quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Boas festas repletas de livros a todos

Não é à toa que diversos deuses escolheram nascer em vinte e cinco de dezembro. Mudança de estações, renovação do ciclo solar, a natureza se altera nessa época.
Não importa se as pessoas querem comemorar o nascimento de Shiva, Jesus, Dioniso, Hórus ou do Papai Noel, ou apenas reunir as pessoas amadas em volta do fogo familiar para rememorar os que se foram e reverenciar os que se vão, abraçados aos que conosco permanecem.
Boas festas e uma nova vida repleta de prazer e sabedoria.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Estorvos de Chico Buarque


Entre os gargalos para a criação literária, há dois que podem ser indicados como os piores estorvos: nomes de personagens e soluções de continuidade.
Sobre o primeiro não há muito a esclarecer para o não escritor: se já há uma dificuldade em nomear um filho, imagine dar nome a dezenas, sem se repetir e procurando associar o nome à personalidade e ainda ser fiel à geografia e à história.
As soluções de continuidade têm a função de ligar os fatos, para transformar contos isolados em romance. O escritor tem ideias geniais a todo momento. O problema é que, via de regra, as grandes ideias são para grandes momentos, momentos de clímax dramático. Ocorre que a narrativa longa não é uma linha reta, mas um movimento de onda, e não é possível manter a história sempre na crista da onda. Entre um moinho de vento e a nomeação de Sancho Pança a governador deve haver uma ligação, uma transição em geral chata de escrever (e por isso mesmo o autor sempre acha que será chata também de ler, tentando resumi-la ao máximo).
Para estes dois problemas Chico Buarque conseguiu soluções fáceis e nada ortodoxas para seu romance Estorvo: a abolição de nomes e soluções de continuidade.
Mesmo o estorvo – digo, personagem – principal não tem um nome. São minha mãe, minha irmã, meu cunhado, a magrinha, a índia, o negro com sunga que imita uma onça, o ex-pugilista, os irmãos gêmeos, o delegado, o caseiro, a magrinha, o amigo, a irmã do colega que dava festas, a menina. Apenas o copeiro em determinado momento recebe um nome, a aqui Buarque pretende mostrar que pode ser criativo também nessa matéria: Hidrólio.
Os capítulos também se sucedem sem qualquer ligação. Há uma ordem cronológica, mas a narrativa começa e termina, não apenas em cada capítulo, como em todo o conjunto, sem que o leitor saiba de onde veio ou para onde vai.
Contudo, encarar a ausência de nomes e ligações apenas como uma cômoda solução para a escrita seria uma análise superficial e mesmo uma simplificação leviana.
Analisando mais cuidadosamente, podemos perceber que não foi a preguiça ou um apertado prazo de entrega que levou o autor a criar assim sua história. Há na ausência de nomes um distanciamento do personagem, uma ausência de emotividade que nos leva a ignorar o absurdo de sua existência. Ora, esse mesmo distanciamento há entre o personagem e sua mãe, sua irmã e os demais. Não há nomes que os identifiquem porque não há uma identificação. Na verdade, sequer o personagem consegue identificar-se a si ou consigo mesmo.
Essa falta de identificação amplia o efeito do absurdo da narrativa. Os fatos que vão nos estorvando sucessivamente estorvam ainda mais por não conseguirmos reconhecer a realidade daqueles que os vivenciam.
Em determinados momentos sequer sabemos se é o sonho ou a realidade que estorva. E o próprio personagem que narra em primeira pessoa no presente (fato que deveria nos aproximar do narrador, mas não acontece) também sente o mesmo. E eis o grande trunfo: fatos em si terríveis nos aparecem como amiúde as notícias de jornal: sem qualquer sentimento de empatia, como advindos de uma outra realidade.
Realiza-se uma crítica social não apenas das situações limite entre os estratos sociais. Uma crítica ao nosso modo vazio de viver, numa anestesia coletiva que bloqueia mesmo nossos instintos mais primevos, como o sexual e o de sobrevivência.
Estorvo é um perfeito emblema de nossa sociedade. O absurdo torna-se cotidiano e já não nos chocamos. Anônimos, já não conseguimos sentir o que o outro sente, ou sequer compreender o que nós mesmos sentimos. Mesmo que saibamos seu nome.


Socó Pombo

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

De teocracias disfarçadas e a última minoria


“Os loucos, aleijados, cegos e mudos são homens em quem os demônios fizeram a sua morada. Os médicos que curam estas enfermidades como se tivessem causas naturais são idiotas ignorantes.
As pessoas deram ouvidos a um astrólogo novato (Copérnico) que lutou para provar que a terra é que gira, não os céus ou o firmamento, o sol e a lua. Este louco quer contrariar toda a ciência da astronomia. Mas as Sagradas Escrituras dizem-nos (Josué 10:13) que Josué ordenou que o sol parasse e não a Terra.
A Razão deveria ser destruída em todos os cristãos. Ela é o maior inimigo da Fé. Quem quiser ser um cristão deve arrancar os olhos da sua Razão.”


Martinho Lutero


Para os líderes religiosos radicais, não basta elevar o vício da ignorância a virtude imprescindível para a salvação. Também precisam demonizar aqueles que não concordam com isso. Mais, fazem o caminho inverso e transformam a inteligência em pecado, a razão em apostasia, a sabedoria em heresia.
Já escrevi sobre a imposição a todos de dogmas que deveriam ser privados e sobre os problemas de uma democracia que dá às maiorias o direito de impor-se sobre as minorias. Na ocasião, alguns me acusaram de fundamentalizar os contrários ao aborto e de subverter o conceito de democracia. Poucos meses depois, vimos uma disputa eleitoral ir ao segundo turno graças a uma minoria populacional que detém um grande poder econômico e midiático e quer mandar na maioria, mudando a agenda política para tirar o foco das grandes questões nacionais e colocar em discussão opiniões sobre temas que não competem ao poder executivo, e sim ao legislativo. Os pastores evangélicos mobilizam-se para usar seu rebanho imerso na ignorância a uma cruzada para estabelecer uma nova idade das trevas, dessa vez com sermões via satélite. Os mesmos satélites que foram criados por cientistas “imorais e demoníacos” no passado.
Além da televisão, outro produto de “impiedosos filhos de Satanás” que agora serve para propagar seus preconceitos, sua intolerância e seu ódio é a internete. Milhares de emeios, postagens em blogues, fóruns e redes sociais dão o recado do fundamentalismo: não toleraremos qualquer avanço nos direitos humanos, em especial no que tange a mulheres e homossexuais. O próximo passo? Abolir religiões de origem africana ou indígena. Afinal, eles lutaram por liberdade religiosa enquanto não possuíam o poder que detêm agora. Devem erradicar qualquer outro deus, já que o deles é o único. Uma denominação religiosa monoteísta só defende liberdade de culto quando é minoria.
Os pastores e padres não aceitam tratamento com células-tronco embrionárias. Por quê? Aos fiéis, dizem que por princípios cristãos. Mas será um princípio cristão condenar pessoas a deficiência e dor quando se pode salvá-las? Há apenas um motivo para que a religião lute tanto contra o avanço na medicina: se todas as doenças fossem curadas pela ciência, não haveria tantos desiludidos da realidade iludindo-se com as curas imaginárias das igrejas.
No primeiro mandato de Lula fiquei pasmo com o destaque que a imprensa deu à declaração do cardeal Eusébio Scheid, que disse: “Lula não é católico, é caótico.” Vários jornalistas cercaram o presidente da República para cobrar-lhe uma resposta, como se qualquer cidadão, inclusive um Chefe de Estado, fosse obrigado a ser católico. Pior, Lula respondeu defensivamente, confirmando tal obrigatoriedade.
Agora são os evangélicos e grupos católicos de orientação fascista que querem obrigar os candidatos a alinharem-se aos seus dogmas. Sob o emblema da família e dos valores morais cristãos, escondem seu patriarcalismo, seu ódio a todos que ousam ser diferentes.
O mais cruel é que o PSDB, que já sofreu com uma campanha difamatória semelhante quando Fernando Henrique Cardoso, concorrendo à prefeitura de São Paulo em 1985, teve seu ateísmo explorado pela campanha de Jânio Quadros, agora se utiliza do mesmo expediente sem qualquer receio. Muitos PSDBistas acusam o PT de demonizar FHC ao comparar os períodos em que estes partidos estiveram na presidência. Qualquer pessoa isenta perceberá na campanha serrista do segundo turno que é o próprio PSDB que demoniza o ex-presidente. Não bastasse eles tentarem esconder FHC no primeiro turno, agora vão para o ataque contra pessoas com o seu perfil. Espalham-se os emeios que dizem que os “ateus satanistas” (sic) querem dominar o mundo e instituir uma “ditadura homossexual”, com direito a “comer criancinhas e legalização da maconha”. Escondem ainda mais Fernando Henrique, que participa de um grupo internacional que defende a descriminalização da erva.
Dilma, para não perder votos, enreda-se no esvaziamento do discurso eleitoral e se vê na necessidade de deixar de lado os grandes temas como saúde, direitos humanos e educação. Aliás, o manifesto dos reitores do Brasil em favor de Dilma, por considerá-la a melhor candidata para fazer avançar o ensino superior no Brasil, é um verdadeiro fogo amigo contra a candidata, já que para fundamentalistas falar em avanço da educação é falar em escassez de fiéis, digo, de “domínio do demônio” sobre uma sociedade racional, quer dizer, “ímpia”.
O fato é que, a depender dos líderes cristãos, a Terra ainda seria o centro fixo e achatado do universo e estaríamos tratando as doenças com exorcismos (na verdade, anda há muitos doentes procurando esse tipo de tratamento).
Os ateus são chamados diuturnamente de imorais e criminosos, e tal preconceito é ampliado na campanha eleitoral. Os ateus são a última minoria, a mais marginalizada e hostilizada. Sempre que um crime bárbaro é cometido, seu autor é taxado como alguém “sem deus no coração”. É imperativo que aqueles sem deus (na mente, no coração ou em qualquer outro lugar) demonstrem que são seres humanos morais, responsáveis, preocupados não com crenças de foro íntimo, e sim com o bem-estar social e os direitos humanos. Enquanto os ateus se calam e se escondem, com um discurso de não se declarar para não criar problemas com os religiosos, estes perseguem aqueles em seus púlpitos e na vida pública, condenando-os ao inferno, no qual desejam avidamente que queimem junto com homossexuais, mulheres insubmissas e tudo o mais que não se adéque ao padrão patriarcal do seu cristianismo do orgulho branco.
Quando José Serra fala em “valores religiosos das pessoas de bem”, insinua que quem não tem valores religiosos não presta. O próprio termo “cidadão de bem” subverte o conceito de cidadania, gerando o ideia de uma divisão dos cidadãos em diferentes castas sociais. São os “nós”, cristãos de classe alta, urbanos, esbranquiçados, heterossexuais defensores da vida, contra os “eles”, os promíscuos, degenerados, anticristãos, ateus. Não é necessário dizer que os “nós” possuem os meios de comunicação e o poder econômico para difundir seus preconceitos como uma verdade inalienável.
Caminhamos a passos largos para um estado teocrático, com líderes religiosos radicais elaborando as leis que devem reger a todos. Religiosos de outros credos, cristãos moderados, agnósticos e ateus que se calarem agora não poderão reclamar quando forem obrigados à conversão, ao ostracismo, quando estiverem no exílio da vida pública.
Ou na fogueira.


Amâncio Siqueira

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A inocência baleada do coronel Nascimento


A esperança foi baleada e respira com a ajuda de aparelhos na UTI. Torcemos para que ela abra os olhos, sem perceber que são nossos olhos que precisam abrir-se.
Tropa de Elite 2 é uma poderosa metáfora. E também uma tese de sociologia:
O sistema estende seus tentáculos a uma distância muito maior do que podemos captar, e sabe usar tudo que toca, mesmo aqueles que pensam combatê-lo.
Capitão Nascimento, agora coronel, passa por uma jornada que, de tão oposta, é idêntica à de Dom Vito Corleone, que no capítulo final de O Poderoso Chefão descobre que, quanto mais tentamos legalizar nossas ações, mais afundamos no lamaçal de um sistema inerentemente corrupto.
As atuações magistrais do todo o elenco abrilhantam o genial roteiro. Há um duro aprendizado não apenas para Nascimento, como para todos nós. A realidade subjacente estapeia nossas caras e diz: vocês são moleques. Peçam pra sair.
O sistema não tem um comando central. Como a Hidra de Lerna, crescem-lhe novas cabeças à medida que uma é cortada. Seus tentáculos multiplicam-se. Vencê-lo é um trabalho hercúleo.
Devemos deixar de lado o simplismo das ideologias, seja à esquerda ou à direita, e compreender como o sistema funciona em suas mais profundas raízes. Sim, esta obra-prima do nosso cinema é também uma lição.E não são apenas seus personagens que aprendem da forma mais dolorosa.
Socó Pombo

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Vargas Llosa é sexto escritor latino-americano a ganhar o Nobel


Mario Vargas Llosa (nascido Jorge Mario Vargas Llosa; Arequipa, 28 de março de 1936), escritor, jornalista, ensaista e político peruano, foi laureado com o Nobel de Literatura de 2010.
Nascido em uma família de classe média, único filho de Ernesto Vargas Maldonado e Dora Llosa Ureta, seus pais separaram-se após cinco meses de casamento. Com isto o menino não conheceu o pai até os dez anos de idade.
Sua primeira infância foi em Cochabamba, na Bolívia, mas no período do governo José Luis Bustamante y Rivero, seu avô obtém um importante cargo político no governo, em Piura, no norte do Peru, e sua mãe retorna ao Peru, para viver naquela cidade.
Em 1946 muda-se para Lima e então conhece seu pai. Os pais reconciliam-se e, durante sua adolescência, a família continuará vivendo ali.
Ao completar 14 anos, ingressa, por vontade paterna, no Colégio Militar Leôncio Prado, em La Perla, como aluno interno, ali permanecendo por dois anos. Essa experiência será o tema do seu primeiro livro - La ciudad y los perros ("A cidade e os cachorros", em tradução livre), publicado no Brasil como "Batismo de Fogo" e, posteriormente, como A cidade e os cachorros. Nesta obra aborda a psicologia dos jovens incitados ao militarismo.
Em 1953 é admitido na tradicional Universidad Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, a mais antiga da América. Ali estudou Letras e Direito, contra a vontade de seu pai. Aos 19 anos, casa-se com Julia Urquidi, irmã da mulher de seu tio materno, e passa a ter vários empregos para sobreviver: atua como redator mas também fichando livros e até mesmo revisando nomes em túmulos nos cemitérios. Em 1958 recebe uma bolsa de estudos "Javier Prado" a vai para a Espanha, onde obtém doutorado em Filosofia e Letras, na Universidade Complutense de Madri. Após isso vai para a França, onde vive durante alguns anos.
Em 1964 divorcia-se de Júlia e em 1965 casa-se com a prima Patrícia Llosa, com quem tem três filhos, Álvaro, Gonzalo e Morgana.
Em 1987 inicia o movimento político liberal contra a estatização da economia, o que ia de encontro ao presidente Alan García.
Em 1990 concorre à presidência do país com a Frente Democrata (FREDEMO), partido de centro-direita, mas perde a eleição para Alberto Fujimori.

Sua obra critica a hierarquia de castas sociais e raciais, vigente ainda hoje, segundo o escritor, no Peru e na América Latina. Seu principal tema é a luta pela liberdade individual na realidade opressiva do Peru. A princípio, assim como vários outros intelectuais de sua geração, Vargas Llosa sofreu a influência do existencialismo de Jean Paul Sartre. Muitos dos seus escritos são autobiográficos, como "A cidade e os cachorros" (1963), "A Casa Verde" (1966) e "Tia Júlia e o Escrevinhador" (1977).
Por A cidade e os cachorros (também publicado no Brasil com o título Batismo de Fogo) recebeu o Prêmio Biblioteca Breve da Editora Seix Barral e o Prêmio da Crítica de 1963. Sua obra seguinte, A Casa Verde mostra a influência de William Faulkner. O romance narra a vida das personagens em um bordel, cujo nome dá título ao livro.
Seu terceiro romance, Conversa na Catedral publicado em 4 volumes e que o próprio Vargas Llosa caracterizou como obra completa, narra fases da sociedade peruana sob a ditadura de Odria em 1950.
Há um encontro na Catedral entre dois personagens: o filho de um ministro e um motorista particular. O romance caracteriza-se por uma sofisticada técnica narrativa, alternando a conversa dos dois e cenas do passado. Em 1981 publica A Guerra do Fim do Mundo, sobre a Guerra de Canudos, que dedica ao escritor brasileiro Euclides da Cunha, autor de Os Sertões.
Em 7 de outubro de 2010 foi agraciado com o Prêmio Nobel da Literatura pela Academia Sueca de Ciências "por sua cartografia de estruturas de poder e suas imagens vigorosas sobre a resistência, revolta e derrota individual". Em declaração à rádio colombiana RCN nesta quinta, o escritor peruano afirmou que se surpreendeu com a escolha e disse que o prêmio é "um reconhecimento" à literatura latino-americana e em língua espanhola. "Não pensava que estaria nem entre os candidatos", brincou o autor. "Por mim, vou seguir trabalhando com um sentimento de responsabilidade, como sempre fiz. Defendendo coisas que são fundamentais para o Peru, para a América Latina e o mundo. A liberdade e a democracia são o verdadeiro caminho do progresso, da verdadeira civilização, que acredito que seja o papel de um escritor defender", comentou Llosa à rádio.
Mario Vargas Llosa é apenas o sexto escritor latino-americano a receber um Nobel. Antes dele, foram premiados a escritora chilena Gabriela Mistral (1945), o guatemalteco Miguel Ángel Asturias (1967), o também chileno Pablo Neruda (1971), o colombiano Gabriel García Márquez (1982) e o mexicano Octavio Paz (1990).

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Considerações sobre os livros eletrônicos

Artigo do Wall Street Journal analisa o mercado editorial do ponto de vista de livreiros e escritores, como pode ser conferido após minhas considerações.
Embora o artigo trate da realidade estadunidense, não é difícil perceber a implicação da entrada do livro eletrônico no mercado brasileiro. Os novos autores, que parecem ter uma capacidade de replicação infinita, costumam tratar o livro eletrônico como o momento da virada que redimirá os estreantes, garantindo-lhes a publicação e o sucesso de vendas. A realidade não é bem essa. O artigo mostra o oposto. Sem uma crítica literária que possa abordar todos os autores estreantes, sem o livro na prateleira pronto para ser folheado pelo leitor, sem os custos do livro físico que exigem da editora uma propaganda ativa, o mercado tende a ser dominado pelos best sellers.
Nos Estados Unidos, os adiantamentos para estreantes estão menores, imagine no Brasil, onde tais adiantamentos nunca existiram? Pior, lá sempre houve uma valorização do autor estreante, uma busca pelo novo escritor da moda, um mercado de livreiros empenhados em procurar novos talentos. Nada disso acontece ou já aconteceu em nosso país. Pelo contrário, as editoras nacionais temem o novo escritor e preferem buscar best sellers internacionais. Os leitores também seguem essa tendência.
Diante de tudo isso, parece que os livros eletrônicos anunciam o fim definitivo das aspirações dos novos escritores.
A não ser que queiram distribuir seus livros gratuitamente na internete.

Socó Pombo


Segue o Artigo por Jeffrey A. Trachtenberg

Quando a agente literária Sarah Yake ofereceu a algumas editoras o romance de estreia de Kirsten Kaschock, chamado "Sleight", ela pensava que seria um sucesso imediato com os editores nova-iorquinos."O projeto dela foi um dos melhores dos últimos dez anos", diz Jed Rasula, que desde 2001 leciona no departamento de letras da Universidade da Georgia. "Eu tinha certeza que ela encontraria uma editora em Nova York."

Mas as grandes editoras da cidade rejeitaram "Sleight", um romance sobre duas irmãs que são treinadas numa arte fictícia. Agora o livro será publicado pela Coffee House Press, uma pequena editora de Minneapolis que ofereceu a Kaschock um adiantamento de US$ 3.500 — uma pequena fração do que as grandes editoras costumavam pagar.

Sempre foi difícil para um autor estreante conseguir publicar seu livro numa grande editora. Mas a revolução digital que está mudando o modelo econômico da indústria editorial tem tido um impacto exagerado na carreira dos escritores.

Por ter preços menores que os de livros tradicionais, muitas edições digitais rendem menos para as editoras. E as grandes varejistas têm comprado menos títulos. O resultado é que as editoras que acalentaram gerações de escritores americanos passaram a fechar menos acordos com escritores estreantes. A maioria dos que conseguem a publicação tem recebido adiantamentos menores.

"Os adiantamentos encolheram e não há tanta gente estreando como antes", diz Ira Silverberg, uma conhecida agente literária. "Estamos todos tentando entender como vai ficar o negócio enquanto ele passa por essa turbulência digital.

"Da mesma maneira que a música barata na internet fez com que menos bandas conseguissem ganhar a vida fechando contratos com gravadoras, à medida que o e-book se popularizar, menos escritores conseguirão se sustentar, dizem editores e agentes. "Em termos de ganhar a vida como escritor, é melhor que você tenha outra fonte de renda", diz Nan Talese, cujo selo Nan A. Talese/Doubleday publica autores como Ian McEwan, Margaret Atwood e John Pipkin.

Em alguns casos, pequenas editoras estão atendendo à demanda e fechando contratos com escritores promissores. Mas elas oferecem em média US$ 1.000 a US$ 5.000 de adiantamento, em comparação com US$ 50.000 a US$ 100.000 que as grandes editores geralmente pagavam por um livro de estreia.

As novas relações econômicas do livro eletrônico mostram bem o problema enfrentado pelos escritores: um livro de capa dura de US$ 28 rende metade disso à editora, e 15%, ou US$ 4,20, para o autor. Em vários acordos de publicação de e-books recentes, um livro digital é vendido por US$ 12,99, rendendo US$ 70% à editora e geralmente 25% do total, ou US$ 2,27, para o autor.

Em resumo: o autor fatura com a venda de um e-book pouco mais da metade do que obtinha com a de um livro de capa dura.O faturamento menor gerado pelos livros digitais é um fenômeno que ocorre ao mesmo tempo em que caem as vendas de livros. As aparentemente infinitas opções de entretenimento criadas pela internet roubaram o tempo que as pessoas costumavam passar lendo. A fraqueza da economia também tem contribuído para esse declínio."Não existe uma geração de leitores hoje em dia que possa sustentar escritores do jeito que os jovens sustentavam J.D. Salinger e Philip Roth quando eles estavam começando", diz Talese, que é casada com o escritor Gay Talese.As vendas de livros chegaram ao auge nos EUA em 2008, com 1,63 bilhão de unidades, excluindo volumes educativos e técnicos, e devem cair para 1,47 bilhão este ano e 1,43 bilhão em 2012, diz Albert Greco, pesquisador do mercado editorial.

Já as vendas de livros eletrônicos estão crescendo rapidamente. Calcula-se que os e-books já respondam por cerca de 8% do faturamento total da venda de livros, ante 3% a 5% um ano atrás. Mike Shatzkin, consultor editorial, calcula que os e-books podem evoluir para 20% a 25% do total de vendas até 2012. "Os livros digitais vão acabar substituindo os livros de papel", prevê Greco.Alguns especialistas no setor editorial dizem que os preços menores dos e-books podem resultar em vendas maiores no futuro. Mas ainda não se sabe se eles vão compensar a perda da receita obtida com os livros de capa dura.

Embora os e-books ainda estejam começando, as editoras afirmam que o adiantamento médio dos livros de ficção já está encolhendo. Para comprar os direitos de publicação e distribuição de um livro, as editoras pagam adiantamentos das futuras vendas do livro. Depois que o livro é publicado, o autor recebe um royalty do qual é descontado o adiantamento. Quando as vendas quitam o adiantamento, o escritor começa a receber uma porcentagem da venda de cada livro.

Sempre vai existir aquele escritor sortudo cujo livro de estreia é disputado pelas editoras. Mas muitos romances de estreia que teriam recebido adiantamentos lucrativos cinco anos atrás passaram a receber US$ 15.000 ou menos atualmente, diz Adam Chromy, um agente literário nova-iorquino. Chromy ficou decepcionado recentemente com a resposta das editoras a um romance de estreia que ele achou muito bom."O nível de exigência aumentou", diz Jamie Raab, editor do selo Grand Central Publishing, da Lagardère SCA, que tem publicado menos livros de estreia que antes. Embora lançar livros de estreia seja um das atividades de maior retorno no mundo editorial, diz Raab, "as editoras estão publicando mais seletivamente, os agentes estão ficando mais exigentes na hora de escolher os clientes e os varejistas estão distribuindo menos títulos".

O e-book é uma boa notícia para alguns. Ele está aumentando a demanda por autores e livros famosos, considerados comerciais, porque muitos de seus leitores tendem a preferir best-sellers com tramas complexas. Diferentemente das livrarias tradicionais, em que um cliente pode descobrir um livro numa prateleira, as lojas de e-books geralmente não são formatadas para permitir que as pessoas achem novos autores, dizem agentes. Os escritores famosos e seus polpudos orçamentos de marketing é que estão conseguindo vender bem nesse novo mercado.

Em julho, a Amazon.com Inc. anunciou que o falecido escritor sueco Stieg Larsson, cujo romance "Os Homens que Não Amavam as Mulheres" abre uma trilogia de livros de mistério, é o primeiro escritor a vender mais de 1 milhão de cópias digitais para o leitor Kindle.

O celebrado escritor americano Jonathan Franzen, que já é considerado um dos principais autores dos Estados Unidos, tem conseguido vender bem as cópias eletrônicas de seu novo romance, "Freedom", que já totaliza 35.000 cópias nas primeiras duas semanas desde o lançamento, em 31 de agosto."Os grandes best-sellers ainda são as obras que impulsionam os lucros das editoras e dos escritores — e são esses os livros que os leitores de livros eletrônicos estão comprando", diz Laurence Kirshbaum, um agente literário nova-iorquino.

A situação é diferente para os autores estreantes e os de menos apelo comercial, cujas tiragens às vezes não chegam a 10.000 livros. Kirshbaum diz que tem sido difícil vender às editoras um romance de estreia sobre a vida numa cidade pequena, porque muitos editores não querem mais apostar em escritores novos tendo em vista a possibilidade de que suas habilidades narrativas evoluam com o segundo, terceiro e quarto livros. Antigamente, muitos escritores conseguiram ficar conhecidos por causa dessa paciência, diz Kirshbaum."Escritores como Anne Tyler e Elmore Leonard tiveram que cozinhar bastante antes de ferverem. As editoras não têm mais paciência para esperar um autor que só consegue vários sucessos modestos", diz Kirshbaum. "Há o perigo de perdermos essas pessoas."

domingo, 3 de outubro de 2010

De caso com Destino



As mãos trêmulas com o peso do passado procuravam um rumo.
Só sentia o corpo gelado como madrugada de nevasca.
Assim ela chegou de forma inesperada como acidente em curva perigosa, era a saudade.
E o coração ficou trincado como lago congelando na superfície.
A prótese implantada não conseguiu suportar a pressão, e novamente estava o destino sem poder ser percorrido sem marcas explícitas na sua vida.
A tristeza escondida na escuridão dos dias existia em agonia. O amor que ainda não sabia quem era, só sabia que existia.
A lembrança decidiu abrir as cortinas para aqueles olhos que agora pensavam em chorar.
Mais tarde era um sonho longe de percorrer.
Ah, sim, era muito longe.
Brincar de fazer origami com tempo quando a imaginação já não tem asas pra voar.
Os joelhos estão feridos de preces rogadas, e os olhos já não acreditam no milagre da cruz.
E os temores infantis ainda estão guardados no porão da minha vida.
Abrir a porta dos medos; ela ousará?
Não. Não ousará. Sentir já dói muito.

Izabel Goveia

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Intensidade

A fala que se segue é do personagem Giordano Bruno, no meu romance A Ceia das Cinzas. A primeira frase é do personagem histórico que inspira o livro.

A bela ordem e hierarquia da natureza são um sonho ingênuo e um gracejo de velhas decrépitas.

Aqueles que falam em viver intensamente referem-se ao oposto do que exprimem. Viver intensamente para eles significa dedicar-se o máximo possível a afazeres que os distraiam da vida. Colecionar passatempos, eis ao que se referem. Com vida intensa dizem fuga da vida.

Pois ninguém quer verdadeiramente viver intensamente.

A vida é tédio e sofrimento, acordar, labutar e dormir, um castigo de Sísifo só encerrado pela morte, que nos cerca dia a dia. Feliz é aquele que gasta todas as suas energias com divertimentos, perdido no esquecimento do permanente esgotamento de sua vitalidade.

Se alguém quisesse sinceramente uma vida intensa, não se dedicaria com tamanho afinco a fazer que o tempo, em ligeira fuga, arraste para longe a verdadeira natureza da vida.

A felicidade dos homens tem repousado na distração de si mesmos.

Os sábios, por tentar conhecer a verdade encarando a vida em toda a sua crueza, são condenados à infelicidade.

Amâncio Siqueira

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Consciências personalísticas

Pintura: Sísifo, por Tiziano

Li recentemente um comentário no Digestivo Cultural de um leitor que disse não gostar de Saramago. Sua razão para tal: ”Os personagens não têm vida e a história está lá para dar voz às pontificações do autor.”

Pensei em responder-lhe apenas com um “Bemvindo à literatura”, mas ao ler O Homem Duplicado encontrei este texto interessantíssimo, no qual o próprio Saramago ironiza sua queda pelas pontificações:

“Um parêntesis indispensável. Há alturas da narração, e esta, como já se vai ver, foi justamente uma delas, em que qualquer manifestação paralela de ideias e de sentimentos por parte do narrador à margem do que estivessem a sentir ou a pensar nesse momento as personagens deveria ser expressamente proibida pelas leis do bem escrever. A infracção, por imprudência ou ausência de respeito humano, a tais cláusulas limitativas, que, a existirem, seriam provavelmente de acatamento não obrigatório, pode levar a que a personagem, em lugar de seguir uma linha autónoma de pensamentos e emoções coerente com o estatuto que lhe foi conferido, como é seu direito inalienável, se veja assaltada de modo arbitrário por expressões mentais ou psíquicas que, vindas de quem vêm, é certo que nunca lhe seriam de todo alheias, mas que num instante dado podem revelar-se no mínimo inoportunas, e em algum caso desastrosas.”

Na literatura imortal não têm os autores servido como amigos imaginários ou vozes de consciência para seus personagens? As narrativas são meios para o desabafo de almas atormentadas. Longe de tirar a vida dos personagens, é a voz do autor que preenche de sangue suas veias.

Embora no mais das vezes os personagens discutam e discordem do autor, em alguns momentos até sabem ouvir seus conselhos, que nem sempre vêm para o seu bem.

Pontificações como a baleia branca de Melville ou os moinhos de vento de Cervantes jamais serão apagadas, pois simbolizam a pedra no caminho de Drummond, o trabalho de Sísifo que é arrumar a casa. A eterna busca a que nós nos entregamos vida afora, quando nos propomos uma missão, um sentido para o existir. Eterna não porque fora do tempo, e sim porque circular. Vivenciamos todos em nossa vida fugaz o eterno retorno nietzschiano. Os grandes personagens literários mostram isso. Quanto maior sua tarefa, mais certo o fracasso que leva ao recomeço.

Isso é vida.

Socó Pombo

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Mulher Perdigueira e os ciúmes de Carpinejar



Há pouco estivemos numa conversa com Carpinejar, sobre o seu livro de crônicas Mulher Perdigueira, que vai já na segunda edição. O bate-papo aconteceu na livraria FNAC de Porto Alegre. O escritor gaúcho tem uma estratégia eficiente para disfarçar a timidez: trajando calça apertada vermelha, blusa multicolorida, óculos gigantescamente vermelhos e uma mochila preta, combinando com as unhas da mão esquerda, avisa a todo mundo que está na área.
Na crônica que dá título ao livro o autor faz uma defesa dos ciúmes e da possessividade. Em todos os textos há um tom confessional, não para remissão de pecados, e sim de memórias ou desabafos de mesa de botequim. Não falta o riso, mesmo a gargalhada da embriaguez. O mesmo tom foi dado ao bate-papo, como o ouvinte poderá acompanhar no vídeo (peço que preste atenção apenas ao áudio, já que as poucas fotos são em má qualidade, o que ajuda a esconder a feiura dos personagens). Nada do rebuscamentos ou hierarquias de distanciamento. Em determinados momentos parecia até mesmo uma terapia em grupo sem psicologismos, tão íntimos ficaram todos. Um grupo de literaturólatras anônimos, com exceção de Fabrício.
Destaque para minha sobrinha, Mariana, que aos dezesseis meses já participou ativamente do debate, fazendo salutares questionamentos e arrancando a admirada atenção dos participantes, inclusive do próprio autor.
Entretanto, não se engane com a simplicidade das palavras de Carpinejar: há sempre uma poesia perdida nas entrelinhas, escorrendo pelas páginas, gotejando sobre o leitor.

Amâncio Siqueira

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Tolerância religiosa


Tradução: Talvez AGORA você aprenda a TOLERAR e RESPEITAR o ponto de vista dos outros.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

De tiranias do povo, pelo povo e para o povo


“O sufrágio universal é a mais monstruosa e mais iníqua das tiranias, pois a força do número é a mais brutal das forças, não tendo a seu lado nem a audácia, nem o talento.”

Bourget

A democracia surgiu em moldes bem diversos dos das atuais. Quando tal forma de governo foi adotada na Grécia, os cidadãos tomavam parte ativa no governo da Polis. Reunidos em assembleia, votavam diretamente sobre os temas do debate, sem a escolha de intermediários para tomar suas decisões, como ocorre atualmente, com a escolha de “representantes” (embora houvesse cargos eletivos para execução de questões mais práticas). Obviamente, com apenas algumas centenas de cidadãos era mais fácil reuni-los. E para ser cidadão não havia a mesma facilidade que atualmente: mulheres, homens jovens ou pobres e escravos não podiam tirar o título eleitoral. Continuava, portanto, o governo de poucos sobre muitos, embora os poucos passassem a se chamar “maioria”.
Os cargos eletivos foram criando mais e mais importância e acumulando maior poder, até que os cidadãos passaram a participar de um sistema que daria origem ao parlamentarismo: cidadãos escolheriam um conselho de anciãos (senado) que por sua vez escolheriam um governante em situações especiais. A última dessas situações especiais deu origem à tirania de Júlio César, já no incipiente Império Romano, que poria fim à democracia até então praticada.
Nos séculos seguintes, poucos povos tiveram o mesmo ímpeto por auto-governar-se que os gregos. Discordo de Aristóteles, quando diz que “a democracia surgiu quando, devido ao fato de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si”. Vejo no surgimento da democracia grega mais o desejo de não ser superado por outrem do que o de igualdade. O afã de governar, não o de repartir o poder. Não por acaso o próprio Aristóteles diz que “democracia é a mais severa forma de despotismo”. Quando os cidadãos querem, pela força do número, governar seus iguais, determinando seu comportamento em todos os âmbitos da vida, um despotismo da “maioria” está instaurado. Tal despotismo não vê igualdade absoluta entre as pessoas: obriga os desiguais a igualar-se à maioria.
Os movimentos que fizeram ressurgir a democracia a partir do iluminismo não tinham sentimento muito diferente do antigo. Cidadão passou a ser sinônimo de burguês de grandes posses, embora muitos ativistas da Revolução Francesa discordassem disso. O sistema presidencialista, erigido nos Estados Unidos, foi exportado para vários lugares do mundo, inclusive o Brasil. Seria um sistema ideal para qualquer país que quisesse ter um rei eleito pelo povo.
Todas as formas de poder democrático até a atualidade mantiveram o sistema de eleição de representantes do povo, que não toma decisões diretamente. No Brasil, o processo de escolha dos representantes se dá a cada dois anos, com ciclos de escolha de legisladores e governantes municipais intercalados pelos dos estados e da União. O poder judiciário não é eletivo. Na luta pelo poder, via de regra há que se gastar muito dinheiro para obtê-lo. Quantias vultosas são despendidas nas campanhas eleitorais.
Primeiramente, quero frisar bem o termo campanha eleitoral. Erroneamente, as pessoas em sua maioria se referem às eleições como “tempo de política”, e considero importante partir daí para lembrar que é sempre tempo de política, de lutar pela melhoria da polis, da cidade (ou Estado e União, exemplos mais amplos de Polis). Portanto, cabe sempre destacar que campanha eleitoral não é sinônimo de campanha política. Campanha eleitoral é também uma campanha política, o ápice da luta pelo poder na democracia representativa que vivenciamos atualmente. Entretanto, há campanhas políticas que fogem do eleitoral, que mobilizam parcelas populacionais desinteressadas do poder, mas engajadas na luta pelo estado de direito. A campanha pela lei da Ficha Limpa foi um exemplo pontual. Exemplos constantes de campanhas políticas são os movimentos pela reforma agrária, pelos direitos dos homossexuais ou pela descriminalização do aborto. Em geral, os temas debatidos em campanhas políticas extensas e apartidárias não entram no debate das campanhas eleitorais, devido ao fato de serem temas polêmicos, desaprovados pelo público mais amplo, o que faz os candidatos preferirem ignorá-los.
Para obter o poder, o candidato se faz candidato da maioria, pois é a maioria que tem o poder de outorga do governo.
A pergunta que me faço e ao leitor é: será esse o melhor sistema de governar? Talvez o fosse, quando havia barreiras intransponíveis para o reunião de todos os cidadãos para deliberar sobre qualquer assunto. Mas tais barreiras não existem mais. Cem milhões de pessoas podem votar para a saída de algum participante de um reality show. Por que, então, os cidadãos não poderiam participar mais ativamente do governo da nação?
Além de propiciar maior transparência nas decisões do governo, uma democracia mais participativa teria o poder de trazer todas as minorias para o debate social. Talvez, lentamente, a maioria passasse e respeitar os anseios das minorias. E, o mais importante, chegar ao ponto que Platão tanto criticava: “A democracia é uma constituição agradável, anárquica e variada, distribuidora de igualdade indiferentemente a iguais e desiguais”. Não seria exatamente este o ponto: chegar ao respeito e inclusão de todos? Trata-se não de levar todos à igualdade, mas de levar a igualdade a todos. Qual o direito mais igualitário, senão o de sermos todos diferentes?
Democracia modernamente não significa governo de muitos sobre poucos, mas governo para inclusão de todos no processo social. Temos que ter o esclarecimento de que não é porque nossas opiniões são majoritárias que devem ser impostas a todos, quando se trata de questões de foro íntimo.
Quando eu digo que não é um governo de muitos, não quero com isso dizer que uma minoria deve governar. Quero salientar que a democracia deve ser um governo de todos, com a inclusão de todos no processo. Por exemplo, não é porque sou heterossexual que devo determinar que todos o sejam, ou cercear os direitos daqueles que não o são. Incluir também os homossexuais é um exemplo de democracia inclusiva.Em questões de foro íntimo, que não interfiram na vida pública, os particulares devem ter o direito de se determinarem, por mais minorias que sejam. Até que o termo minoria deixe de fazer sentido em outro âmbito que não o estatístico.

Amâncio Siqueira

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Para maiores


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

De fantasmas esquecidos e consciências entorpecidas

“A necessidade de encontrar alternativas ao petróleo já é ponto pacífico. Queremos convencer as pessoas de que todos sairão ganhando com isso. É bom para o meio-ambiente, é bom para a segurança nacional, é bom para a economia, é bom para o futuro dos nossos filhos e, por incrível que pareça, também é bom para o futuro dos povos do Oriente Médio. Qualquer governo que consegue gerar tantas divisas simplesmente porque perfura o solo não tem nenhum tipo de incentivo para educar as crianças, dar estudo às mulheres, envolver o povo no processo político; não tem motivo para fazer nada além de perfurar o solo e extrair o óleo negro (…) É uma vida cômoda, cheia de belos palácios.”

Carl Luft, Instituto para Análise de Segurança Global

O tampão desenvolvido para parar o vazamento de óleo na bacia do Golfo do México tem um poder incrível. Não apenas estancar o mais terrível desastre natural da história, como também mergulhar nossas consciências em torpor, estancando nossa própria indignação com o irrecuperável prejuízo para a fauna e a flora globais. Um tampão para a memória, trazendo um esquecimento que nos prepara para um novo século de petróleo.

Desde a perfuração do primeiro poço de petróleo pelo norte-americano Dake, em mil oitocentos e cinquenta e nove, os combustíveis fósseis queimaram sem parar, tornando-se a principal fonte de energia e matéria-prima das civilizações. Nos cento e cinquenta anos seguintes, a população humana saltou de um para sete bilhões. Passamos do navio a vapor para o ônibus espacial, do telégrafo à internete.

Tais avanços cobraram seu preço em vidas. Não apenas humanas. Somente a civilização baseada no petróleo poderia produzir guerras como a primeira e a segunda mundiais, ou os conflitos estadunidenses com Afeganistão e Iraque. Tais conflitos têm o petróleo por raiz ideológica ou como energia logística; ou ambas. Quanto mais aumenta o poder econômico advindo do ouro negro, mais recrudescem os regimes políticos dos países produtores. Países do Oriente Médio que foram outrora democráticos, ou ao menos respeitosos com os direitos femininos e das demais minorias, tornaram-se regimes teocráticos, fundamentalistas, preconceituosos e reacionários. Contudo, foi o meio-ambiente o mais prejudicado. O último século presenciou a maior extinção de espécies dos últimos sessenta e cinco milhões de anos, num processo crescente de degradação ambiental que não se alimenta apenas do petróleo diretamente derramado, como ainda dos gases tóxicos lançados na atmosfera, dos produtos plásticos que têm no petróleo sua matéria-prima e, indiretamente, na consequência do crescimento populacional desenfreado.

Os irmãos Wachowski levaram seu agente Smith a constatar: os seres humanos não são mamíferos: são vírus. Em nossa voracidade, buscamos a dominação de todo o globo sem a precaução do futuro. Como vírus que matam o hospedeiro, os humanos estamos matando o solo, a água e os seres vivos dos quais nos servimos. O petróleo, resíduo de depósitos sedimentares de matéria orgânica e seres vivos que vieram antes de nós em milhões de gerações, é um fantasma que nos acusa de incompetência para gerir nosso desenvolvimento de maneira sustentável. Um avantesma que nos diz “sou o fruto de infinitas mortes, e vos servirei para mortes infinitas”.

O Brasil tem a liderança global na produção de combustíveis e matérias-primas alternativas, com avançadas tecnologias e uma moderna compreensão do nosso papel no mundo. Todavia, a descoberta de óleo no pré-sal causou um recrudescimento em nossa agenda de sustentabilidade. Delfim Neto bem observou que o “pré-sal é agenda do século vinte, não do vinte e um.”

Em questões tão delicadas quanto esta, cabe-nos evitar o romantismo dos ecólogos mais radicais, mas também o mau-caratismo dos capitalistas preocupados unicamente com lucros. Se nosso avanço até aqui foi garantido através do petróleo, ele agora é um risco não apenas para nosso planeta, como também para nossas sociedades, para a segurança de nossos direitos, para a sustentação da paz. Não bastam os avanços técnicos, se continuarmos prisioneiros de conflitos medievais.

Talvez a chama que iluminará nosso futuro deva ser acesa por combustíveis renováveis e não poluentes, para que continue a nos iluminar sem o risco de apagar toda a vida na Terra.
Amâncio Siqueira

quarta-feira, 21 de julho de 2010

De temerário inoportunismo

“Vamos falar somente disso, sábios ilustres, mesmo que seja discurso péssimo. Calar é pior ainda. Porque todas as verdades que nos recusamos a dizer se tornam venenosas.”

Nietzsche


Para além da teoria literária, adiante da crítica, após o horizonte do livro, subjazem conceitos que se transferem da obra para seu feitor. O ofício da escrita, assim como qualquer outro, exige alguém qualificado intelectual, emocional e fisicamente. A esse profissional da escrita chamaremos escritor, do qual falaremos um pouco mais, para diferenciá-lo daqueles que apenas escrevem e que não devem se confundir com escritores.
Deixemos à parte a técnica, a dedicação, o árduo trabalho de tecitura do texto, e voltemos nossa atenção para algo de suma importância na produção daquilo que podemos chamar verdadeiramente escritor: a personalidade.
O escritor não poderia deixar de ser um homem comum, como os que mais o sejam. Comum a ponto de tornar-se totalmente diferente, um solitário desdenhado por aqueles que não compreendem sua necessidade de compreender. Solitário não porque se ache especial: apenas percebe que as vidas ao seu redor são tão insignificantes quanto a sua própria. É exatamente esse senso de que nada tem de especial que o leva à aventura de espelhar na arte o trágico de ser humano. Apenas os mais humanos podem transcender a individualidade de homem para redimir ou condenar toda a humanidade. Percebem que a única maneira de atribuir sentido ao absurdo do existir é por intermédio da arte.
O escritor não tem medo. Não apenas é corajoso, mas também temerário. Não se trata apenas de não correr do perigo: trata-se de correr para o perigo. O escritor é o perfeito inoportunista. Jamais perde uma oportunidade de ser inoportuno, de bradar verdades dolorosas para todos, para ele inclusive. Não à toa será chamado pelos desafiados víbora: sua verdade é venenosa até mesmo para si. Não pode prendê-la, guardá-la, escondê-la.
O escritor não é aquele que mais sabe de si mesmo ou do mundo. É tão somente aquele que temerariamente não nega o que sabe, aquilo que todos sabem, mas não conseguem admitir. Prefere o veneno da verdade à mentira analgésica de cada dia.
O escritor não se permite ter fé. A fé congela a alma, paralisa o intelecto, ilude os sentidos. Tudo no escritor pede calor, movimento, sensação. Mesmo a ilusão que sai da mente do escritor contém uma venenosa realidade. O personagem é um microcosmo que copia o movimento celeste, ou um macrocosmo para simulação de acasos quânticos.
A verdade é açoite, e o escritor auto-flagela-se antes de açoitar seu público.
Diante do mundo que o ameaça, utiliza-se da mais perigosa técnica de auto-defesa: desfere com suas palavras o mais duro golpe possível, sobre o mais poderoso dogma. Bate da forma mais dolorosa contra o lugar mais doloroso do que se chama autoridade. Maldição para o escritor é não ser amaldiçoado. Cobiça uma milhar de religiões, para conquistar uma milhar de excomunhões. Deseja um milhão de deuses, para ser condenado a um milhão de infernos.
No mais profundo da psiquê do escritor há o temor da segurança. Como sobreviverá sua alma em plácida serenidade? Reside aí uma vontade que o conduz à sua obra: o desejo da fogueira.
Amâncio Siqueira

domingo, 18 de julho de 2010

Sobre questões culturais e religiosas e liberdade


A Assembleia Nacional francesa aprovou um projeto de lei que proíbe o uso em público de burca ou de outro veu que cubra o rosto. Pelo projeto, mulheres vistas em público de burca ou niqab - que deixa apenas os olhos à vista (há vestimentas que sequer deixam o olho à mostra, cobrindo-o com uma fina rede) - terão que pagar multa de 150 euros. Se um homem obrigar a mulher a usar esses veus será multado em 30 mil euros e pode pegar um ano de cadeia.

Muitos defensores da “liberdade cultural e religiosa” têm se posicionado contrários à decisão.

A mais corrente analogia que se faz mundo afora é entre a burca e o hábito das freiras. Impressionantemente, as pessoas que tecem essa tosca comparação são os defensores do viés religioso. Deveriam lembrar que as freiras não usam o hábito porque o marido manda, até porque não se casam. Também não escondem o rosto. Podem deixar o claustro quando desejarem. Algum defensor do direito dessas mulheres de exercer sua religiosidade acredita mesmo que elas podem deixar o uso do veu quando desejarem? Por que será que em Cabul, depois da queda do Talibã, mulheres deixaram de usar os veus e passaram inclusive a exibir unhas pintadas? Teriam deixado de ser religiosas?

Outro ponto importante: países de população majoritariamente islâmica já proibiram a burca em locais públicos, como a Turquia e a Tunísia. A verdade é que tal vestimenta nada tem que ver com exercício da religiosidade. Se assim fosse, os homens também a usariam. Tais vestes são utilizadas por uma regra patriarcal e arbitrária imposta por homens inseguros em relação às mulheres, que se negam a enxergá-las como seres humanos.

Ser contra a proibição de burcas por questões culturais, pelo direito das mulheres de “expressarem suas crenças”, é como ser contra a Lei Maria da Penha, levando em conta que é cultural no Brasil e América Latina chegar bêbado em casa e espancar a mulher. Tem mulher que gosta. Deve ser permitido, então?

As mulheres participam de atos violentos como a retirada cirúrgica do clitóris de meninas em determinados países. Algumas mulheres apóiam, é parte da cultura. Devemos permitir que tal aberração ocorra em nosso país?

Que tal permitir que mulheres sejam proibidas de votar ou trabalhar, desde que seja parte de sua cultura?


Quando um indivíduo gosta de algo simplesmente porque foi educado, adestrado, espancado e condicionado a gostar, cabe sim ao Estado intervir. Não duvido nada que as mulheres passem a mostrar rostos marcados por hematomas, quando se virem livres das burcas.


Evidentemente, a lei não é para proteger apenas essas mulheres. Não sou tão inocente a ponto de não perceber o lado ideológico agindo aqui. Há um contexto bem maior e mais importante, que diz respeito principalmente às mulheres europeias: os povos islâmicos se reproduzem mais rapidamente que os não islâmicos, e seus filhos migram principalmente para a Europa. Em algumas décadas, serão maioria nesse continente. Cabe às mulheres europeias (e àqueles que lhes são simpáticos) lutar contra as leis culturais islâmicas de submissão feminina, para que, quando muçulmanos forem maioria, não consigam impor suas leis com o apoio das suas mulheres.
As mulheres muçulmanas merecem o exercício do direito a votar e ser votadas, a trabalhar, e tomar decisões sobre o próprio corpo. Depois que conquistarem esses direitos, não abdicarão deles por “questões culturais”.

Aí, sim, aquelas que preferem usar um veu que lhes cubra todo o corpo, inclusive os olhos, que lhes tolha movimentos e a própria visão, que dificulte mesmo sua respiração, poderão fazê-lo, se assim desejarem. Então se saberá que o uso se dá por questões religiosas, não por imposição masculina.

Socó Pombo