quarta-feira, 4 de agosto de 2010

De fantasmas esquecidos e consciências entorpecidas

“A necessidade de encontrar alternativas ao petróleo já é ponto pacífico. Queremos convencer as pessoas de que todos sairão ganhando com isso. É bom para o meio-ambiente, é bom para a segurança nacional, é bom para a economia, é bom para o futuro dos nossos filhos e, por incrível que pareça, também é bom para o futuro dos povos do Oriente Médio. Qualquer governo que consegue gerar tantas divisas simplesmente porque perfura o solo não tem nenhum tipo de incentivo para educar as crianças, dar estudo às mulheres, envolver o povo no processo político; não tem motivo para fazer nada além de perfurar o solo e extrair o óleo negro (…) É uma vida cômoda, cheia de belos palácios.”

Carl Luft, Instituto para Análise de Segurança Global

O tampão desenvolvido para parar o vazamento de óleo na bacia do Golfo do México tem um poder incrível. Não apenas estancar o mais terrível desastre natural da história, como também mergulhar nossas consciências em torpor, estancando nossa própria indignação com o irrecuperável prejuízo para a fauna e a flora globais. Um tampão para a memória, trazendo um esquecimento que nos prepara para um novo século de petróleo.

Desde a perfuração do primeiro poço de petróleo pelo norte-americano Dake, em mil oitocentos e cinquenta e nove, os combustíveis fósseis queimaram sem parar, tornando-se a principal fonte de energia e matéria-prima das civilizações. Nos cento e cinquenta anos seguintes, a população humana saltou de um para sete bilhões. Passamos do navio a vapor para o ônibus espacial, do telégrafo à internete.

Tais avanços cobraram seu preço em vidas. Não apenas humanas. Somente a civilização baseada no petróleo poderia produzir guerras como a primeira e a segunda mundiais, ou os conflitos estadunidenses com Afeganistão e Iraque. Tais conflitos têm o petróleo por raiz ideológica ou como energia logística; ou ambas. Quanto mais aumenta o poder econômico advindo do ouro negro, mais recrudescem os regimes políticos dos países produtores. Países do Oriente Médio que foram outrora democráticos, ou ao menos respeitosos com os direitos femininos e das demais minorias, tornaram-se regimes teocráticos, fundamentalistas, preconceituosos e reacionários. Contudo, foi o meio-ambiente o mais prejudicado. O último século presenciou a maior extinção de espécies dos últimos sessenta e cinco milhões de anos, num processo crescente de degradação ambiental que não se alimenta apenas do petróleo diretamente derramado, como ainda dos gases tóxicos lançados na atmosfera, dos produtos plásticos que têm no petróleo sua matéria-prima e, indiretamente, na consequência do crescimento populacional desenfreado.

Os irmãos Wachowski levaram seu agente Smith a constatar: os seres humanos não são mamíferos: são vírus. Em nossa voracidade, buscamos a dominação de todo o globo sem a precaução do futuro. Como vírus que matam o hospedeiro, os humanos estamos matando o solo, a água e os seres vivos dos quais nos servimos. O petróleo, resíduo de depósitos sedimentares de matéria orgânica e seres vivos que vieram antes de nós em milhões de gerações, é um fantasma que nos acusa de incompetência para gerir nosso desenvolvimento de maneira sustentável. Um avantesma que nos diz “sou o fruto de infinitas mortes, e vos servirei para mortes infinitas”.

O Brasil tem a liderança global na produção de combustíveis e matérias-primas alternativas, com avançadas tecnologias e uma moderna compreensão do nosso papel no mundo. Todavia, a descoberta de óleo no pré-sal causou um recrudescimento em nossa agenda de sustentabilidade. Delfim Neto bem observou que o “pré-sal é agenda do século vinte, não do vinte e um.”

Em questões tão delicadas quanto esta, cabe-nos evitar o romantismo dos ecólogos mais radicais, mas também o mau-caratismo dos capitalistas preocupados unicamente com lucros. Se nosso avanço até aqui foi garantido através do petróleo, ele agora é um risco não apenas para nosso planeta, como também para nossas sociedades, para a segurança de nossos direitos, para a sustentação da paz. Não bastam os avanços técnicos, se continuarmos prisioneiros de conflitos medievais.

Talvez a chama que iluminará nosso futuro deva ser acesa por combustíveis renováveis e não poluentes, para que continue a nos iluminar sem o risco de apagar toda a vida na Terra.
Amâncio Siqueira

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