Há pouco estivemos numa conversa com Carpinejar, sobre o seu livro de crônicas Mulher Perdigueira, que vai já na segunda edição. O bate-papo aconteceu na livraria FNAC de Porto Alegre. O escritor gaúcho tem uma estratégia eficiente para disfarçar a timidez: trajando calça apertada vermelha, blusa multicolorida, óculos gigantescamente vermelhos e uma mochila preta, combinando com as unhas da mão esquerda, avisa a todo mundo que está na área. Na crônica que dá título ao livro o autor faz uma defesa dos ciúmes e da possessividade. Em todos os textos há um tom confessional, não para remissão de pecados, e sim de memórias ou desabafos de mesa de botequim. Não falta o riso, mesmo a gargalhada da embriaguez. O mesmo tom foi dado ao bate-papo, como o ouvinte poderá acompanhar no vídeo (peço que preste atenção apenas ao áudio, já que as poucas fotos são em má qualidade, o que ajuda a esconder a feiura dos personagens).Nada do rebuscamentos ou hierarquias de distanciamento. Em determinados momentos parecia até mesmo uma terapia em grupo sem psicologismos, tão íntimos ficaram todos. Um grupo de literaturólatras anônimos, com exceção de Fabrício. Destaque para minha sobrinha, Mariana, que aos dezesseis meses já participou ativamente do debate, fazendo salutares questionamentos e arrancando a admirada atenção dos participantes, inclusive do próprio autor. Entretanto, não se engane com a simplicidade das palavras de Carpinejar: há sempre uma poesia perdida nas entrelinhas, escorrendo pelas páginas, gotejando sobre o leitor.
“O artista não exprime as suas emoções. O seu mister não é esse. Exprime, das suas emoções, aquelas que são comuns aos outros homens (...). Assim, o primeiro princípio da arte é a generalidade. A sensação expressa pelo artista deve ser tal que possa ser sentida por todos os homens por quem possa ser compreendida.”
Fernando Pessoa
“Para ter a alegria de dizer que não sou normal. E que escrever é a loucura de gramaticar erros.”
Alessandro Palmeira
O fato de não ser poeta me torna suspeito para falar sobre o fazer poético, ou sobre o conceito de poesia. Entretanto, isso não me impede de degustar poesia e pensar a respeito de seus melhores representantes.
É trivial ver poetas e apreciadores falando sobre inspiração, sentimento, introspecção e coisas igualmente diáfanas e incomensuráveis como interseção espiritual indispensável para o fazer poético. O poeta deve derramar sua alma, para ser autêntico. Se ele não sentir, não cria.
Diria Picasso: "Inspiração é uma maravilha. Pena que não apareça quando estou trabalhando."
A obra, qualquer que seja, nasce do trabalho. Não é à toa que é exatamente quando o escritor está trabalhando em seu texto que surgem as alternativas e resoluções de problemas para o andamento do mesmo. Mesmo quando vem aquela frase genial, a mesma não surge do nada, mas do trabalho do inconsciente, que aflora de repente. Não vem do nada, mas do esforço do autor para solucionar o texto. Tampouco é revelação divina.
Mudemos o foco do fazer para o feitor. Analisemos os grandes poetas. Será que Shakespeare e Goethe esperavam a inspiração para fazer falar suas almas? E o Pessoa, possuía oitocentas almas, cada uma com o estilo de um heterônimo? As cores e luzes de Borges e Milton foram inspiradas por sua cegueira? E Cabral de melo Neto, que sempre disse que sua poesia era puro trabalho, pois inspiração simplesmente não existe? Ainda sobre o talento: Goethe destruiu seu primeiro Fausto, escrevendo outro anos mais tarde. Talento desperdiçado?
Aqui devo deixar clara a definição de poesia que considero mais válida, embora não esgote o assunto. Coaduno a opinião de Janilto Andrade, que considera poesia como linguagem elevada ao máximo grau de significação. Que, ao invés de reduzir a poesia, amplifica até o infinito. Só descarta textos em prosa divididos em versos. Se o texto tem um sentido só, se não é carregado de referências, se cada palavra não é exata, então é um texto dividido em versos, e não poesia. Um ofício dividido em estrofes e rimas ricas não deixa de ser um ofício.
Um crítico inimigo nosso pega esses textos carregados de sentimentos e diz: "Isso é um tremendo vômito intelectual." Ou seja, o escritor que se resume a regurgitar-se, a falar de si mesmo, jamais será um profissional. Já pensaram se a Capela Sistina fosse uma série de auto-retratos de Michelangelo? Que falar de um ator que só interprete a si mesmo?
Lembro que a ideia do vômito intelectual não é minha, mas de um crítico literário. Achei importante colocá-la para as pessoas que escrevem poesia e pretendem ser publicadas. Os críticos pensam assim, e quem quiser profissionalizar-se deve atentar para isso. Envie um original molhado em lágrimas e outro com um texto enxuto e bem construído, e verá qual será publicado.
Toda arte é assim. Ou se busca o universal, ou deixa de ser arte.
Sartre fala bem sobre isso no Ser e o Nada, quando diz que não há diferença entre o ser e a aparência, afirmando que Proust não é um gênio pela capacidade de criar uma obra, mas pelo resultado da obra criada. É a obra o fenômeno em si, e não o potencial que a antecipa. Se o escritor não trabalha, não escreve, nunca será um gênio, simplesmente porque não aparecerá.
Ainda sobre o conceito de poesia que deixei, segue um exemplo do poeta Alessandro Palmeira:
"Na ausência da água, tomei a sede."
Cada palavra é exata. Não precisa ter a palavra amor, ou a palavra sofrer, ou lágrima, desejo ou tantas outras. Milhões de interpretações. Poesia para pensar e refletir por anos. Universal.
Evidentemente, quem precisa de um texto rápido (não confundir com texto curto – texto rápido é aquele que se esgota automaticamente, que não exige do leitor), carregado de palavras fáceis, na verdade prosa dividida em versos, não encara tal texto como poesia. Cadê o sentimento derramado? A introspecção do poeta?
Sirvo-me dessa interpretação negativa do poético comum em rodas de poetas para lembrar de Umberto Eco: um texto não quer dizer nada. Um texto não é seu autor: é seu leitor. É o leitor que dá sentido ao que vem no texto. Especialmente poesia. Se o autor não é capaz de sentir o que não sente, de provocar no leitor sentimentos e pensamentos que ele mesmo não traz em si, então ele não é escritor, apenas autor de textos escolares. Capazes de emocionar amigos e familiares, e que não dizem nada para os demais.
Outro ponto: nunca diferencio maniqueistamente razão e emoção. Só quem nunca ouviu falar em Freud faria isso. Assim como apenas alguém que nunca leu nada sobre neurociência, em especial neurilinguística, pode falar sobre escrever com o coração. Não digo que qualquer um pode ser escritor apenas com trabalho. Mas ninguém o será sem isso. Ao menos eu nunca encontrei um. Talvez o Bukowski. Embora não duvide que ele sempre trabalhou seus textos. Quando tinha dezesseis anos, vi uma mulher e inspirei-me a escrever uma estrofe. Depois de passada a primeira emoção, escrevi uma segunda. Meu amigo Márcio Jardson leu ambas e disse: "Interessante, a estrofe escrita sem inspiração ficou melhor que a outra." Desde então percebi que o sentimento que o escritor sente ao tecer o texto dissipa-se até para ele mesmo. Qual o poeta que lerá um poema de vinte anos e sentirá a mesma emoção que sentiu então? Emoções são emaranhados de substâncias químicas agindo no cérebro. O texto deve ser mais que isso. Sobre a autenticidade do sentir do poeta: para quem acredita (e isso é realmente questão de fé) que poesia verdadeira tem que ser sentida, e que o sofrimento auxilia a criar autenticamente, aconselho que comece imediatamente a ler os melhores poetas: os haitianos
Ajoelhado com suas mãos apoiadas no chão ou no próprio corpo, ele admira sua face nas cristalinas águas de um lago maravilhoso e divino como seu reflexo que exalta a criação e o criador, beleza que encanta seu possuidor e, como num sonho, entrega-se ao prazer da contemplação. O sonho em tintas renascentistas cede suas cores e formas às mãos de Morfeu, senhor do abstrato, e transforma-se na sua verdadeira e louca face, absurda e caótica em busca de desvendamento ou eterna ocultação em obscuridade e mistério. Salvador Dalí olha sua face à beira de um lago e vê-se Narciso e Dalí, transmuta o mundo com sua visão e tintas, mostra a beleza anárquica de suas ilusões ao mundo, mundo onde tudo pode acontecer e em que o ornitorrinco sente-se envergonhado e, cabisbaixo, dá-se por derrotado, pois nem ele é tão estranho e genial. Dos ovos que nascem ornitorrincos, Dalí retira homens, plantas e ilusões, seu tempo derretendo-se ao escaldante sol faz-nos esperar o imprevisível e anormal em telas que, antes brancas, cederam aos toques da loucura: de Dalí, de Morfeu, de uma profecia de um existir irreal.
“Toda a alma contemporânea, violenta, revoltada, se desencadeia e deforma os corpos humanos; somos, com um pulo só, levados na vertigem. Amita sentiu-se arrepiando a essência da arte: a santa embriaguês, uma escapada heróica e desesperada, para fora do lugar e do tempo, para fora da lógica. As palavras desempenham um papel secundário: toda a embriaguês jorra do ritmo que embala os atores desenfreados.”
Nikos Kazantzakis
Palavras são pontes entre a psiquê humana e a realidade. Através delas o ser humano constrói sua alma, abstraindo de suas percepções o construto que poderá denominar universo. O vocabulário do homem traz as menores partículas e as maiores galáxias que compõem seu universo interior. As palavras moldam um mundo disforme e hostil. Uma palavra sem sentido para o homem comum é uma ponte que liga dois pontos ignorados. Inútil até que se saiba aonde leva. Para o poeta, todavia, toda ponte é útil, sendo ela própria um construto de beleza indevassada, de novos matizes descobertos a cada novo vislumbre. Cada ponte tem um destino de prazer e mistério. Para o poeta é suficiente que a ponte leve a si mesma. Para o vate não será suficiente encontrar os significados subjacentes da palavra cantada. Buscará a sua mais primitiva significação, aquilo que vai além da abstração, da ordem. A primitiva palavra que como Verbo criou o mundo do homem. A palavra como a coisa em si, como um ser concreto, que para além do homem confunde-se com a própria coisa e ainda assim é unidade autônoma, um elemento místico. As palavras postas em ritmo avassalador já não são blocos que constroem o entendimento humano, mas blocos de Verbo a compor a própria realidade vivenciada. Pontes do homem para si mesmo, para o subjacente espírito cravado em sua mente racional. Na grande literatura, na poesia, não é apenas no significado das palavras que reside seu segredo. Palavras são levadas até seu estado primitivo. O ritmo ganha maior importância. Cada palavra, com seu ritmo e sonoridade únicos, torna-se uma nota musical. O feitor do texto busca, assim, um cantar selvagem e belo, como o canto dos pássaros ou o uivo dos caninos. A maldição do poeta: sentir em sua alma todo o horror do urro selvagem do universo e mantê-lo preso, ecoando dentro de si, pois não há voz ou palavras que possam traduzi-lo.
Amâncio Siqueira - Trecho do romance Eu, no Hospício
Pôster do filme Zorba, o grego, baseado em obra homônima de Kazantzakis
“Há em mim um diabo que grita, e eu faço o que ele diz. Cada vez que eu estou a ponto de sufocar, ele diz: ‘Dança’, e eu danço.E isso me alivia! Uma vez, quando meu pequeno Dimitráki morreu, na Halkidikí, eu me levantei e dancei.Os parentes e amigos, ao me virem dançar assim diante do corpo,se precipitaram sobre mim para me fazer parar.‘Zorba ficou louco!’, eles gritavam. ‘Zorba ficou louco!’ Mas eu, se não dançasse naquele momento, aí sim, eu ficaria louco de dor. Porque ele era o meu primeiro filho e tinha três anos, e eu não podia suportar a sua perda. Você compreende o que estou dizendo, ou estou falando para as paredes?”
Mesmo perto é preciso olhar longínquo para o amor, como se contempla um pôr-do-sol, uma fotografia de quando criança, uma fotografia de uma partida. É preciso olhar longínquo, mesmo para si; há mais palavras no poema que imaginamos ser, há mais ternura, mais loucura, mais arcano. É preciso olhar longínquo para nudez da mulher amada, há algo muito além do corpo, há algo muito além da febre, a nudez da mulher possui algo tão sagrado que a própria poesia ajoelha-se em oração para rezá-la. O desejo é um origami da alma feito pelas mãos do louco que carregamos dentro, disse-me certa vez um hospício. É esse louco que melhor olha, que melhor sente, vive. É esse louco que nos faz transbordar sede, encorpar embriaguez, tocar o longínquo do amor. É esse louco de dentro que delineia a razão do amor. Mesmo perto é preciso olhar longínquo para as coisas tristes porque belas as olhando assim, porque passadas as olhando assim. Tudo é contentamento para olhos sedentos de paisagens. Tudo é tão dentro no amor, tão entranhado, arrebatado, que precisa-se fechar os olhos para enxergar. Precisa-se abreviar a razão, alargar o delírio. Olhei a loucura nos olhos e senti mais existência. Nunca me senti tanto. Estavam belos seus olhos, talvez porque tristes ou tristes porque talvez. Estavam. Contemplei com vagar a sua graça e a quis minha. Mesmo perto é preciso olhar longínquo, para Deus, para a dor, para o amor, para o poema nunca escrito. É imprescindível olhar longínquo para quase tudo, menos para a loucura, para a loucura é preciso olhar perto, sentindo o cheiro, sentindo o hálito, a febre; sentindo-se ela. É preciso olhar...
É impressionante como seus versos respiram. Como seus versos me ausentam. Depois de seus versos eu chego a partir, retirar-me, chego a ser lugar nenhum. Eles possuem batimentos cardíacos de ave em mãos de moleque travesso. É espantoso como seus versos existem; enchem as nossas mãos de mundo. É impressionante como seus versos acolhem o próprio abandono. Como seus versos desnudam e inquietam os olhos que os percorrem, a alma que os busca sentir. Gosto dos aromas que possuem os seus versos porque vindos do cerne de sua loucura, porque repletos de sua essência. É impressionante como seus versos, mesmo os mais lúcidos, me embriagam.
Hoje existi como quem habita um poema do Rimbaud. Encharcado de vinho e liberdade. Embebido de verbo. Sua poesia entardeceu meus olhos. Sua poesia tingiu de crepúsculo o meu olhar. Nomeio meus poemas para fingir intimidade. O que escrevo é o que me escapa, o que me transborda, o que me inunda. Meu desconhecido me envaidece, me faz poeta.Hoje acordei com cheiro de palavras nas mãos. Com a alma tatuada de verbo, com a elegância do silêncio da voz. Hoje algum poema me residiu.
A bengala, as moedas, o chaveiro, A dócil fechadura, as tardias Notas que não lerão os poucos dias Que me restam, os naipes e o tabuleiro. Um livro e em suas páginas a seca Violeta, monumento de uma tarde Sem dúvida inesquecível e já esquecida, O rubro espelho ocidental em que arde Uma ilusória aurora. Quantas coisas, Limas, umbrais, atlas, taças, cravos, Nos servem como tácitos escravos, Cegas e estranhamente sigilosas! Durarão para além de nosso esquecimento; Nunca saberão que nos fomos num momento.
Mirar el río hecho de tiempo y agua y recordar que el tiempo es otro río, saber que nos perdemos como el río y que los rostros pasan como el agua.
Sentir que la vigilia es otro sueño que sueña no soñar y que la muerte que teme nuestra carne es esa muerte de cada noche, que se llama sueño.
Ver en el día o en el año un símbolo de los días del hombre y de sus años, convertir el ultraje de los años en una música, un rumor y un símbolo,
ver en la muerte el sueño, en el ocaso un triste oro, tal es la poesía que es inmortal y pobre. La poesía vuelve como la aurora y el ocaso.
A veces en las tardes una cara nos mira desde el fondo de un espejo; el arte debe ser como ese espejo que nos revela nuestra propia cara.
Cuentan que Ulises, harto de prodigios, lloró de amor al divisar su Itaca verde y humilde. El arte es esa Itaca de verde eternidad, no de prodigios.
También es como el río interminable que pasa y queda y es cristal de un mismo Heráclito inconstante, que es el mismo y es otro, como el río interminable.
Pintura: Thomas Gainsborough - Robert Andrews and His Wife
O que mais me alucina é um olhar triste quando quer sorrir. Um sapato distante do seu par também me alucina. Como a companhia de uma solidão a dois. Maria é professora de português. Profere que gosta de minhas palavras; mas, segundo ela, só escuta o silêncio de minhas frases. Diz que minhas palavras me calam, enquanto penso que elas expressam-me. Um escritor se faz com os silêncios de suas palavras. No amor alucino qualquer razão para que o declarar seja intenso. A palavra nuança o amor, nubla o amor. O amor insinua-se rubor na face, cerrar de pálpebras num último aceno, insinua-se despedida para ser logo acolhido. O amor deseja ser embalado pelos silêncios das cantigas de ninar. Quem nunca confessou o amor apenas com a ternura do olhar? Quem nunca cantou sua canção favorita sem um rumor sequer? Quem nunca leu um poema nos olhos da pessoa amada? Palavra não quer dizer intimidade. A intimidade possui outras vestes, diferente do amor. O amor se veste com adequada nudez. No amor nem toda centelha é fogo. Seu rosto de noite é travessura. Ebriedade. Seu rosto de noite é solidão. Seus cílios se afeiçoam a tristeza, se afeiçoam a loucura. A loucura é sua melhor razão. Maria diz saber ouvir o dormir de minhas palavras. O rumor da palavra apenas assusta a ternura, continua. Quanto às palavras, eu as cultuo como a um deus. As palavras vestem a ternura, dão-lhes trajes de festa. Em silêncio a linguagem ajoelha-se para melhor rezar a palavra pecado. No silêncio da palavra pecado é onde reside a sua santidade. No silêncio do amor os amantes melhor se ouvem. Maria chora em silêncio um amor que não teve. Minha poesia chora em palavras por um dia que não houve haver.
A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.
Quando criança dava nome a todas as estrelas que contemplava. Maria, Letícia, Eva, Joana, Eulália, Beatriz. Todas enleios meus. Eram tristes esses devaneios, estavam sempre mergulhados num sentimento de solidão debelada. Um desvario com cheiro, inocência e amplidão. Uma criança com medo, poesia e cílios castanhos. Queria provar o gosto do seio de cada uma delas, calcar cada infinito pra chegar até elas, mesmo estando com peito cansado e coração repleto de sentimentos tenros. Quando criança, porco era “apuis”, água era puá, cigarro Hollywood era Luluiud, Continental era Comental. Tinha melhor vocabulário do que hoje. Quando criança pedia desculpas a Deus por roubar manga no colégio, por comer escondido em baixo da mesa da cozinha a margarina do café; por não saber chorar baixinho. Quando criança roubava doces para as formigas, queria vê-las com os dentes cariados. Quando criança rezava em voz alta pra chegar amplificado aos ouvidos de minha avó, e lhe ouvir dizer: “Escuta, Socorro, o menino rezando!” Minha mãe ria compreendendo o meu rezar. Quando criança meus fantasmas de hoje ainda molhavam as fraldas, e eu pra não ficar pra trás os acompanhava. Quando criança provei do corpo de cristo e não gostei de senti-lo nas estrelas da boca. Quando criança tinha uma tristeza me habitando o paraíso. Quando criança alucinava baixinho qualquer vontade de voar, pra não cair do alto de minha ilusão. Namorei uma menina da escola durante três meses sem ela saber; o namoro terminou assim que ela soube. Quando criança chorava em segredo o pranto miúdo de minha avó. Pintava com meu avô suas derradeiras ilusões de político, até ele partir politicamente correto de paletó, gravata e meias furadas. Quando criança, tive a altivez de uma noite eterna. Quando criança, minha última estrela se chamou Socorro.
Demiurgo. A vida é minha dádiva, a paga é o gozo. Sonho e devaneio, onírico orgasmo. Crio apenas pelo prazer. O sangue branco que sai de mim já não me pertence. Falanges fálicas marcham para além do meu saber e do ego ignorado. Em cada breve gozo uma legião de significados corre a germinar. Semente. Para além do humano. O homem novo.