sexta-feira, 18 de junho de 2010

Morre Saramago, um estilista brincalhão


Há muitos dias em que a cegueira branca parece ameaçar contagiar todo o mundo. Dezoito de junho de 2010 terá sido um desses dias para a literatura universal. Nesse dia, a voz de José Saramago já não voltará a erigir-se contra o absurdo dos seres humanos. Restam seus mais de quarenta livros, as centenas de entrevistas gravadas e impressas e o amor daqueles que não o poderão esquecer.

Não apresentarei aqui uma minibiografia do escritor português, único vencedor do prêmio Nobel em nossa língua. Saramago é tão universal, que será fácil encontrar sua biografia, resumos de suas obras e quaisquer minúcias de que careçam aqueles que ainda não o conhecem.

Ainda baqueado pela tristeza, deixo aqui apenas minhas impressões, carregadas de luto, da importância da obra daquele que considerava o maior escritor vivo.

Com apenas oitenta e sete anos, pode-se dizer que o escritor faleceu em plena flor da idade, no auge de sua lucidez, em plena forma e completa entrega ao trabalho, sem dúvida a maior diversão de sua grandiosa vida. Produzia como nunca, como a vislumbrar próximo o momento do inexistir.

O grande diferencial da literatura de Saramago é a subversividade. Não apenas o conteúdo do seu texto é veemente contra o absurdo das regras impostas, como a própria forma. Subversividade infantil, diria, pois é no humor, no lúdico que o escritor enfrenta o irracional de ser cordeiro. Brinca com a sintaxe, com a acentuação, com os discursos, criando um mundo só seu de possibilidades linguísticas. É essa a maior perda: a perda de um estilo de escrita que transforma o próprio texto em materialização da premissa, sendo ele próprio a história e não somente seu portador. Pois não é apenas um mágico absurdo a linguagem de Saramago, como suas próprias histórias, como se a única maneira de racionalizar o absurdo do humano existir seja por intermédio do absurdo em forma de um país solto do continente a vagar pelo oceano, uma epidemia de cegueira branca ou o nascimento de um filho de deus. Tantos absurdos que nos levam a refletir sobre o afastamento dos seres humanos, seu vagar sem rumo, a contagiosa ignorância, o medo da morte e a dor da culpa auto-imposta.

Sua ironia remonta aos tempos helênicos, como caminho para chegar à episteme, à perfeita consciência de saber-se sabedor.

Brincando com coisas sérias, Saramago leva o leitor a rir-se de sua própria miséria, e refletir sobre sua dura realidade, a imaginar um mundo mais leve porque menos culpado.

E assim se deu sua vida, leve e sem culpa.


Socó Pombo

Um comentário:

Anônimo disse...

Não poderia dizer melhor, Socó Pombo. Só nos cabe lançar fora de nossas mentes qualquer cegueira branca. Não apenas por dever de homenagem ao Saramago, mas como um favor para nós mesmos.