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terça-feira, 10 de novembro de 2009

A maldição de Zorba

Imagem: Cena do filme baseado no romance Zorba, o Grego, na qual conversam Zorba e seu patrão

-É claro que só pensam nisso. Ouça, patrão. Eu, que as conheço de todo jeito, tenho, posso dizer, uma pequena experiência. As mulheres só pensam nisso, são criaturas doentes, eu lhe digo, choramingonas. Se você não diz que as ama e deseja, se põem a chorar. É possível que elas lhe digam que não, que você não lhes agrada em nada, que elas têm nojo de você, isso é outra coisa. Mas todo mundo que as vir tem que desejá-las. É tudo que elas querem, coitadas! Por que não deixá-las contentes? Eu tinha uma avó que ia fazer uns oitenta anos. Um verdadeiro romance, a história dessa velha. Bem, mas isso é outra história também... Ela tinha então uns oitenta anos, e diante de nossa casa morava uma mocinha fresca como uma flor. Chamava-se Cristalo! Todas as noites de sábado nós, os transviados da aldeia, íamos tomar uns tragos, e o vinho nos estimulava. Púnhamos um ramo de Basílica atrás da orelha, meu primo pegava o violão e íamos fazer serenata. Que chama! Que paixão! Berrávamos como búfalos. Todos nós a desejávamos. Todas as noites de sábado íamos em rebanho para que ela escolhesse. Pois bem, você acredita, patrão? É um mistério impressionante. Há na mulher uma chaga que não se fecha nunca. Só porque a mulher tem oitenta anos? Não importa. A chaga continua aberta. Todos os sábados, então, a velha puxava seu colchão para debaixo da janela, apanhava às escondidas o seu espelho e começava a pentear os poucos fios de cabelos que lhe restavam e a se pintar... Olhava em torno, disfarçadamente, com medo de ser vista; e se alguém se aproximava, ficava quieta como uma santinha e fingia dormir. Mas dormir como? Ela estava esperando a serenata. Com oitenta anos! Você sabe, patrão, isso hoje me dá vontade de chorar. Mas naquele tempo eu era bobo, não entendia, e me dava vontade de rir. Um dia fiquei com raiva dela. Ela estava resmungando comigo porque eu vivia atrás das moças, e resolvi botar tudo para fora: “Por que você se pinta e se penteia todos os sábados? Você está pensando que a serenata é para você? Pois não é. Nós desejamos Cristalo. Você cheira a cadáver!” Creia-me, patrão! Foi nesse dia, quando vi duas lágrimas caírem dos olhos de minha avó, que pela primeira vez entendi o que é uma mulher. Ela havia se encolhido em seu canto, acuada como uma cadela, e seu queixo tremia. “Cristalo”, gritava eu, me aproximando dela para que ouvisse melhor, “Cristalo”! A juventude é um animal feroz que não entende nada. Minha avó levantou os braços descarnados em direção ao alto e gritou para mim: “Eu te maldigo do fundo do meu coração”. A partir desse dia ela começou a decair, depauperou-se, em dois meses estava morrendo. Na sua agonia, ela me viu. Soprou como uma tartaruga e estendeu sua mão seca para me agarrar: “Foi você que me matou, Aléxis, foi você que me matou, maldito. Maldição sobre você, e que sofra o que eu sofri”. Zorba sorriu. -Ah! E pegou a maldição da velha - disse ele acariciando os bigodes -Tenho sessenta e cinco anos, penso, mas mesmo que viva cem anos jamais terei juízo. Terei ainda um pequeno espelho no bolso e continuarei correndo atrás de “espécie fêmea”.

Nikos Kazantzakis, Zorba, o Grego

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Nikos Kazantzakis - Parte IV

Pintura: Ressurreição, por El Greco

A introdução à bio-bibliografia de Nikos Kazantzakis estava pretensamente finalizada. Contudo, acredito ser importante elucidar os motivos do grande gênio grego não ter recebido o prêmio Nobel de literatura. Aproveito o ensejo para adicionar os relatos de sua esposa, Hélène Samiou, que doravante chamaremos apenas Helena, a respeito de seus últimos momentos.
Em 1956, sabendo ter leucemia e com problemas de visão, Kazantzakis inicia a redação das suas memórias, o magistral Testamento para el Greco, no qual se confessa ao grande pintor do século 16, conterrâneo de Kazantizakis, na Toledo que adotou, na qual faleceu em 1614. Nesta impressionante obra, o autor apresenta um aspecto importante de sua obra: o inextricável caráter auto-biográfico. Muitas das características dos seus mais marcantes personagens foram suas próprias características. Anseios, dúvidas, dores lançadas como sangue sobre o papel. Testamento para El Greco é um livro de carne. A capa do livro é feita da pele de Kazantzakis.
É comum que as indicações ao prêmio Nobel sejam feitas pelas academias de letras nacionais. Entretanto, com Kazantzakis não ocorreu assim: Indicado ao prêmio Nobel por Thomas Mann e Albert Schweitzer, Kazantzakis perdeu o prêmio por um voto, para Albert Camus (autor de A Peste e O Estrangeiro, entre outras obras), de 44 anos de idade, trinta anos mais novo do que ele, após pesado lobby da diplomacia grega contra a outorga do prêmio. A exemplo do que ocorreu com Saramago em Portugal, seu país ouvia as vozes do ódio e da igorância vindas dos religiosos, e se opunha à premiação da genialidade por considerá-la perigosamente herética. O próprio Camus, que no seu O Mito de Sísifo expôs algumas ideias próximas às de Kazantzakis descritas na Ascese, afirmaria em carta a Helena ser Nikos, que faleceria poucas semanas após a entrega do prêmio, cem vezes mais merecedor da honraria do que ele (a obra de Camus é uma das mais impressionantes do século XX. Não posso, porém, deixar de concordar com ele). De fato, rótulos de herético ou de comunista (também aqui podemos fazer um paralelo com o Nobel português) acompanharam os últimos anos de suas relações com o país natal e a igreja ortodoxa, sem esquecer da Católica, que o condenou veementemente.
Sobre o período de agravamento de sua doença escreveu a fiel Helena, na biografia intitulada O Dissidente:
Nikos Kazantzakis pediu a Deus dez anos adicionais de vida, dez anos a mais para completar sua obra - para dizer o que tinha de dizer e ‘esvaziar-se'. Queria que, quando a morte viesse, encontrasse somente um monte de ossos. Dez anos seriam suficientes, ou assim ele imaginava. Mas Kazantzakis não era do tipo que podia ‘esvaziar-se' assim facilmente. Longe de se sentir velho e cansado aos setenta e quatro anos, considerava-se rejuvenescido mesmo após a sua última trágica aventura, a da vacinação.
E assim narra seus últimos dias:
De olhos negros como breu, redondos na penumbra, as lágrimas brotando, costumava me dizer: - tenho vontade de fazer o que diz Bergson: ir até a esquina e, estendendo as mãos, começar a implorar aos passantes: ‘Esmolas, irmãos! Quinze minutos de cada uma de suas vidas. Oh, por pouco tempo, o bastante para terminar meu trabalho. Depois, que venha Caronte.'
E Caronte veio - maldito seja! - ceifando Nikos na primeira flor de sua juventude! Sim, caro leitor, não ria. Porque este era o instante para que tudo florescesse e frutificasse. Tudo o que iniciou, este homem que você tanto amou e que tanto o amou, seu Nikos Kazantzakis.
Sobre sua missão, suas batalhas e suas armas, numa guerra da qual, embora derrotado, foi o grande vencedor, disse:

"Ah!... As palavras! As palavras! Para mim, pobre de mim, não existe outra salvação. Não tenho em meu poder mais do que vinte e seis soldadinhos de chumbo, as vinte e seis letras do alfabeto: eu decretarei a mobilização, eu levantarei um exército, eu lutarei contra a morte".

Socó Pombo

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dança!

Pôster do filme Zorba, o grego, baseado em obra homônima de Kazantzakis

“Há em mim um diabo que grita, e eu faço o que ele diz. Cada vez que eu estou a ponto de sufocar, ele diz: ‘Dança’, e eu danço.E isso me alivia! Uma vez, quando meu pequeno Dimitráki morreu, na Halkidikí, eu me levantei e dancei.Os parentes e amigos, ao me virem dançar assim diante do corpo,se precipitaram sobre mim para me fazer parar.‘Zorba ficou louco!’, eles gritavam. ‘Zorba ficou louco!’ Mas eu, se não dançasse naquele momento, aí sim, eu ficaria louco de dor. Porque ele era o meu primeiro filho e tinha três anos, e eu não podia suportar a sua perda. Você compreende o que estou dizendo, ou estou falando para as paredes?”
Nikos Kazantzakis, Zorba, o grego

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O mundo não existe


- Pobre Amita! É tudo que podes dar? Um pouco de melão? Um pouco de felicidade?

- Eu sei quem tu és. Tem piedade de mim. Me dá a esmola mais elevada!

- Fecha os olhos, os ouvidos, a boca, as narinas, os dedos; fecha o espírito, esvazia as entranhas. O mundo não existe! Nada existe; nada existe, tudo é fantasma de nosso espírito faminto, de nossa alma que tem medo. Nada existe, a não ser o grito de meu coração. Isto me basta.

Nikos Kazantzakis - Toda Raba

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Nikos Kazantzakis - Parte III


"Não tenho nenhuma esperança. Não tenho medo de nada. Sou livre." Epitáfio do poeta, novelista, dramaturgo e filósofo Nikos Kazantzakis, gravado em seu túmulo em Heraclion, na Ilha de Creta.

Envolvido na política nacional, Kazantzakis foi nomeado Ministro da Educação (1945) e tornou-se dirigente do partido socialista grego (1946), deixando no mesmo ano tais ocupações e passando em seguida a viver na Inglaterra e depois na França, onde finalmente instalou-se na cidade de Antibes. A fama e o reconhecimento literário, como em geral ocorre, independentemente do país, vieram quando as obras de Nikos Kazantzakis foram traduzidas para outras línguas e ganharam as telas de cinema em adaptações de grande projeção. Com certeza o autor ficaria eufórico com a adaptação de suas obras. O Cristo Recrucificado recebeu o título de "Aquele que deve morrer" (Celui qui doit mourir), com a direção de Jules Dassin e com Melina Mercouri no principal papel feminino, e foi exibido pela primeira vez no Festival de Cannes de 1957. "Zorba, o Grego", foi publicado pela primeira vez em 1943 e recebeu uma versão cinematográfica em 1964, dirigida por Michael Cacoyannis e estrelada pelo ator Anthony Quinn. O filme fez um extraordinário sucesso e deu ao nome de Kazantzakis reconhecimento mundial. Outra obra de Kazantzakis adaptada para o cinema foi "A Última Tentação de Cristo". Publicada em 1948, a obra foi levada às telas em 1998 por Martin Scorsese e estrelada por Willem Dafoe, causando grande polêmica pelo tratamento humano dado à figura de Cristo. Na época de sua publicação, o romance causou a excomunhão de Kazantzakis da igreja ortodoxa grega e colocou o autor no Índex da igreja católica romana.
Em 1956 Nikos Kazantzakis recebeu o Prêmio Internacional da Paz. O escritor foi também tradutor de Dante e Goethe e de outros autores clássicos para o grego moderno. Em 1957 fez uma viagem à China, presenciando mais uma revolução sangrenta das tantas ocorridas no século vinte, das quais quase sempre foi testemunha. Na China, adoeceu. Foi transferido para Copenhague e depois para um hospital em Freiburgo, na Alemanha, onde acabou falecendo. Seu corpo foi transladado para sua cidade natal, Heraclion, na Ilha de Creta.
Seu epitáfio é uma adaptação das palavras do seu personagem Geranos, no romance Toda Raba:
Não creio, não espero. Sou livre.
Socó Pombo



sábado, 26 de setembro de 2009

Nikos Kazantzakis - Parte II

Assim como Salvador Dalí com a pintura A Face da Guerra, também Kazantzakis metamorfoseou a guerra em arte, a morte em poesia.

Kazantzakis estudou com paixão e seguiu violentamente as mais diversas formas de pensamento, do budismo ao leninismo, admirando Stálin e Francisco de Assis, Buda e Nietzsche, Jesus e Lênin. Durante a década de 1930, Kazantzakis viajou por vários países da Europa, África e Ásia, como correspondente de imprensa. Tais viagens não objetivavam pontos turísticos e ambientes festivos. Podemos dizer que Kazantzakis era correspondente de guerra, pois retratava a crueza do espírito humano, a violência inerente a todas as etnias e a guerra travada diuturnamente no coração do homem, espelhada nos conflitos espalhados mundo afora. Escreveu muitos livros, incluindo poemas, reflexões filosóficas e comentários de viagens. Desta época podemos destacar o romance “Os irmãos inimigos”, cujo título original é "Os Fratricidas", que traça um perfil da crueldade das guerras civis, nas quais parentes e amigos concretos são separados e tornados adversários em nome de abstratos ideais.
Foi correspondente estrangeiro na Espanha, cobrindo a Guerra Civil Espanhola para um jornal grego. Em 1938, depois de longa gestação e várias re-escrituras, foi publicado seu poema épico "Odisséia" (Odíssa – 1938), uma obra em 33333 versos, uma continuação e atualização da "Odisséia" de Homero. Reapresentação poderosa do espírito grego em verso, como foi o seu Zorba, o Grego em prosa. Kazantzakis retira Odisseu do texto homérico logo após matar os pretendentes, coloca-o de volta ao mar e o faz percorrer um longo percurso: de Ítaca a Esparta, onde seqüestra Helena e vai até Creta. Depois de assistir à derrota impingida ao rei minóico por forças vindas da Grécia continental, embarca para o Egito à procura da fonte do rio Nilo. Chegando ao lago Vitória, constrói sua cidade ideal ou, como diz o narrador, a cidade de Deus. Quando a obra está completa, sobrevém um terremoto que a destrói completamente. Odisseu, já agora transformado em asceta, abandona a cidade destruída e se dirige ao sul do Egito à procura do mar. Aí chegando, constrói um barco para si e se lança de novo ao mar em busca de seu destino. Ao se aproximar da região polar, seu barco se choca contra um grande iceberg. O choque é tão violento que Odisseu é projetado contra o grande bloco de gelo, desaparecendo. Uma alegoria do espírito do homem, condenado a vagar eternamente em busca de sua obra, algo que o possa imortalizar. Infelizmente esta obra não possui tradução para o português.
Em 1939 foi convidado pelo Conselho Britânico para trabalhar em Londres, durante os primeiros meses da Segunda Guerra Mundial. Em 1940, Kazantzakis retornou à Grécia, onde viveu sob a ocupação alemã. Não por acaso a ocupação do seu país é tema inerente aos seus textos. Seus livros são verdadeiros retratos do espírito livre aprisionado pela violência. Suas palavras, aprisionadas pelo tema dor, ainda assim dançam. Símbolo de sua vida e de seus personagens, que dançam, mesmo aprisionados pela infertilidade de seu tempo ou pelas agruras da guerra.

Socó Pombo

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Nikos Kazantzakis - Parte I

Kazantzakis revisando A Odisséia

Este é o primeiro artigo de muitos a respeito deste que é o maior escritor grego moderno (em minha opinião, o maior escritor moderno e, quiçá, de todos os tempos). A princípio dividiremos em três partes um artigo sobra sua biografia, dando sequência com a crítica introdutória aos seus livros mais importantes. Não é meu objetivo abarcar aqui toda sua obra e biografia. Apenas uma breve apresentação. Aliás, todos os textos subseqüentes terão este caráter, posto que um milhão de palavras minhas sobre sua obra não valeriam a leitura de um dos seus textos.
Nikos Kazantzakis nasceu na ilha de Creta durante o domínio turco, em 18 de fevereiro de 1883. Para fugir da instabilidade política na terra natal, os pais de Nikos Kazantzakis inscreveram-no numa escola de padres franceses na ilha de Naxos. Sua literatura e filosofia, porém, jamais fugiriam dessa realidade de luta. Pelo contrário, a paixão com que encara qualquer tema, a veemência e violência literária com que aborda a realidade do ser humano demonstram a influência das guerras de independência em seu espírito, mais até do que os personagens que vivenciam a guerra em seus romances. Entre 1902 e 1906 estudou direito em Atenas. Nessa época começou a publicar seus primeiros textos. Em 1907, sua peça "O Dia está Raiando" foi encenada em Atenas, em meio a grande controvérsia. Em outubro deste mesmo ano, Kazantzakis mudou-se para Paris, para estudar com seu tutor, o filósofo Henri Bergson. Na capital francesa, começou uma carreira de escritor e jornalista. Reclamava na sua correspondência das dificuldades de viver na então capital mundial da cultura. Viajou à União Soviética a convite do governo bolchevique, escrevendo nesta fase o romance Toda Raba. Entusiasta do cinema, arte bem recente naquela época, o romance parece um roteiro cinematográfico, com cortes de cena rápidos, superposição de cenários e rapidez lingüística e imagética. Parece um livro para durar o tempo de uma película (que duravam algumas horas a mais do que atualmente). Ou um filme para ser lido. Kazantzakis demonstra já aqui sua exuberância criativa, sua incrível capacidade narrativa. Os personagens sucedem-se rápidos e densos, assim como suas descrições. Seu espírito violentamente livre também não passa despercebido. Entusiasta da revolução russa, não deixa, porém, de fazer uma previsão pessimista na voz do personagem Ephraim Michalovitch: “Eu sei ainda isto que vocês, os comunistas, não sabem, não ousam saber: logo que os assaltantes tomarem o poder – a mesa – eles começarão, eles também, a engordar e a se entorpecer. E outras massas sofredoras e famintas surgirão de novo sobre a terra. Assim, as torrentes humanas sobem e descem em cadência, sem trégua, até o fim dos séculos. É isso que sei, ó alminhas práticas!”
Uma previsão que antecipava o romance “A Revolução dos bichos (Animal Farm)”, de George Orwell, no mundo literário, e os abusos que seriam cometidos pelo regime posteriormente, sob o controle de Stálin, na esfera política.


Francisco de Assis Socó Pombo