terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

De críticas e leituras ou leituras críticas (e muitos livros nesse intermédio)

“O negócio frenético da edição faz nascer um livro de trinta em trinta segundos. A leitura de livros cresce aritmeticamente; a escrita de livros cresce exponencialmente. Se a nossa paixão pela escrita não for controlada, num futuro próximo haverá mais gente a escrever livros do que a lê-los”
Gabriel Zaid

Quem criou o adágio “plante uma árvore, tenha um filho e escreva um livro” com certeza não era de ler muito. Quem lê se desespera quando entra numa vasta biblioteca e percebe que nunca lerá uma parcela mínima de todos aqueles volumes. Imagine mais de seis bilhões de livros.
O escritor mexicano Gabriel Zaid escreveu em 2008 a obra “Livros de mais – Ler e publicar na era da abundância” (ainda inédito no Brasil), na qual trata de uma questão que parece ser atual, porém remonta à antiguidade clássica: o problema da quantidade de autores interessados em publicar suas obras, embora não se interessem por ler as dos outros. Seguem algumas citações de autores das mais diferentes épocas, listados por ele: Para Sêneca “A multidão de livros dissipa o espírito”. Segundo Ibn Khaldun, no século XIV: “Demasiados livros sobre o mesmo assunto tornam mais difícil estudá-lo”. Montaigne afirmava: “O nosso dever é compor o nosso caráter e não compor livros”. E não nos lembramos do drama de Alonso Quijano, D. Quixote, a queimar a sua biblioteca e a salvar apenas o “Amadis de Gaula”? Cito ainda Schopenhaur que, lembrando do rei persa Xerxes, que via a multidão de seu exército e chorava pensando “daqui a cem anos, nenhum deles estará vivo”, disse que se vivesse o rei na idade moderna entristecer-se-ia ao ver os catálogos das editoras e pensar que em dez anos nenhum daqueles livros estaria vivo.
Com o advento da chamada publicação por demanda, esse universo de pessoas que nunca leram um livro na vida mas publicam um por ano aumentou drasticamente. No Brasil, há o Clube de Autores e a Biblioteca 24x7 como as maiores editoras nesse ramo. Não conheço números da segunda, mas a média de exemplares vendidos pela primeira até o mês de novembro era de cinco para cada obra publicada. Uma tendência que se pode constatar é que as pessoas são informadas do lançamento de um livro, entram no saite e pensam “olha, não tem burocracia nem custo, vou publicar meu livro também.” E nem lembram a intenção inicial de comprar um livro.
Ao acessar portais dedicados à literatura, pode-se perceber que o status de uma obra publicada, seja em meio físico ou eletrônico, é sedutor para um número cada vez maior de usuários. Há inúmeros textos repetidos, as discussões são esvaziadas e os próprios fóruns são usados apenas para divulgação das próprias obras. Não há um debate consistente. Outro fato interessante: os autores que mais atravancam os blogues coletivos são avessos à crítica literária, em geral respondem violentamente a críticas às suas obras ou fecham o espaço para comentários. Na verdade, quando há um assunto em debate, os usuários defendem o discurso de jogador de futebol: “Bem, é um assunto sobre o qual, sem deixar de concordar, meio que discordo, pois o viés observado de uma maneira diferente, através da filosofia, mostra que pode ser de uma maneira como também da outra em suas variáveis nuances, pois os pontos de vista mudam e vice-versa.”
Cada pesquisa mostra que o número de leitores diminui. Entretanto, mesmo que eu lesse um livro por dia, deixaria de ler outros quatro mil. São dois livros lançados por minuto. E a tendência é de aumento desse número. E a cada livro que se publica, nove permanecem inéditos. Óbvio que a impressão por demanda pode dar um jeito nisso, decuplicando o volume de títulos lançados à poeira do tempo e permitindo que muitos autores (autores, repito, não escritores) possam agora ser anônimos não apenas em seus blogues, mas anônimos profissionais, com livro publicado e tudo.
Não posso deixar de corroborar a opinião de Zaid de que, no ritmo em que estamos, em breve haverá mais pessoas escrevendo livros que lendo.
Diria Raul Seixas: “O problema é muita estrela pra pouca constelação”.
É óbvio que nenhum dos autores citados é ou foi contra a publicação de livros. Todos escreveram e publicaram os seus, e leram muitos outros. O cronista mesmo que tece esses comentários quer publicar os seus. E Zaid defende suas ideias num livro. Somos todos apaixonados por livros, e nossa crítica é para os que escrevem e não lêm. Contudo, algo que é necessário quando abundam obras e é humanamente impossível acompanhar minimamente as publicações é uma crítica. Claro que a crítica atual é em sua maioria burra ou cega. Vítima também da abundância de livros, na maioria das vezes repete apenas o que a própria editora divulga em seus guias. É fato que grande parte dos críticos não leu (ou leu pela metade) os livros que critica. E dá preferência para os livros publicados pelas grandes editoras, que por sua vez preferem bestsellers internacionais. Mas é uma boa alternativa como triagem inicial, enquanto também não se aperfeiçoa. E o leitor (se ainda existir) fará seu papel histórico: determinar qual o livro que será moda e morrerá na semana seguinte e qual será legado às gerações futuras.
Umberto Eco diz que, ao lançar um livro, ele deixa de ser seu. O livro é uma construção de autor e leitores, sejam especializados ou não, de acordo com o crítico italiano. Em tempos de abundância, parece que esse paradigma será finalmente quebrado. Ao publicar-se um livro, ele continuará pertencendo apenas ao seu autor.
Por falta de leitores.

Amâncio Siqueira

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Escrita automática e pé na estrada

Capa do livro On The Road, de Jack Kerouac. Legenda: Esta é a bíblia da “geração beat” – o explosivo bestseller que diz tudo sobre a atual juventude selvagem e sua procura frenética por Experiência e Sensação.

“Não é verdade que se começa a vida sob as asas do pai feito uma criança singela que acredita em tudo? E então chega o dia quando o cara se descobre um desgraçado, um infeliz fraco, obscuro e nu, e com a aparência de um fantasma fatigado e fatídico, avançando trêmulo pelos pesadelos da vida.”
Jack Kerouac
On the Road, romance de Jack Kerouac, não se trata apenas de um clássico da geração beat, ou mesmo de um tratado do modo de vida hippie. É um livro marcante, que trata com profundidade existencialista a superficialidade das vidas de jovens que buscam seu lugar no mundo. É um retrato sincero e, portanto, não muito romântico, da geração pós-segunda guerra, que precedeu o sonho de paz e amor às custas de sexo e drogas livres.
Há um vazio nas vidas de seus personagens, que não consegue ser preenchido pelas belas paisagens norte-americanas. Viajando de leste a oeste, desviando caminho pelo sul, entre as grandes e pequenas cidades, de Nova Iorque a Los Angeles, Sal (o personagem-narrador) e seus amigos e suas namoradas não são meros turistas, vislumbrando apenas a superficialidade dos pontos turísticos. Terão que trabalhar para manter sua independência. Seu espírito aventureiro será sustentado pela colheita de algodão, pelo trabalho nas ferrovias ou estacionamentos. Chegarão mesmo a ser vigilantes, esses mesmos que não querem ser vigiados.
Ao iniciar a leitura, talvez o leitor pense que a primeira parte é muito caótica. Ilusão logo desfeita pela segunda parte, a que mais recomendo. Esta sim é caos em estado bruto, literatura à flor da pele. Viagens menores dentro da grande viagem da vida. Sal parece encontrar sua maturidade, ou ao menos reconhecer sua confusão, o vazio que o permeia. A partir daqui, viajando ao lado de Dean e seus amigos, sem precisar de carona (revesam a direção de um hudson 1949, até finalmente destruí-lo), as paisagens abertas serão muitas vezes superadas pelo horizonte interior, pelo desejo de compreender. O anseio de ser compreendido. A poesia permeia os monólogos interiores, e todos os personagens monologam, a despeito de pretenderem um diálogo. Como todos os jovens, estão muito aprisionados aos seus mundos, aos seus problemas, para perceberem o outro, a não ser quando se veem espelhados neste.
São jovens sem dinheiro, sem status, que frequentam os submundos, achando-se normais entre os excêntricos de todas as eras. Como Peter Pan, buscam sua Terra do Nunca. Porém este nunca envelhecer não está em lugar algum. Sua Terra do Nunca é nunca parar. Manter-se na estrada.
Manter-se jovens.

Socó Pombo

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Um novo evangelho

Pintura: A Morte de Sócrates - Jacques-Louis David

Capítulo IV

Os dois ainda procuravam memorizar as primeiras lições de latim, quando o sol surgiu no horizonte, mostrando o caminho que tomariam. Seus companheiros acordaram surpresos pelo fato de não terem sido chamados para seus turnos de guarda. Entre o preparo da primeira refeição e o desmonte do acampamento, souberam por desenhos traçados na areia que sua viagem seria alongada por uma parada que desviaria sua trajetória: passariam por Antioquia[1] antes de seguir em direção ao crescente fértil[2], passando pelas margens do Eufrates e dando a volta pelo lado oriente do Mar Negro, para enfim chegar ao Quersoneso Táurico, onde os documentos deveriam ser entregues a um general que tinha sua identidade preservada para segurança da missão.
É a partir da passagem que fizeram por Antioquia que começa a narrativa do livro de Tiago
[3], demonstrando a sua impressão da civilização de reminiscência helênica.
Nos dias e principalmente nas noites em que seguiram viagem, Tiago e Melquisedeque se aprofundaram mais na língua latina, e mesmo seus companheiros, radicalmente xenófobos, passaram a estudar. Mas, se todos o faziam por motivações políticas, Tiago desenvolvera em seu íntimo uma outra motivação para o aprendizado da língua gentia: sentia-se curioso em relação a uma cultura que, apesar da imoralidade do culto religioso, dera origem a homens como Horácio e Júlio César
[4]. Sentia o ar mais puro e o dia mais luminoso sempre que esquecia o pessimismo em face da vida para lembrar-se da expressão carpe diem. À medida que crescia em sabedoria, vacilava sua fé na seriedade da vida e seu horror ao pecado. Não seriam os grandes acontecimentos históricos frutos da vontade e do gênio do homem mais que o resultado de desígnios divinos? Foi com esse pensamento gritando e debatendo-se para libertar-se do seu peito que Tiago adentrou as ruas de Antioquia junto de seus parceiros.
Havia cavalgado poucos metros, quando o seu interesse pela língua latina o fez parar para prestar atenção às palavras de um homem que falava a muitas pessoas embaixo de uma oliveira:
― E eu vos digo que este homem, que odiava os erros e as imperfeições das gentes, no entanto amou de tal forma a espécie humana que por ela se recusou a negar sua verdade e a fugir da lei, e morreu por nós. Foi morto pelos poderosos, que o acusaram de blasfêmia por não compreenderem sua teogonia. Foi morto, enfim, porque não estávamos preparados para sua verdade, pois que sua verdade teria mudado para sempre a compreensão dos seres humanos e as estruturas das civilizações.
Tiago compreendeu em partes o que o homem dizia, mais pelo seu tom e seus gestos que pelo discurso em si, e sentiu-se curioso por conhecer a história de que falava. Seus companheiros deram por sua falta e voltaram para chamá-lo. Ele então perguntou a Marco:
― Quem é o homem de que ele fala?
― Semástocles ensina filosofia grega. Nunca ouviste falar de Sócrates
[5]?


[1] Outra importante cidade comercial da Síria, a norte de Tiro.
[2] Região entre os rios Tigre e Eufrates, no Oriente Médio, onde surgiram algumas das mais importantes civilizações da história. Nessa região as lendas babilônias que influenciaram o Gênese situam o Jardim do Édem, o paraíso terrestre.
[3] Na verdade, o livro de Tiago não é bem uma narração, mas uma coletânea de crônicas e poemas que ajudam a compreender a dimensão humana dos conflitos de seu tempo. Estes textos serão usados com propriedade por Siqueira como falas de Tiago em momentos importantes de sua vida.
[4] Gaius Julius Caesar (100 a.C. – 44 a. C.) – Grande general romano, sendo primeiro triúnviro e depois tirano vitalício do império. Apesar de ter governado no fim da República, foi o responsável pela Era Imperial, fato que levou a uma conspiração culminada em sua morte. Escreveu sobre as guerras de que participou.
[5] Sócrates (c. 469 – 399 a.C.) – Filósofo grego que consolidou a filosofia como a conhecemos, separada das ciências naturais. Morreu ao beber uma taça de cicuta, sentença recebida após um julgamento em que foi acusado de corromper a juventude ateniense.


Amâncio Siqueira - Trecho do romance O Evangelho de São Pecador

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Rasgando a dor e agonizando um sentir


Hoje o meu despertador foi o barulho do vento nas cortinas, o sol foi abrindo a porta devagarzinho, acordando meus olhos preguiçosos.
As cobertas aquecidas quase não me deixaram levantar, com frio leve que adornava o meu quarto.
Acordada, comecei a fazer as primeiras coisas do meu dia corriqueiro.
Tomei meu café da manhã e, amante devota, pensei nele como prato predileto, claro que com essa refeição me alimento sempre em pequenas porções para que seu fim seja tardio.
O que vou fazer do meu dia? pensei.
Primeiro quero degustar todos os temperos solitários dessa manhã, em que me olho tristemente no espelho para não me sentir tão só.
Meus olhos são vazios.
Vejo-te pelos quatro cantos da casa.
Queria ser dança para os teus passos desnorteados.
Queria ter, aos teus olhos, uma elegância no caminhar.
Amo os teus vícios, a tua elegância quase rude.
Queria eu que a simetria das minhas curvas fosse perfeita para os teus caprichos.
Sinto a lembrança me beijando a pele, os meus dedos entre os teus cabelos pequenos.
E um cansaço lacrimejado me abriga, como casinha no campo em plena tempestade.
Diante das algemas, estou entregue.
Hoje o que tenho a te ofertar são as minhas dores, meus cansaços, os meus braços já entregues à seringa, doando a última lágrima de sangue que resta nas veias.
Vivo sempre adubando meus dias, mas sempre vem o verão e resseca a terra em que minhas ilusões foram plantadas.
Meu corpo não tem luz própria.
Cá dentro dói.
Teus olhos outonos me deixam triste.
O enigma da fumaça se misturou a meu sonho e agora não sei me decifrar.
Tudo é tão sombrio.
Quero a embriaguez das melhores flores para o meu dia fúnebre.

Izabel Goveia

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O amor nunca parte



Pintura: A dama de Shalott (no barco) - John William Waterhouse

Um amor nunca parte. Ficam os cheiros, os hábitos, os livros repletos de suas pálpebras, a solidão acompanhada. Um amor nunca parte. Fica o delírio do corpo à espera das mãos, o delírio do copo sem espera nenhuma, fica a ausência da embriaguez que se queria sua. Um amor nunca parte, fica o seu perfume povoando todos os lugares, sendo todos os lugares, residindo na pele da alma, perfumando o tom da voz, dando cheiro ao corpo da ausência. O cheiro do amor é algo insuperável, onipresente, é algo insinuante. É uma existência tão dentro que não sabemos nossa.
Na memória poética, fica a doçura do olhar, a ternura das mãos, o choro mansinho, o sorriso brotado quando triste. Ficam na pele os atalhos que suas mãos construíram e que não mais levam ao prazer.
Um amor nunca morre, ele nasce em outro lugar da nossa alma. Um amor nunca parte inteiro porque nunca esteve pleno, foi sonho, mesmo o real lhe acontecendo.
O amor e sua partida vieram do mesmo ventre. O amor existe do jeito que sonha; sua partida existe do jeito que dói.

Alessandro Palmeira

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

De criação e patrocínio ou independência e morte II




"Não seguiremos uma orientação acadêmica. Vamos destacar livros que apareçam nas listas dos mais vendidos na mídia. Pedi para que fosse organizada como livraria, mais do que como biblioteca. Até os funcionários vão se comportar como vendedores. Será uma megastore cultural."

João Sayad

Deparei-me com a seguinte notícia: “Dentro do Parque da Juventude, construído onde antes ficava o maior símbolo da precariedade do sistema prisional brasileiro, a Casa de Detenção Carandiru, é inaugurada hoje, 8 de fevereiro, a Biblioteca de São Paulo, menina dos olhos do secretário de Estado da Cultura João Sayad.”
Como bibliófilo e bibliotecófilo, corri a ver as fotos do majestoso projeto, cobiçar um dia ter um volume meu naquelas estantes, e poder percorrer seus corredores. Extrema animação a minha, até Sayad jogar um balde de água fervendo em minha alegria, com as palavras que servem de intróito para este desabafo que procura a ilusão de ser uma crônica.
Não defendo o fim dos Best Sellers ou mega Sellers, ou mesmo dos superultrapuxa Sellers. Pretendo, inclusive, um dia ser um destes. Costumo comprar e ler alguns deles. Tenho quase todos os livros do Dan Brown, por exemplo, e um dos meus livros preferidos é A menina que roubava livros, do Markus Zuzak. Dito isto, analiso a postura da secretaria de cultura de São Paulo, na pessoa do seu secretário, de destacar os livros mais vendidos.
Isso é algo preocupante. Esses livros já recebem todo o destaque possível, e ainda serão preferidos pela biblioteca. Ou seja, serão ainda mais alavancadas suas vendas, terão ainda maior destaque na mídia, perenizando-se entre os mais vendidos.
A qualidade dos livros presentes nestas listas também é algo extremamente discutível. Os livros de Dan Brown, por exemplo, carregam enredos bem-elaborados e uma carga elevada de conhecimentos, porém tudo feito para ser esquecido tão logo o livro seja fechado. Não há uma reflexão profunda dos temas, e a relevância literária jamais é alcançada. Que dizer de outros que sequer têm os pontos fortes que destaquei naqueles?
Ademais, essas listagens sofrem influência direta das listas estrangeiras, e em geral trazem como ao menos noventa por cento de seus integrantes autores internacionais (em geral de língua inglesa). As editoras brasileiras já têm a política editorial de buscar mais livros estrangeiros para publicar aqui do que o contrário, e esse passo do governo tende a ampliar esse desincentivo à produção nacional.
Sem contar o fato de que em muitos casos autores independentes são ignorados por suas opiniões contrárias a determinados grupos de interesses, não podendo publicar pelos grandes grupos editoriais, e tendo, portanto, uma distribuição precária de sua obra.
As editoras já costumam preterir autores iniciantes, imagine quando o próprio incentivo do governo pender para isso.
Cada vez mais autores independentes serão relegados ao esquecimento. E finalmente será alcançada, ao menos na cultura, a igualdade.
Por falta de ideias.

Amâncio Siqueira

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Na margem do tempo

Pintura: J. R. Nettzo

Tempo, tempo...
Passei os olhos por ele, monotonamente.
E cada gota sua parecia lágrima, um orvalho, talvez.
Uma coisa sem forma.
Quem sabe também, um amanhã que não virá ou que um dia já passou voando além de mim.
Bem acima dos meus sonhos, há uma casa vazia cheia de vento.
Já o vento, é um belo companheiro, pena que passa e tudo decorre através de suas correntes prazerosas.
E eu sentada num pedaço de lugar, de qualquer lugar, observo tudo ir embora preso aos outros.
E tudo e ele.
E eu permanecendo pedra por fora e sonho por dentro, talvez exista.
Como dói transbordar.
E ele escorre, desliza vagaroso, sem pressa.
Umedecendo minha alma, como noite fria na calçada.
Um relento coberto.
Boneca de pano jogada fora.
E, entre o entrelaçado de galhos e folhas tecendo raios de sol, ele também se aflora e eu ainda aconteço como flor, por um instante somente.
Quão bela é a sensação que existe no intervalo das lágrimas, um mundo perdido em uma lembrança.
Florescendo para um sonho vou embora e a torrente se inicia.
Tudo transborda e se faz em correntezas.
Tempo, tempo...
Onde tu estás?

Izabel Goveia

Paraíso



“Por que aqueles que pregam o paraíso em outro mundo têm que transformar esse mundo num inferno?”

Amâncio Siqueira

O romance Paraíso, da escritora americana vencedora do Pulitzer e do Nobel Toni Morrison, é um retrato belamente sujo de um país que raramente aparece nos cinemas e romances: os Estados Unidos segregacionais rurais da América. Através da história de uma pequena cidade de negros evangélicos chamada Ruby, e de seu conflito com mulheres fugitivas que vivem juntas num convento abandonado, podemos presenciar a outra história daquela nação, num recorte dos anos sessenta e setenta bem distante dos ideias da geração beat e de woodstock. Uma história de luta e sangue, ódio e preconceito.

Os longos capítulos trazem como título nomes femininos, na maioria deles das mulheres que se refugiam no convento, e vez por outra da cidade ou de uma moradora. Os capítulos variam da objetividade histórica ao devanear do fluxo e consciência, e dão voz e personalidade às personagens. Cada uma com uma dor, um abandono, um motivo para fugir, desde o marido violento até o namorado que a troca pela mãe.

Mulheres que aprendem independência como modo de vida passam a causar estranheza nos habitantes de Ruby, fanáticos cristãos como quase noventa por cento dos habitantes do meio rural norte-americano, que acreditam fervorosamente que receberam uma missão divina: criar um paraíso na Terra.

Quando as poucas famílias, fragilizadas pelos inúmeros casamentos consaguíneos, começam a gerar filhos deficientes, a culpa recai sobre a devassidão e a bruxaria que vêm do convento. O conflito entre a fé e o profano é apenas uma superideologia, que maquia conflitos étnicos, sociais e políticos, além de uma guerra dos sexos prestes a conclamar os homens conservadores de Ruby à batalha contra a liberalidade destas mulheres.

Negros que fugiram da lei dos brancos recorrerão a esta mesma lei para perseguir e expulsar as indesejadas?

Morrison por alguns momentos parece perder o fio da narrativa e mesmo seu objetivo, porém no fim percebemos que a história, em seus acasos e sobressaltos, se faz sozinha. Com belíssimas imagens e uma maestral narrativa não-linear e de vários pontos de vista narrativos, Paraíso é um romance indispensável para os já iniciados no romance denso e estilisticamente complexo.

Socó Pombo