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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A dor que leva à perfeição

Ilustração: Osvaldo Goeldi - O Solitário

O homem de Schopenhauer assume o sofrimento voluntário da sinceridade e esse sofrimento lhe serve para matar seu querer próprio e para preparar a inversão, a total conversão do seu ser, que é o verdadeiro objetivo e o sentido da vida. O hábito que tem de dizer a verdade parece aos outros homens a expressão de sua maldade, pois estimam que o respeito de suas fraquezas e de suas pequenas manias é um dever de humanidade e porque é necessário ser mau para lhes estragar assim seus brinquedos. São tentados a dizer àqueles que lhes falam desse modo o que Fausto disse a Mefisto: “É assim que à energia que age incessantemente, salutar e criadora, tu opões friamente tua energia de demônio?” E quem quisesse viver como schopenraueriano se assemelharia sem dúvida mais a Mefisto que a Fausto, pelo menos aos olhos fracos dos homens modernos que recebem sempre na negação o sinal do maligno.
Mas há uma maneira de negar e de destruir que exprime precisamente essa poderosa aspiração à santidade e à salvação de que Schopenhauer foi entre nós, homens profanos, homens seculares no sentido exato do termo, o primeiro mestre filosófico. Tudo o que pode ser negado deve ser negado. Ser verídico é acreditar numa existência que ninguém poderia mais negar, porque é por si mesma verdadeira e isenta de mentira. É por isso que o homem verídico sente que sua atividade tem um sentido metafísico, explicável pelas leis de uma vida diferente e superior, um sentido positivo em toda a acepção da palavra, mesmo se tudo o que faz parece destinado a destruir e a infringir as leis da vida presente. Por causa disso, sua atividade só pode lhe causar um sofrimento constante; mas sabe o que sabia também Mestre Eckhard: “O corcel mais rápido que nos leva à perfeição é a dor.”

Nietzsche

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O labirinto do coração

Pintura: Norman Rockwell - Triplo auto-retrato

Quando temos verdadeiros amigos, ignoramos o que é verdadeiramente a solidão, mesmo que tenhamos o mundo contra nós. Infelizmente percebo, contudo, que realmente se ignora o que é ver a solidão crescendo em torno de alguém. Em toda parte onde houve sociedades, autoridades, religiões, opiniões públicas poderosas, em resumo, em toda parte onde houve uma tirania, ela perseguiu com seu ódio o filósofo solitário, pois a filosofia oferece ao homem um asilo onde nenhuma tirania pode penetrar, o foro íntimo, o labirinto do coração; e é isso que indispõe os tiranos. É o refúgio dos solitários, mas é ali também que o maior dos perigos os espia. Esses homens que abrigaram sua liberdade no fundo de si mesmos são obrigados também a ter uma vida exterior, a se mostrar, a se deixarem ver; pelo fato de seu nascimento, de seu domicílio, de sua educação, de sua pátria, do acaso, da indiscrição dos outros, eles se vêem empenhados em numerosas relações humanas; a eles é conferida toda espécie de opiniões, pelo simples fato de que são as opiniões reinantes; toda expressão fisionômica que não seja negativa passa por aprovação; todo gesto que não destrói nada é interpretado como adesão.

Nietzsche

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O acaso do livro


Nietzsche na juventude, em pose napoleônica


A humanidade raramente produz um bom livro em que o canto de guerra da verdade, o hino do heroísmo filosófico seja entoado com audaciosa liberdade: e, no entanto, depende dos acasos mais miseráveis, de obscurecimentos repentinos do espírito, de convulsões e antipatias supersticiosas, depende até mesmo, em última análise, da mão cansada de escrever ou mesmo dos insetos e da chuva, para que esse livro sobreviva um século a mais ou que apodreça e se reduza a pó.

Nietzsche

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Outros povos têm santos, os gregos têm sábios

Pintura: Rafael, detalhe do quadro Escola de Atenas


Todos os povos se cobrem de vergonha quando se aponta para a sociedade de filósofos tão maravilhosamente exemplar: a dos primeiros mestres gregos. Tales, Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e Sócrates. Todos esses homens são talhados inteiramente numa só peça de uma única pedra. Seu pensamento e seu caráter estão ligados por uma necessidade estrita. Ignoram todas as convenções, porque a classe dos filósofos e dos sábios não existia naquela época. Todos eles são, em sua grandiosa solidão, os únicos homens que naqueles tempos viviam votados ao conhecimento. Todos possuem essa vigorosa energia dos antigos, pela qual superam toda a sua posteridade e que lhes permite encontrar sua forma própria e dar a esta seu desenvolvimento pleno, em seus ínfimos detalhes e em sua maior amplitude, graças à metamorfose. De fato, moda alguma veio lhes prestar mão forte e lhes facilitar as coisas. Desse modo, todos formam, em conjunto, aquilo que Schopenhauer chamou, em oposição à república dos sábios, uma república dos gênios. Os gigantes se interpelam através dos intervalos desérticos da história e, sem se deixarem perturbar pelos anões descuidados e barulhentos que continuam a rastejar abaixo deles, prosseguem seu sublime diálogo entre espíritos.
(...)
Outros povos têm santos, os gregos têm sábios. Com justa razão se disse que um povo é caracterizado menos por seus grandes homens do que pela forma pela qual são reconhecidos e honrados.

Nietzsche, A filosofia na época trágica dos gregos

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Schopenhaur como educador


Esse foi o primeiro perigo à sombra do qual Schopenhauer cresceu: isolamento. O segundo é: desespero da verdade. Este perigo acompanha todo pensador que toma seu caminho a partir da filosofia kantiana, pressuposto que seja um homem vigoroso e inteiro no sofrer e desejar, e não apenas uma sacolejante máquina de pensar e de calcular. Mas sabemos todos muito bem que vergonhosa é a situação, precisamente quanto a esse pressuposto; e até mesmo me parece, de modo geral, que somente em pouquíssimos homens Kant atuou vivamente e transformou sangue e seivas. Aliás, como se pode ler por toda parte, desde o feito desse tranquilo erudito deveria ter irrompido uma revolução em todos os domínios do espírito; mas não posso acreditar nisso. Pois não o vejo claramente em homens que antes de tudo teriam de ser eles mesmos revolucionários, antes que quaisquer domínios inteiros pudessemos sê-lo. Mas, tão logo Kant comece a exercer um efeito popular, nós o perceberemos na forma de um corrosivo e demolidor ceticismo e relativismo; e somente nos espíritos mais ativos e mais nobres, que nunca aguentaram permanecer na dúvida, apareceria, por Heinrich von Kleist, como efeito da filosofia kantiana: "Há pouco", escreve ele, certa vez, a seu modo cativante, "travei conhecimento com a filosofia kantiana, e agora tenho de comunicar-te um pensamento tirado dela, pois não posso temer que ele te abalará tão profunda, tão dolorosamente quanto a mim. - Não podemos decidir se aquilo que denominamos verdade é verdadeiramente verdade ou se apenas nos parece assim. Se é este último, então a verdade que juntamos aqui não é mais nada depois da morte e todo esforço para adquirir um bem que nos siga até mesmo no túmulo é vão. - Se a ponta desse pensamento não atinge teu coração, não sorrias de um outro que se sente profundamente ferido por ele, em seu íntimo mais sagrado. Meu único, meu supremo alvo foi a pique, e não tenho mais nenhum." Sim, quando voltarão os homens a sentir dessa forma kleistiana, natural, quando reaprenderão a medir o sentido de uma filosofia em "íntimo mais sagrado"? E no entanto isso é necessário antes que se possa avaliar o que pode ser, para nós, depois de Kant, precisamente Schopenhauer - ou seja, o guia que conduz, da caverna do desânimo cético ou da abstinência crítica à altura da consideração trágica, o céu noturno com suas estrelas sobre nós até o infinito, e que conduziu a si mesmo, como o primeiro, por esse caminho. Essa é sua grandeza: ter-se colocado em face da imagem da vida como um todo, para interpretá-la como todo; enquanto as cabeças mais perspicazes não podem libertar-se do erro de pensar que se chega mais perto dessa interpretação quando se investigam meticulosamente as cores com as quais, e a matéria sobre a qual essa imagem está pintada; talvez chegando ao resultado de que é uma tela de urdidura intricadíssima e, sobre ela, cores que são quimicamente insondáveis. É preciso adivinhar o pintor, para entender a imagem - disso Schopenhauer sabia. Mas a corporação inteira de todas as ciências saiu em campo para entender aquela tela e aquelas cores, mas não a imagem; e até mesmo se pode dizer que somente aquele que captou firmemente no olho a pintura universal da vida e da existência se servirá das ciências singulares sem dano próprio, pois sem uma tal imagem de conjunto reguladora elas são malhas que nunca conduzem ao fim e tornam o curso de nossa vida ainda mais confuso e labiríntico. Nisto, como foi dito, Schopenhauer é grande, em perseguir aquela imagem como Hamlet persegue o espírito, sem se deixar distrair, como fazem os eruditos, ou ser emaranhado por uma escolástica conceitual, como é o destino dos dialéticos desenfreados. O estudo de todos os filósofos de compartimento só é atraente por dar a conhecer que estes, no edifício das grandes filosofias, encalham logo naqueles lugares onde é permitido o pró e o contra em termos eruditos, onde é permitido o cismar, duvidar, contradizer, e que com isso eles se furtam à exigência de toda grande filosofia, que, como um todo, sempre diz unicamente: esta é a imagem de toda vida, aprende nela o sentido de tua vida. Ou vice-versa: lê tua vida e entende nela os hieróglifos da vida universal.

Nietzsche

sábado, 17 de outubro de 2009

Os sete selos - VII - Zaratustra

Busto de Nietzsche por Klinger

Se alguma vez descobri céus tranquilos sobre mim voando com minhas próprias asas no meu próprio céu;
Se nadei, brincando, em profundos longes de luz;
Se a alada sabedoria da minha liberdade me veio dizer: Olha! Nem pra cima, nem pra baixo! Lança-te à roda, para diante, para trás, leve como és! Canta! Não fales mais! Não estão as palavras feitas para os que são pesados? Não mentem todas as palavras ao que é leve? Canta! Não fales mais!
Como não hei de estar anelante pela eternidade, anelante pelo nupcial anel dos anéis, pelo anel do sucesso e do regresso das coisas?
Nunca encontrei mulher de quem quisesse ter filhos senão esta mulher que amo: porque te amo, eternidade!
Porque te amo, Eternidade!

Nietzsche, Assim Falava Zaratustra

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Todo Grande Homem é Cético


Todo o grande homem é, necessariamente, cético, ainda que possa não o mostrar: pelo menos se a grandeza dele consistir em querer uma coisa grande e grandes meios para realizá-la. A liberdade em relação a todas as convicções faz parte da sua vontade: o que está em conformidade com o "despotismo esclarecido" que todas as grandes paixões exercem. Uma paixão dessa espécie põe o intelecto ao seu serviço e tem a coragem de fazer uso até de certos meios proibidos - dos quais se serve, mas aos quais não se submete. A necessidade de crer, a necessidade de um sim e de um não absolutos é sinal de fraqueza, e toda a fraqueza é uma fraqueza da vontade. O homem de fé, o crente é, necessariamente, de uma espécie inferior; disso resulta a liberdade de espírito, ou seja, a descrença instintiva: uma condição de grandeza.


Friedrich Nietzsche - 'A Vontade de Poder'

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Para a Psicologia do Artista


Para que haja arte, para que haja alguma ação e contemplação estéticas, torna-se indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez. A embriaguez tem de intensificar primeiro a excitabilidade da máquina inteira: antes disto não acontece arte alguma. Todos os tipos de embriaguez, por muito diferentes que sejam os seus condicionamentos, têm a força de conseguir isto: sobretudo a embriaguez da excitação sexual, que é a forma mais antiga e originária de embriaguez. Também a embriaguez que se segue a todos os grandes apetites, a todos os afetos fortes; a embriaguez da festa, da rivalidade, do feito temerário, da vitória, de todo o movimento extremo; a embriaguez da crueldade; a embriaguez da destruição; a embriaguez resultante de certos influxos meteorológicos, por exemplo a embriaguez primaveril; ou a devida ao influxo dos narcóticos; por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade sobrecarregada e dilatada. — O essencial na embriaguez é o sentimento de plenitude e de intensificação das forças. Deste sentimento fazemos partícipes as coisas, constragemo-las a que participem de nós, violentamo-las, — idealizar é o nome que se dá a esse processo. Libertemo-nos aqui de um preconceito: o idealizar não consiste, como se crê comumente, num subtrair ou diminuir o pequeno, o acessório. Um enorme extrair os traços principais é, isso sim, o decisivo, de tal modo que os outros desapareçam ante eles.

Friedrich Nietzsche, in "Crepúsculo dos Ídolos"