores da pena de morte, inclusive com requintes de crueldade, enquanto se opõem ferrenhamente a que uma pessoa que saiba que tem uma moléstia progressiva que a tornará um vegetal, uma cruz para sua família, possa morrer dignamente.

É também muito comum ver pessoas religiosas que, ao saber que uma grávida decide abortar um feto sem cérebro, desejam que a mãe também morra no processo, e que vá arder no inferno. São defensores da vida, claro.

Evidentemente que não há muita gente que faça questão de ir para o paraíso passar um trilhão de anos acompanhado dessa gente, mas deixemos o além e todo o paraíso para esses indivíduos, e pensemos na realidade que sabemos que existe, a nossa.

Primeiramente, para acalmar os fanáticos que chegaram até aqui, devo dizer que as leis penais servem para dizer o que não se deve fazer, e não o que se deve; ou seja, uma lei que descrimine o aborto não obrigará aquelas que não quiserem fazê-lo a aderir. Todas continuarão tendo a liberdade de ter seus filhos (embora os argumentos dos líderes religiosos digam o contrário: pastores vivem no Congresso dizendo que a legalização do casamento gay será o fim da família, como se todo mundo fosse gay e estivesse apenas esperando a liberação para começar a casar com pessoas do mesmo sexo. Da mesma maneira, acham que nenhuma mulher tem instinto materno, e que não nascerá mais ninguém, pois todas abortarão tão logo deixe de ser proibido).

Agora que está claro que as que não quiserem não serão obrigadas a abortar, assim como quem quiser continuar vegetando não será obrigado a receber eutanásia, pensemos naquelas que poderão optar, seja por questões sociais, médicas ou econômicas, pelo aborto.

Atualmente, estima-se que setenta mil mulheres morrem anualmente ao praticar abortos ilegais, noventa e cinco por cento delas nos países em desenvolvimento, exatamente aqueles que têm maioria religiosa e leis que criminalizam o aborto. Os mesmos países que estão atrasando sua medicina ao impedir pesquisas com células-tronco embrionárias, e que possuem péssimos sistemas de saúde e programas deficitários de segurança. Preciso lembrar da educação?

O cientista Carl Sagan defendia como critério para a permissão do aborto o período de formação daquilo que diferencia o ser humano dos demais animais: o neo-córtex cerebral. Essa camada do cérebro, que recobre nossa psiquê reptiliana e mamífera, forma-se no início do segundo trimestre de gestação. Seria esse o período limite para Sagan. Pensamento até retrógrado ou reacionário para alguns países europeus, que permitem o aborto até o início do terceiro trimestre. Todavia, compreendo que seja muito avançado para países como o nosso, que ainda permitem campanhas contra o uso de contraceptivos em nome da liberdade religiosa. Infelizmente, em nome da religião se permite o estelionato, a lavagem de dinheiro e a desinformação em massa, o ativismo contra a ciência e a educação, a verdadeira guerra contra a liberdade de opinião. Mas prossigamos.

Sendo o pensamento de Sagan avançado para nossos padrões, já que o critério que os religiosos insistem em utilizar é não o da humanidade, mas o do início da vida, considero que um passo importante seria tomar como critério para o começo da vida o mesmo que utilizamos para decidir seu fim: o funcionamento do cérebro, ou a atividade encefálica. Tal entendimento solucionaria não apenas a questão do aborto, como das pesquisas com células-tronco embrionárias.

Nossa lei concorda com a opinião científica de que, a partir do momento em que o indivíduo deixa de apresentar atividade encefálica, deixa de estar vivo, mesmo que aparelhos o façam respirar. É justo, então, considerar que o embrião, quando não apresenta ainda atividade encefálica, ou seja, antes de desenvolver um cérebro e órgãos auxiliares (o que ocorre por volta da sétima semana de gravidez, com a encefalização), não é um ser vivo, mas apenas um corpo que respira com a ajuda de um aparelho, a mãe.

A única diferença é que aqui não se desliga o aparelho, mas o ser que funciona sem sentir e sem saber.

Desumano? Apenas para aqueles que creem que um erro deve ser carregado para todo o sempre, ou que a vida deve ser vivida não importa como, com que dores e desgraças. Para esses, planejamento familiar é desnecessário, assim como condições básicas de vida que garantam a dignidade das famílias e de seus recém-nascidos. Para aqueles, o sofrimento é satisfatório e merecido. Para ambos, viver sem atividade encefálica é mesmo uma bênção.

Nada contra. Queremos apenas que não imponham sua bênção aos demais.


Amâncio Siqueira

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Morre Saramago, um estilista brincalhão


Há muitos dias em que a cegueira branca parece ameaçar contagiar todo o mundo. Dezoito de junho de 2010 terá sido um desses dias para a literatura universal. Nesse dia, a voz de José Saramago já não voltará a erigir-se contra o absurdo dos seres humanos. Restam seus mais de quarenta livros, as centenas de entrevistas gravadas e impressas e o amor daqueles que não o poderão esquecer.

Não apresentarei aqui uma minibiografia do escritor português, único vencedor do prêmio Nobel em nossa língua. Saramago é tão universal, que será fácil encontrar sua biografia, resumos de suas obras e quaisquer minúcias de que careçam aqueles que ainda não o conhecem.

Ainda baqueado pela tristeza, deixo aqui apenas minhas impressões, carregadas de luto, da importância da obra daquele que considerava o maior escritor vivo.

Com apenas oitenta e sete anos, pode-se dizer que o escritor faleceu em plena flor da idade, no auge de sua lucidez, em plena forma e completa entrega ao trabalho, sem dúvida a maior diversão de sua grandiosa vida. Produzia como nunca, como a vislumbrar próximo o momento do inexistir.

O grande diferencial da literatura de Saramago é a subversividade. Não apenas o conteúdo do seu texto é veemente contra o absurdo das regras impostas, como a própria forma. Subversividade infantil, diria, pois é no humor, no lúdico que o escritor enfrenta o irracional de ser cordeiro. Brinca com a sintaxe, com a acentuação, com os discursos, criando um mundo só seu de possibilidades linguísticas. É essa a maior perda: a perda de um estilo de escrita que transforma o próprio texto em materialização da premissa, sendo ele próprio a história e não somente seu portador. Pois não é apenas um mágico absurdo a linguagem de Saramago, como suas próprias histórias, como se a única maneira de racionalizar o absurdo do humano existir seja por intermédio do absurdo em forma de um país solto do continente a vagar pelo oceano, uma epidemia de cegueira branca ou o nascimento de um filho de deus. Tantos absurdos que nos levam a refletir sobre o afastamento dos seres humanos, seu vagar sem rumo, a contagiosa ignorância, o medo da morte e a dor da culpa auto-imposta.

Sua ironia remonta aos tempos helênicos, como caminho para chegar à episteme, à perfeita consciência de saber-se sabedor.

Brincando com coisas sérias, Saramago leva o leitor a rir-se de sua própria miséria, e refletir sobre sua dura realidade, a imaginar um mundo mais leve porque menos culpado.

E assim se deu sua vida, leve e sem culpa.


Socó Pombo

quinta-feira, 17 de junho de 2010

domingo, 6 de junho de 2010

De Sofredores, Poetas e Poetas Sofredores

Imagem: Capela Sistina - Michelangelo

“O artista não exprime as suas emoções. O seu mister não é esse. Exprime, das suas emoções, aquelas que são comuns aos outros homens (...). Assim, o primeiro princípio da arte é a generalidade. A sensação expressa pelo artista deve ser tal que possa ser sentida por todos os homens por quem possa ser compreendida.”


Fernando Pessoa


“Para ter a alegria de dizer que não sou normal. E que escrever é a loucura de gramaticar erros.”


Alessandro Palmeira


O fato de não ser poeta me torna suspeito para falar sobre o fazer poético, ou sobre o conceito de poesia. Entretanto, isso não me impede de degustar poesia e pensar a respeito de seus melhores representantes.

É trivial ver poetas e apreciadores falando sobre inspiração, sentimento, introspecção e coisas igualmente diáfanas e incomensuráveis como interseção espiritual indispensável para o fazer poético. O poeta deve derramar sua alma, para ser autêntico. Se ele não sentir, não cria.

Diria Picasso: "Inspiração é uma maravilha. Pena que não apareça quando estou trabalhando."

A obra, qualquer que seja, nasce do trabalho. Não é à toa que é exatamente quando o escritor está trabalhando em seu texto que surgem as alternativas e resoluções de problemas para o andamento do mesmo. Mesmo quando vem aquela frase genial, a mesma não surge do nada, mas do trabalho do inconsciente, que aflora de repente. Não vem do nada, mas do esforço do autor para solucionar o texto. Tampouco é revelação divina.

Mudemos o foco do fazer para o feitor. Analisemos os grandes poetas. Será que Shakespeare e Goethe esperavam a inspiração para fazer falar suas almas? E o Pessoa, possuía oitocentas almas, cada uma com o estilo de um heterônimo? As cores e luzes de Borges e Milton foram inspiradas por sua cegueira? E Cabral de melo Neto, que sempre disse que sua poesia era puro trabalho, pois inspiração simplesmente não existe? Ainda sobre o talento: Goethe destruiu seu primeiro Fausto, escrevendo outro anos mais tarde. Talento desperdiçado?

Aqui devo deixar clara a definição de poesia que considero mais válida, embora não esgote o assunto. Coaduno a opinião de Janilto Andrade, que considera poesia como linguagem elevada ao máximo grau de significação. Que, ao invés de reduzir a poesia, amplifica até o infinito. Só descarta textos em prosa divididos em versos. Se o texto tem um sentido só, se não é carregado de referências, se cada palavra não é exata, então é um texto dividido em versos, e não poesia. Um ofício dividido em estrofes e rimas ricas não deixa de ser um ofício.
Um crítico inimigo nosso pega esses textos carregados de sentimentos e diz: "Isso é um tremendo vômito intelectual." Ou seja, o escritor que se resume a regurgitar-se, a falar de si mesmo, jamais será um profissional. Já pensaram se a Capela Sistina fosse uma série de auto-retratos de Michelangelo? Que falar de um ator que só interprete a si mesmo?

Lembro que a ideia do vômito intelectual não é minha, mas de um crítico literário. Achei importante colocá-la para as pessoas que escrevem poesia e pretendem ser publicadas. Os críticos pensam assim, e quem quiser profissionalizar-se deve atentar para isso. Envie um original molhado em lágrimas e outro com um texto enxuto e bem construído, e verá qual será publicado.
Toda arte é assim. Ou se busca o universal, ou deixa de ser arte.
Sartre fala bem sobre isso no Ser e o Nada, quando diz que não há diferença entre o ser e a aparência, afirmando que Proust não é um gênio pela capacidade de criar uma obra, mas pelo resultado da obra criada. É a obra o fenômeno em si, e não o potencial que a antecipa. Se o escritor não trabalha, não escreve, nunca será um gênio, simplesmente porque não aparecerá.
Ainda sobre o conceito de poesia que deixei, segue um exemplo do poeta Alessandro Palmeira:
"Na ausência da água, tomei a sede."
Cada palavra é exata. Não precisa ter a palavra amor, ou a palavra sofrer, ou lágrima, desejo ou tantas outras. Milhões de interpretações. Poesia para pensar e refletir por anos. Universal.
Evidentemente, quem precisa de um texto rápido (não confundir com texto curto – texto rápido é aquele que se esgota automaticamente, que não exige do leitor), carregado de palavras fáceis, na verdade prosa dividida em versos, não encara tal texto como poesia. Cadê o sentimento derramado? A introspecção do poeta?
Sirvo-me dessa interpretação negativa do poético comum em rodas de poetas para lembrar de Umberto Eco: um texto não quer dizer nada. Um texto não é seu autor: é seu leitor. É o leitor que dá sentido ao que vem no texto. Especialmente poesia. Se o autor não é capaz de sentir o que não sente, de provocar no leitor sentimentos e pensamentos que ele mesmo não traz em si, então ele não é escritor, apenas autor de textos escolares. Capazes de emocionar amigos e familiares, e que não dizem nada para os demais.

Outro ponto: nunca diferencio maniqueistamente razão e emoção. Só quem nunca ouviu falar em Freud faria isso. Assim como apenas alguém que nunca leu nada sobre neurociência, em especial neurilinguística, pode falar sobre escrever com o coração.
Não digo que qualquer um pode ser escritor apenas com trabalho. Mas ninguém o será sem isso. Ao menos eu nunca encontrei um. Talvez o Bukowski. Embora não duvide que ele sempre trabalhou seus textos.
Quando tinha dezesseis anos, vi uma mulher e inspirei-me a escrever uma estrofe. Depois de passada a primeira emoção, escrevi uma segunda. Meu amigo Márcio Jardson leu ambas e disse: "Interessante, a estrofe escrita sem inspiração ficou melhor que a outra." Desde então percebi que o sentimento que o escritor sente ao tecer o texto dissipa-se até para ele mesmo. Qual o poeta que lerá um poema de vinte anos e sentirá a mesma emoção que sentiu então? Emoções são emaranhados de substâncias químicas agindo no cérebro. O texto deve ser mais que isso.
Sobre a autenticidade do sentir do poeta: para quem acredita (e isso é realmente questão de fé) que poesia verdadeira tem que ser sentida, e que o sofrimento auxilia a criar autenticamente, aconselho que comece imediatamente a ler os melhores poetas: os haitianos

Amâncio Siqueira

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Liberdade de credo