sábado, 9 de março de 2013
De Barbarismos Civilizados
domingo, 31 de julho de 2011
De críticas à feminilidade e feminilidades críticas

“Essa questão sobre literatura feminina é uma questão de poder, e não de literatura. Tanto é uma questão de poder que não alcança as grandes escritoras. Ninguém questiona a literatura de Cecília Meireles como literatura feminina.”
Marina Colassanti
Na Flip 2011, em mesa composta por Pola Oloixarac e Valter Hugo Mãe, a escritora argentina afirmou que a crítica tem uma abordagem diferenciada em relação às escritoras, deixando de abordar os temas pertinentes à literatura para abordar outros que não deveriam ser importantes para o leitor, ao mesmo tempo em que trata alguns temas como estranhos às escritoras. Quando o autor português expressou o projeto de escrever um livro sobre o desejo de ser pai, Oloixarac ironizou: "Se eu escrevesse um livro sobre este mesmo tema, iriam dizer que eu soava como uma das garotas daquele seriado, 'Sex and the City'”.
Em conversa com Luzilá Gonçalves e Marina Colassanti, durante o Festival de Inverno de Garanhuns, Cida Pedrosa perguntou exatamente se existe uma “literatura feminina”, e parte da resposta de Colassanti abre este texto.
Confesso que essa questão, assim como tantas outras internas ou externas à literatura, como se Capitu traiu ou não, ou se o Jabuti foi ou não justo, sempre passaram alheias a mim. Entretanto, são questões que se apresentam vez ou outra, e às vezes nos exigem um pouco de reflexão, nem que seja para que passem novamente ao alheamento.
Sobre o tema da paternidade ou maternidade em literatura, calhou de eu estar lendo exatamente no momento da efervescência do debate sobre a feminilidade literária o Balé Branco, de Carlos Heitor Cony, que traz uma bailarina que quer ter um filho de forma independente como a personagem principal, e é uma perfeita mostra de um tratamento literário para tal tema sem resvalar no simplismo de uma literaturagem.
Talvez a leitora ache que eu penso dessa forma pelo fato de o livro ser escrito por um homem e trazer uma ótica pouco feminina, com sua frase final: “Também, para quê?”. Nada mais distante da realidade. Primeiramente, por não considerar que haja um sentimento homogêneo que possa chamar-se feminino, e Betinha me pareça tão feminina quanto qualquer outra personagem. E, de maneira ainda mais profunda, pelo fato de eu não dar importância para as questões de gênero na literatura exatamente por nunca ter colocado tais vendas em minhas leituras. Não atoa, um dos melhores livros que já li, Memórias de Adriano, foi escrito por uma mulher, Marguerite Yourcenar, e trata precipuamente de um amor homossexual masculino.
Vejo uma crítica diferenciada por gêneros, porém por um ângulo diferente: recebem destaque exatamente mulheres que fazem literaturagem para mulherzinhas, de preferência adolescentes que leem Capricho ou recém-chegadas ao mundo de Contigo e Caras.
Sou admirador das Marguerites Yourcenar e Duras, de Isabel Allende, Laura Esquivel, Clarice Lispector, entre tantas outras escritoras de literatura, e o que observo, ao menos na internete, é que pouco valor se dá para esse tipo de escritoras, ou ao menos a novas escritoras que pertençam a essa categoria. Talvez essa preocupação exacerbada com as aparências que contamina toda a nossa sociedade esteja também impregnada no meio literário, e também aí atinja em cheio as mulheres, que não hesitam em manter essa indústria de massificação da moda. Talvez o fato dos escritores não fazerem muita questão de serem bonitos os livre de uma exigência do público e da crítica nesse sentido. Creio que passaremos ainda alguns anos sem a necessidade de um muso nas feira literárias, enquanto as musas serão cada vez mais destacadas.
Ao menos o que deduzi das falas de Oloixarac foi uma aparente contradição: ao mesmo tempo o desejo de tratar de temas a la Sex and the City sem esteriotipização da crítica e a vontade de ter direito de tratar temas profundos. Ou talvez ela tenha tecido duas críticas distintas a duas críticas distintas: uma crítica universitária mais hermética, preocupada com o trato da linguagem e a abordagem dos grandes temas de forma inovadora, e a crítica jornalística, “superficial”, que, até mesmo por causa do pouco espaço, atribui rótulos, e está sempre à procura do novo bestseller com linguagem-simples-como-um-roteiro-de-cinema. Vale lembrar que um volume altíssimo de ambas é produzido por mulheres.
O que depreendi da crítica internética e jornalística é que é impossível escrever bem e escrever para o mercado, seja um escritor ou uma escritora. Não que uma excelente obra não possa tornar-se sucesso de público, mas tais grandes obras necessariamente passarão por um caminho mais longo para chegar a tal. Como qualquer outro produto, o livro é mais difícil de ser vendido quando não traz um rótulo que o identifique com determinado público alvo.
Note-se que, no afã de escrever uma crônica contra os rótulos, acabo de rotular Balé Branco e Memórias de Adriano. Os rótulos que acabo de criar não traduzem o poder desses livros. Nenhum resumo de duas linhas é capaz de dar uma ideia mínima de um grande livro. Rótulos são necessários para que consumidores massificados sejam atraídos para produtos industrializados, prontos para o consumo. E é aí que, a meu ver, se encaixam as literaturagens para mulherzinhas, adolescentinhos, homossexuaizinhos, nerdinhos, negrinhos, cristãezinhos, ateuzinhos ou quaisquer outros. Livros de vitrine, com público alvo, conteúdos ensacados com tabela de nutrientes por porção.
Em tempo: sobre o projeto de Valter Hugo Mãe: que temazinho de homenzinho, hein?
Amâncio Siqueira
segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
De Direitos Humanos, censuras, deferências e Renascimento

Robert Kagan
Recentemente o acadêmico Paulo Coelho divulgou nota baseada em emeio recebido do seu livreiro no Irã, Arash Hejazi, informando que seus livros haviam sido proibidos naquele país. A ministra da Cultura brasileira, Ana de Hollanda, assim como o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, apressaram-se a tecer comentários reprovadores sobre a atitude do governo iraniano e afirmaram que buscariam impedir a censura ao Coelho.
Um trecho da nota da embaixada iraniana no Brasil negando a censura diz mais sobre a situação no Irã do que as notícias anteriores:
“Infelizmente, esta noticia fora criada e planejada por Arash Hejazi (indivíduo acusado do homicídio da Sra. Neda Aghar Soltan depois das últimas eleições presidenciais, o qual é o principal suspeito e que encontra-se neste momento foragido e procurado), com a colaboração e orientação de agentes dos Estados Unidos da América e Israel, em consonância com um plano global com o intuito de manchar a imagem do Irã, cujo aproveitamento político busca falsificar a verdade. Infelizmente conseguiram juntar-se a personalidades e autoridades no propósito desta armadilha.”
Neda Aghar Soltan foi morta pelas forças governamentais durante protesto contra a corrupção na reeleição de Mahmoud Ahmadinejad, com um tiro que lhe acertou o coração. Arash Hejazi estava ao lado dela no protesto e tentou salvá-la. Há vídeos que mostram o momento da morte dela, enquanto seu amigo tenta estancar a hemorragia. A teocracia muçulmana ignorou que ele estava desarmado e tentando salvá-la, ignorou o vídeo, ignorou a prova balística e os disparos da polícia, ignorou os direitos humanos e a verdade. Arash vive exilado, pois se for preso será sumariamente condenado à pena de morte, a exemplo do que aconteceu com Sakineh, que ainda não foi executada por pressões internacionais.
O Irã não precisa de um plano global para manchar sua imagem. Eles sabem fazer isso muito bem. Suas eleições foram ainda mais fraudulentas que a de George Bush, ditadas pelo aiatolá Khamenei, o verdadeiro governante do país. Seu antecessor, o líder da Revolução Islâmica aiatolá Khomeini, deixou bem claro o que pensam os teocratas sobre democracia e direitos humanos: “Sim, nós somos reacionários, e vocês são intelectuais iluminados: vocês, intelectuais, não querem que nós voltemos 1400 anos.” Ele tinha razão. Os únicos intelectuais que recordo terem a intenção de voltar mil e quatrocentos anos foram os renascentistas europeus, que buscavam resgatar o passado de esplendor jônico.
Abu Musab Al-Zarqawi, a exemplo de outros líderes islâmicos fundamentalistas, repudia a democracia, pois “o legislador que deve ser obedecido na democracia é o homem, e não Deus.” Eleições transformam o “homem, fraco e ignorante, parceiro de Deus na Sua prerrogativa mais importante e divina – a saber, governar e legislar.” Eles creem mesmo que há homens que falam por deus, que o ouvem e sabem exatamente o que ele quer. E tais homens sabem que seu deus quer sangue e ranger de dentes, que repudia tudo que é novo, inclusive direitos iguais para as minorias. A existência de tantos líderes que se arrogam a prerrogativa de estar acima do legislador humano, como canais diretos para captação da vontade divina, gera distorções para as relações internacionais difíceis de serem solucionadas, pois seu argumento trata discordâncias como blasfêmia, e qualquer opositor como um canal direto para captar a vontade do Diabo.
Tal noção não está presente apenas em alguns países do Oriente Médio, espalhando-se pelo extremo oriente, África e América. O grupo islamista radical al-Shabab proibiu o aperto de mãos entre homens e mulheres na cidade de Jowhar, no sul da Somália. Além de proibir o aperto de mãos intersexual, a organização também vetou conversas em público e até o caminhar lado a lado entre homens e mulheres sem laços familiares. O governo do al-Shabab afirma que todo aquele que for flagrado descumprindo as regras será julgado segundo a lei islâmica, a Sharia, mesma lei utilizada pelo Talibã no Afeganistão.
A Tunísia, Cartago na antiguidade e atualmente um país de governo islâmico, começou a viver uma forte turbulência social, quando jovens e estudantes iniciaram protestos contra os altos índices de desemprego nas ruas da capital Túnis. As manifestações logo tomaram vulto e assumiram uma conotação política, criticando a falta de liberdade política no país.
O governo se viu obrigado a agir. Em meio a pedidos de calma à população, o então presidente Ben Ali anunciou o fechamento de universidades e escolas, enquanto o Exército saía às ruas para frear as manifestações. Passaram a haver confrontos regulares, gerando um número ainda incerto de mortos, mas que já passa de 70, segundo dados do governo. Ben Ali deixou o governo e saiu do país, e o novo governo não parou a repressão aos protestos. Há países de maioria muçulmana que vivem democracias, a exemplo da Turquia, mas esse número era maior quando do fim do Império Otomano.
Diante de tantas violações aos direitos humanos, a literatura perde até um pouco da importância, e estranhou-me especialmente a deferência da prontidão em defender Paulo Coelho, quando tantos outros autores brasileiros são censurados no Irã. Não seria mais positiva uma tentativa de inserir outros escritores nacionais nas livrarias iranianas, como Milton Hatoum, Cristovão Tezza, Chico Buarque, Raimundo Carrero ou Alessandro Palmeira? Ou pedir mais transparência nos procedimentos governamentais em áreas como segurança e direitos humanos?
Não é minha intenção afirmar que o modo ocidental seja melhor que o oriental. Considero a democracia política uma aristocracia mais dispendiosa, com um povo que não toma decisões, mas cujas eleições consomem orçamentos enormes. Sequer a negação do sangue azul foi capaz de impedir o luxo dos governantes. Uma ditadura da maioria como a imposta pela maioria cristã em países do continente americano não é muito diferente da imposta por uma minoria. Basta lembrar que em alguns países latino-americanos mulheres são proibidas de abortar mesmo se o feto tiver origem em um estupro. No país que se considera a lâmpada da democracia no mundo seu ex-presidente George Bush pai declarou que os ateus não deveriam ter cidadania americana, pois seu país fora fundado com base no cristianismo. Os pais fundadores discordariam, mas quando o filho invadiu o Iraque baseado num sonho em que deus lhe disse que o governo de Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa (o que leva a crer que deus anda mal informado e talvez precise atualizar seu sistema de onisciência) a fidelidade à coerência histórica por parte do pai fica em último plano. As religiões abraâmicas não receberam esse nome por acaso: as crianças aprendem com o exemplo do patriarca que, quando deus dá uma ordem, não cabe questionamento, ela deve ser cumprida, mesmo que seja para matar o próprio filho. E as pessoas não param de receber ordens divinas, transmitidas em frequências diferentes para judeus, cristãos e muçulmanos, mas sempre com pedidos de sacrifício.
Pesquisas em países asiáticos indicam que as populações preferem bem estar a liberdade, desenvolvimento a eleições. Não tenho certeza que nosso jeito seja o jeito certo, e estou certo de que impor democracia goela abaixo é um atentado à autodeterminação dos povos.
Contudo, ditaduras violentas para seu próprio povo também são atentados à autodeterminação dos povos. Que povo autodeterminaria levar noventa e nove chibatadas por trocar apertos de mão ou usar calças? Como autodeterminar-se quando a própria menção a uma escolha é proibida?
Penso que a maneira europeia de tratar as relações internacionais seja mais positiva que a maneira americana, em especial em relação a nações com apego maior à religião. O sistema puramente punitivo tende a criar maior atavismo, um repúdio mais profundo e duradouro a influências estrangeiras, vistas como interferência não de um povo igual, mas de um poder hostil. Uma política integracionista, com incentivos ao exercício pleno dos direitos humanos, conseguiu integrar sessenta milhões de turcos à União Europeia. Aliás, a atual política internacional europeia em muito diverge do que foi em séculos anteriores. Não custa lembrar que o Islã tem hoje quase a mesma idade que tinha o cristianismo quando os europeus lançaram-se às cruzadas. Inclusive São Luiz tinha como um dos principais objetivos em sua cruzada destruir os vestígios da biblioteca de Alexandria, o qual teria sido plenamente cumprido não fosse pelo senso de conservação dos sábios árabes.
Assim como foi função dos muçulmanos preservar livros antigos da sanha religiosa dos europeus no passado, e transmitir essa sabedoria na clandestinidade, talvez seja nosso momento de retribuir o favor, permitindo aos nossos irmãos muçulmanos que conheçam uma sabedoria diferente, não por meio de uma imposição que instigue a desconfiança, e sim por meio de uma cooperação que incentive a boa vontade e a cooperação.
O Islã está próximo da idade em que iniciamos nosso Renascimento e nosso Iluminismo. Todos os povos que seguem essa religião merecem recuperar o tempo em que viviam em harmonia e tolerância entre si e com o restante do mundo. Uma civilização que nos deu Averróis e Khayyam merece o seu próprio Iluminismo.
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
De teocracias disfarçadas e a última minoria

As pessoas deram ouvidos a um astrólogo novato (Copérnico) que lutou para provar que a terra é que gira, não os céus ou o firmamento, o sol e a lua. Este louco quer contrariar toda a ciência da astronomia. Mas as Sagradas Escrituras dizem-nos (Josué 10:13) que Josué ordenou que o sol parasse e não a Terra.
A Razão deveria ser destruída em todos os cristãos. Ela é o maior inimigo da Fé. Quem quiser ser um cristão deve arrancar os olhos da sua Razão.”
Martinho Lutero
Para os líderes religiosos radicais, não basta elevar o vício da ignorância a virtude imprescindível para a salvação. Também precisam demonizar aqueles que não concordam com isso. Mais, fazem o caminho inverso e transformam a inteligência em pecado, a razão em apostasia, a sabedoria em heresia.
Já escrevi sobre a imposição a todos de dogmas que deveriam ser privados e sobre os problemas de uma democracia que dá às maiorias o direito de impor-se sobre as minorias. Na ocasião, alguns me acusaram de fundamentalizar os contrários ao aborto e de subverter o conceito de democracia. Poucos meses depois, vimos uma disputa eleitoral ir ao segundo turno graças a uma minoria populacional que detém um grande poder econômico e midiático e quer mandar na maioria, mudando a agenda política para tirar o foco das grandes questões nacionais e colocar em discussão opiniões sobre temas que não competem ao poder executivo, e sim ao legislativo. Os pastores evangélicos mobilizam-se para usar seu rebanho imerso na ignorância a uma cruzada para estabelecer uma nova idade das trevas, dessa vez com sermões via satélite. Os mesmos satélites que foram criados por cientistas “imorais e demoníacos” no passado.
Além da televisão, outro produto de “impiedosos filhos de Satanás” que agora serve para propagar seus preconceitos, sua intolerância e seu ódio é a internete. Milhares de emeios, postagens em blogues, fóruns e redes sociais dão o recado do fundamentalismo: não toleraremos qualquer avanço nos direitos humanos, em especial no que tange a mulheres e homossexuais. O próximo passo? Abolir religiões de origem africana ou indígena. Afinal, eles lutaram por liberdade religiosa enquanto não possuíam o poder que detêm agora. Devem erradicar qualquer outro deus, já que o deles é o único. Uma denominação religiosa monoteísta só defende liberdade de culto quando é minoria.
Os pastores e padres não aceitam tratamento com células-tronco embrionárias. Por quê? Aos fiéis, dizem que por princípios cristãos. Mas será um princípio cristão condenar pessoas a deficiência e dor quando se pode salvá-las? Há apenas um motivo para que a religião lute tanto contra o avanço na medicina: se todas as doenças fossem curadas pela ciência, não haveria tantos desiludidos da realidade iludindo-se com as curas imaginárias das igrejas.
No primeiro mandato de Lula fiquei pasmo com o destaque que a imprensa deu à declaração do cardeal Eusébio Scheid, que disse: “Lula não é católico, é caótico.” Vários jornalistas cercaram o presidente da República para cobrar-lhe uma resposta, como se qualquer cidadão, inclusive um Chefe de Estado, fosse obrigado a ser católico. Pior, Lula respondeu defensivamente, confirmando tal obrigatoriedade.
Agora são os evangélicos e grupos católicos de orientação fascista que querem obrigar os candidatos a alinharem-se aos seus dogmas. Sob o emblema da família e dos valores morais cristãos, escondem seu patriarcalismo, seu ódio a todos que ousam ser diferentes.
O mais cruel é que o PSDB, que já sofreu com uma campanha difamatória semelhante quando Fernando Henrique Cardoso, concorrendo à prefeitura de São Paulo em 1985, teve seu ateísmo explorado pela campanha de Jânio Quadros, agora se utiliza do mesmo expediente sem qualquer receio. Muitos PSDBistas acusam o PT de demonizar FHC ao comparar os períodos em que estes partidos estiveram na presidência. Qualquer pessoa isenta perceberá na campanha serrista do segundo turno que é o próprio PSDB que demoniza o ex-presidente. Não bastasse eles tentarem esconder FHC no primeiro turno, agora vão para o ataque contra pessoas com o seu perfil. Espalham-se os emeios que dizem que os “ateus satanistas” (sic) querem dominar o mundo e instituir uma “ditadura homossexual”, com direito a “comer criancinhas e legalização da maconha”. Escondem ainda mais Fernando Henrique, que participa de um grupo internacional que defende a descriminalização da erva.
Dilma, para não perder votos, enreda-se no esvaziamento do discurso eleitoral e se vê na necessidade de deixar de lado os grandes temas como saúde, direitos humanos e educação. Aliás, o manifesto dos reitores do Brasil em favor de Dilma, por considerá-la a melhor candidata para fazer avançar o ensino superior no Brasil, é um verdadeiro fogo amigo contra a candidata, já que para fundamentalistas falar em avanço da educação é falar em escassez de fiéis, digo, de “domínio do demônio” sobre uma sociedade racional, quer dizer, “ímpia”.
O fato é que, a depender dos líderes cristãos, a Terra ainda seria o centro fixo e achatado do universo e estaríamos tratando as doenças com exorcismos (na verdade, anda há muitos doentes procurando esse tipo de tratamento).
Os ateus são chamados diuturnamente de imorais e criminosos, e tal preconceito é ampliado na campanha eleitoral. Os ateus são a última minoria, a mais marginalizada e hostilizada. Sempre que um crime bárbaro é cometido, seu autor é taxado como alguém “sem deus no coração”. É imperativo que aqueles sem deus (na mente, no coração ou em qualquer outro lugar) demonstrem que são seres humanos morais, responsáveis, preocupados não com crenças de foro íntimo, e sim com o bem-estar social e os direitos humanos. Enquanto os ateus se calam e se escondem, com um discurso de não se declarar para não criar problemas com os religiosos, estes perseguem aqueles em seus púlpitos e na vida pública, condenando-os ao inferno, no qual desejam avidamente que queimem junto com homossexuais, mulheres insubmissas e tudo o mais que não se adéque ao padrão patriarcal do seu cristianismo do orgulho branco.
Quando José Serra fala em “valores religiosos das pessoas de bem”, insinua que quem não tem valores religiosos não presta. O próprio termo “cidadão de bem” subverte o conceito de cidadania, gerando o ideia de uma divisão dos cidadãos em diferentes castas sociais. São os “nós”, cristãos de classe alta, urbanos, esbranquiçados, heterossexuais defensores da vida, contra os “eles”, os promíscuos, degenerados, anticristãos, ateus. Não é necessário dizer que os “nós” possuem os meios de comunicação e o poder econômico para difundir seus preconceitos como uma verdade inalienável.
Caminhamos a passos largos para um estado teocrático, com líderes religiosos radicais elaborando as leis que devem reger a todos. Religiosos de outros credos, cristãos moderados, agnósticos e ateus que se calarem agora não poderão reclamar quando forem obrigados à conversão, ao ostracismo, quando estiverem no exílio da vida pública.
Ou na fogueira.
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
De tiranias do povo, pelo povo e para o povo

Bourget
A democracia surgiu em moldes bem diversos dos das atuais. Quando tal forma de governo foi adotada na Grécia, os cidadãos tomavam parte ativa no governo da Polis. Reunidos em assembleia, votavam diretamente sobre os temas do debate, sem a escolha de intermediários para tomar suas decisões, como ocorre atualmente, com a escolha de “representantes” (embora houvesse cargos eletivos para execução de questões mais práticas). Obviamente, com apenas algumas centenas de cidadãos era mais fácil reuni-los. E para ser cidadão não havia a mesma facilidade que atualmente: mulheres, homens jovens ou pobres e escravos não podiam tirar o título eleitoral. Continuava, portanto, o governo de poucos sobre muitos, embora os poucos passassem a se chamar “maioria”.
Os cargos eletivos foram criando mais e mais importância e acumulando maior poder, até que os cidadãos passaram a participar de um sistema que daria origem ao parlamentarismo: cidadãos escolheriam um conselho de anciãos (senado) que por sua vez escolheriam um governante em situações especiais. A última dessas situações especiais deu origem à tirania de Júlio César, já no incipiente Império Romano, que poria fim à democracia até então praticada.
Nos séculos seguintes, poucos povos tiveram o mesmo ímpeto por auto-governar-se que os gregos. Discordo de Aristóteles, quando diz que “a democracia surgiu quando, devido ao fato de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si”. Vejo no surgimento da democracia grega mais o desejo de não ser superado por outrem do que o de igualdade. O afã de governar, não o de repartir o poder. Não por acaso o próprio Aristóteles diz que “democracia é a mais severa forma de despotismo”. Quando os cidadãos querem, pela força do número, governar seus iguais, determinando seu comportamento em todos os âmbitos da vida, um despotismo da “maioria” está instaurado. Tal despotismo não vê igualdade absoluta entre as pessoas: obriga os desiguais a igualar-se à maioria.
Os movimentos que fizeram ressurgir a democracia a partir do iluminismo não tinham sentimento muito diferente do antigo. Cidadão passou a ser sinônimo de burguês de grandes posses, embora muitos ativistas da Revolução Francesa discordassem disso. O sistema presidencialista, erigido nos Estados Unidos, foi exportado para vários lugares do mundo, inclusive o Brasil. Seria um sistema ideal para qualquer país que quisesse ter um rei eleito pelo povo.
Todas as formas de poder democrático até a atualidade mantiveram o sistema de eleição de representantes do povo, que não toma decisões diretamente. No Brasil, o processo de escolha dos representantes se dá a cada dois anos, com ciclos de escolha de legisladores e governantes municipais intercalados pelos dos estados e da União. O poder judiciário não é eletivo. Na luta pelo poder, via de regra há que se gastar muito dinheiro para obtê-lo. Quantias vultosas são despendidas nas campanhas eleitorais.
Primeiramente, quero frisar bem o termo campanha eleitoral. Erroneamente, as pessoas em sua maioria se referem às eleições como “tempo de política”, e considero importante partir daí para lembrar que é sempre tempo de política, de lutar pela melhoria da polis, da cidade (ou Estado e União, exemplos mais amplos de Polis). Portanto, cabe sempre destacar que campanha eleitoral não é sinônimo de campanha política. Campanha eleitoral é também uma campanha política, o ápice da luta pelo poder na democracia representativa que vivenciamos atualmente. Entretanto, há campanhas políticas que fogem do eleitoral, que mobilizam parcelas populacionais desinteressadas do poder, mas engajadas na luta pelo estado de direito. A campanha pela lei da Ficha Limpa foi um exemplo pontual. Exemplos constantes de campanhas políticas são os movimentos pela reforma agrária, pelos direitos dos homossexuais ou pela descriminalização do aborto. Em geral, os temas debatidos em campanhas políticas extensas e apartidárias não entram no debate das campanhas eleitorais, devido ao fato de serem temas polêmicos, desaprovados pelo público mais amplo, o que faz os candidatos preferirem ignorá-los.
Para obter o poder, o candidato se faz candidato da maioria, pois é a maioria que tem o poder de outorga do governo.
A pergunta que me faço e ao leitor é: será esse o melhor sistema de governar? Talvez o fosse, quando havia barreiras intransponíveis para o reunião de todos os cidadãos para deliberar sobre qualquer assunto. Mas tais barreiras não existem mais. Cem milhões de pessoas podem votar para a saída de algum participante de um reality show. Por que, então, os cidadãos não poderiam participar mais ativamente do governo da nação?
Além de propiciar maior transparência nas decisões do governo, uma democracia mais participativa teria o poder de trazer todas as minorias para o debate social. Talvez, lentamente, a maioria passasse e respeitar os anseios das minorias. E, o mais importante, chegar ao ponto que Platão tanto criticava: “A democracia é uma constituição agradável, anárquica e variada, distribuidora de igualdade indiferentemente a iguais e desiguais”. Não seria exatamente este o ponto: chegar ao respeito e inclusão de todos? Trata-se não de levar todos à igualdade, mas de levar a igualdade a todos. Qual o direito mais igualitário, senão o de sermos todos diferentes?
Democracia modernamente não significa governo de muitos sobre poucos, mas governo para inclusão de todos no processo social. Temos que ter o esclarecimento de que não é porque nossas opiniões são majoritárias que devem ser impostas a todos, quando se trata de questões de foro íntimo.
Quando eu digo que não é um governo de muitos, não quero com isso dizer que uma minoria deve governar. Quero salientar que a democracia deve ser um governo de todos, com a inclusão de todos no processo. Por exemplo, não é porque sou heterossexual que devo determinar que todos o sejam, ou cercear os direitos daqueles que não o são. Incluir também os homossexuais é um exemplo de democracia inclusiva.Em questões de foro íntimo, que não interfiram na vida pública, os particulares devem ter o direito de se determinarem, por mais minorias que sejam. Até que o termo minoria deixe de fazer sentido em outro âmbito que não o estatístico.
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
De fantasmas esquecidos e consciências entorpecidas

“A necessidade de encontrar alternativas ao petróleo já é ponto pacífico. Queremos convencer as pessoas de que todos sairão ganhando com isso. É bom para o meio-ambiente, é bom para a segurança nacional, é bom para a economia, é bom para o futuro dos nossos filhos e, por incrível que pareça, também é bom para o futuro dos povos do Oriente Médio. Qualquer governo que consegue gerar tantas divisas simplesmente porque perfura o solo não tem nenhum tipo de incentivo para educar as crianças, dar estudo às mulheres, envolver o povo no processo político; não tem motivo para fazer nada além de perfurar o solo e extrair o óleo negro (…) É uma vida cômoda, cheia de belos palácios.”
Carl Luft, Instituto para Análise de Segurança Global
O tampão desenvolvido para parar o vazamento de óleo na bacia do Golfo do México tem um poder incrível. Não apenas estancar o mais terrível desastre natural da história, como também mergulhar nossas consciências em torpor, estancando nossa própria indignação com o irrecuperável prejuízo para a fauna e a flora globais. Um tampão para a memória, trazendo um esquecimento que nos prepara para um novo século de petróleo.
Desde a perfuração do primeiro poço de petróleo pelo norte-americano Dake, em mil oitocentos e cinquenta e nove, os combustíveis fósseis queimaram sem parar, tornando-se a principal fonte de energia e matéria-prima das civilizações. Nos cento e cinquenta anos seguintes, a população humana saltou de um para sete bilhões. Passamos do navio a vapor para o ônibus espacial, do telégrafo à internete.
Tais avanços cobraram seu preço
Os irmãos Wachowski levaram seu agente Smith a constatar: os seres humanos não são mamíferos: são vírus. Em nossa voracidade, buscamos a dominação de todo o globo sem a precaução do futuro. Como vírus que matam o hospedeiro, os humanos estamos matando o solo, a água e os seres vivos dos quais nos servimos. O petróleo, resíduo de depósitos sedimentares de matéria orgânica e seres vivos que vieram antes de nós em milhões de gerações, é um fantasma que nos acusa de incompetência para gerir nosso desenvolvimento de maneira sustentável. Um avantesma que nos diz “sou o fruto de infinitas mortes, e vos servirei para mortes infinitas”.
O Brasil tem a liderança global na produção de combustíveis e matérias-primas alternativas, com avançadas tecnologias e uma moderna compreensão do nosso papel no mundo. Todavia, a descoberta de óleo no pré-sal causou um recrudescimento em nossa agenda de sustentabilidade. Delfim Neto bem observou que o “pré-sal é agenda do século vinte, não do vinte e um.”
Em questões tão delicadas quanto esta, cabe-nos evitar o romantismo dos ecólogos mais radicais, mas também o mau-caratismo dos capitalistas preocupados unicamente com lucros. Se nosso avanço até aqui foi garantido através do petróleo, ele agora é um risco não apenas para nosso planeta, como também para nossas sociedades, para a segurança de nossos direitos, para a sustentação da paz. Não bastam os avanços técnicos, se continuarmos prisioneiros de conflitos medievais.
Talvez a chama que iluminará nosso futuro deva ser acesa por combustíveis renováveis e não poluentes, para que continue a nos iluminar sem o risco de apagar toda a vida na Terra.quarta-feira, 21 de julho de 2010
De temerário inoportunismo

Nietzsche
Para além da teoria literária, adiante da crítica, após o horizonte do livro, subjazem conceitos que se transferem da obra para seu feitor. O ofício da escrita, assim como qualquer outro, exige alguém qualificado intelectual, emocional e fisicamente. A esse profissional da escrita chamaremos escritor, do qual falaremos um pouco mais, para diferenciá-lo daqueles que apenas escrevem e que não devem se confundir com escritores.
Deixemos à parte a técnica, a dedicação, o árduo trabalho de tecitura do texto, e voltemos nossa atenção para algo de suma importância na produção daquilo que podemos chamar verdadeiramente escritor: a personalidade.
O escritor não poderia deixar de ser um homem comum, como os que mais o sejam. Comum a ponto de tornar-se totalmente diferente, um solitário desdenhado por aqueles que não compreendem sua necessidade de compreender. Solitário não porque se ache especial: apenas percebe que as vidas ao seu redor são tão insignificantes quanto a sua própria. É exatamente esse senso de que nada tem de especial que o leva à aventura de espelhar na arte o trágico de ser humano. Apenas os mais humanos podem transcender a individualidade de homem para redimir ou condenar toda a humanidade. Percebem que a única maneira de atribuir sentido ao absurdo do existir é por intermédio da arte.
O escritor não tem medo. Não apenas é corajoso, mas também temerário. Não se trata apenas de não correr do perigo: trata-se de correr para o perigo. O escritor é o perfeito inoportunista. Jamais perde uma oportunidade de ser inoportuno, de bradar verdades dolorosas para todos, para ele inclusive. Não à toa será chamado pelos desafiados víbora: sua verdade é venenosa até mesmo para si. Não pode prendê-la, guardá-la, escondê-la.
O escritor não é aquele que mais sabe de si mesmo ou do mundo. É tão somente aquele que temerariamente não nega o que sabe, aquilo que todos sabem, mas não conseguem admitir. Prefere o veneno da verdade à mentira analgésica de cada dia.
O escritor não se permite ter fé. A fé congela a alma, paralisa o intelecto, ilude os sentidos. Tudo no escritor pede calor, movimento, sensação. Mesmo a ilusão que sai da mente do escritor contém uma venenosa realidade. O personagem é um microcosmo que copia o movimento celeste, ou um macrocosmo para simulação de acasos quânticos.
A verdade é açoite, e o escritor auto-flagela-se antes de açoitar seu público.
Diante do mundo que o ameaça, utiliza-se da mais perigosa técnica de auto-defesa: desfere com suas palavras o mais duro golpe possível, sobre o mais poderoso dogma. Bate da forma mais dolorosa contra o lugar mais doloroso do que se chama autoridade. Maldição para o escritor é não ser amaldiçoado. Cobiça uma milhar de religiões, para conquistar uma milhar de excomunhões. Deseja um milhão de deuses, para ser condenado a um milhão de infernos.
No mais profundo da psiquê do escritor há o temor da segurança. Como sobreviverá sua alma em plácida serenidade? Reside aí uma vontade que o conduz à sua obra: o desejo da fogueira.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
De leis mortas por “defensores da vida” ou um embrionário diálogo sobre fatos e fetos

“O que a sua geração não sabe e a minha quase já esqueceu é o quanto éramos ignorantes naquele tempo, como eram estranhas nossas atitudes – para com sexo e tudo que se relacionava a ele. Anticoncepcionais, divórcio, homossexualismo, doença venérea. E gravidez fora do casamento, nem pensar, a pior coisa que podia acontecer. Nas décadas de 1920 e 1930 famílias respeitáveis internavam as filhas grávidas em asilos de loucos. Mães solteiras eram obrigadas a marchar pelas ruas, humilhadas pelas instituições que deviam tomar conta delas. As moças se matavam tentando o aborto. Parece loucura agora, mas naqueles dias, uma jovem grávida provavelmente achava que todos estavam certos e ela era louca e merecia todo o castigo. As atitudes oficiais eram extremamente punitivas, extremamente rigorosas.”
No trecho acima, extraído do romance Cães Negros, de Ian McEwan, a personagem fala das décadas de vinte e trinta do século XX, na Europa; contudo, não pude deixar de pensar que as mulheres do fim desse século nas Américas, e mesmo do fim do próximo, nos países teocráticos islâmicos, poderão referir-se com o mesmo alívio e espanto quando falarem das suas próprias décadas de vinte.
Sempre que se pede uma justificativa para as grandes tragédias naturais, os fiéis das religiões abraâmicas dizem que os desígnios de deus, qualquer deles, são inescrutáveis, e não nos cabe tentar compreender as milhares de mortes de inocentes. Entretanto, esses mesmos fiéis parecem possuir uma linha direta com sua divindade, quando se trata de nossa sexualidade. São verdadeiros psicólogos de deus, conhecendo cada pormenor de seus traumas. Sim, pois deus deve trazer terríveis traumas de infância, para se preocupar tanto com o que as pessoas fazem com seus pênis, vaginas e ânus, com seus testículos e úteros.
E essas pessoas, que desejam carregar consigo os traumas do seu deus, que consideram pecado a felicidade e o prazer, que consideram boa e bela a auto-castração, não se limitam a conduzirem-se (quando se conduzem, o que é raro) conforme acreditam ser vontade de deus, mas querem transformar sua conduta privada em lei pública, obrigatória mesmo para aqueles que não compartilham das mesmas certezas que eles sobre o que seja deus ou sua vontade.
Há países em que a mulher que puser fim ao fruto de um estupro será condenada à prisão perpétua, lei essa que recebe a bênção da Igreja Católica, que aliás não considera mesmo estupro como algo grave. Nos Emirados Árabes, recentemente um caso chamou atenção mundial, quando líderes religiosos, sabendo que uma menina havia nascido grávida, devido ao embrião de seu irmão gêmeo ter-se unido ao seu útero em formação, não quiseram permitir o aborto, preferindo condenar a criança à morte a extirpar algo que jamais se tornaria um ser humano. São comuns penas de morte na Indonésia, maior país islâmico. Nos Estados Unidos, os mesmos grupos religiosos que invadem clínicas de aborto e fazem campanhas para derrubar leis que permitem sua prática, que são contrários à eutanásia, ao suicídio assistido e às pesquisas com células-tronco, também vão às portas das penitenciárias defender a pena de morte.
Na verdade, é impressionante como é exatamente na parcela da população que mais defende o “não matarás”, dos auto-declarados “defensores da vida”, que encontramos os maiores defensores da pena de morte, inclusive com requintes de crueldade, enquanto se opõem ferrenhamente a que uma pessoa que saiba que tem uma moléstia progressiva que a tornará um vegetal, uma cruz para sua família, possa morrer dignamente.
É também muito comum ver pessoas religiosas que, ao saber que uma grávida decide abortar um feto sem cérebro, desejam que a mãe também morra no processo, e que vá arder no inferno. São defensores da vida, claro.
Evidentemente que não há muita gente que faça questão de ir para o paraíso passar um trilhão de anos acompanhado dessa gente, mas deixemos o além e todo o paraíso para esses indivíduos, e pensemos na realidade que sabemos que existe, a nossa.
Primeiramente, para acalmar os fanáticos que chegaram até aqui, devo dizer que as leis penais servem para dizer o que não se deve fazer, e não o que se deve; ou seja, uma lei que descrimine o aborto não obrigará aquelas que não quiserem fazê-lo a aderir. Todas continuarão tendo a liberdade de ter seus filhos (embora os argumentos dos líderes religiosos digam o contrário: pastores vivem no Congresso dizendo que a legalização do casamento gay será o fim da família, como se todo mundo fosse gay e estivesse apenas esperando a liberação para começar a casar com pessoas do mesmo sexo. Da mesma maneira, acham que nenhuma mulher tem instinto materno, e que não nascerá mais ninguém, pois todas abortarão tão logo deixe de ser proibido).
Agora que está claro que as que não quiserem não serão obrigadas a abortar, assim como quem quiser continuar vegetando não será obrigado a receber eutanásia, pensemos naquelas que poderão optar, seja por questões sociais, médicas ou econômicas, pelo aborto.
Atualmente, estima-se que setenta mil mulheres morrem anualmente ao praticar abortos ilegais, noventa e cinco por cento delas nos países em desenvolvimento, exatamente aqueles que têm maioria religiosa e leis que criminalizam o aborto. Os mesmos países que estão atrasando sua medicina ao impedir pesquisas com células-tronco embrionárias, e que possuem péssimos sistemas de saúde e programas deficitários de segurança. Preciso lembrar da educação?
O cientista Carl Sagan defendia como critério para a permissão do aborto o período de formação daquilo que diferencia o ser humano dos demais animais: o neo-córtex cerebral. Essa camada do cérebro, que recobre nossa psiquê reptiliana e mamífera, forma-se no início do segundo trimestre de gestação. Seria esse o período limite para Sagan. Pensamento até retrógrado ou reacionário para alguns países europeus, que permitem o aborto até o início do terceiro trimestre. Todavia, compreendo que seja muito avançado para países como o nosso, que ainda permitem campanhas contra o uso de contraceptivos em nome da liberdade religiosa. Infelizmente, em nome da religião se permite o estelionato, a lavagem de dinheiro e a desinformação em massa, o ativismo contra a ciência e a educação, a verdadeira guerra contra a liberdade de opinião. Mas prossigamos.
Sendo o pensamento de Sagan avançado para nossos padrões, já que o critério que os religiosos insistem em utilizar é não o da humanidade, mas o do início da vida, considero que um passo importante seria tomar como critério para o começo da vida o mesmo que utilizamos para decidir seu fim: o funcionamento do cérebro, ou a atividade encefálica. Tal entendimento solucionaria não apenas a questão do aborto, como das pesquisas com células-tronco embrionárias.
Nossa lei concorda com a opinião científica de que, a partir do momento em que o indivíduo deixa de apresentar atividade encefálica, deixa de estar vivo, mesmo que aparelhos o façam respirar. É justo, então, considerar que o embrião, quando não apresenta ainda atividade encefálica, ou seja, antes de desenvolver um cérebro e órgãos auxiliares (o que ocorre por volta da sétima semana de gravidez, com a encefalização), não é um ser vivo, mas apenas um corpo que respira com a ajuda de um aparelho, a mãe.
A única diferença é que aqui não se desliga o aparelho, mas o ser que funciona sem sentir e sem saber.
Desumano? Apenas para aqueles que creem que um erro deve ser carregado para todo o sempre, ou que a vida deve ser vivida não importa como, com que dores e desgraças. Para esses, planejamento familiar é desnecessário, assim como condições básicas de vida que garantam a dignidade das famílias e de seus recém-nascidos. Para aqueles, o sofrimento é satisfatório e merecido. Para ambos, viver sem atividade encefálica é mesmo uma bênção.
Nada contra. Queremos apenas que não imponham sua bênção aos demais.
Amâncio Siqueira
domingo, 6 de junho de 2010
De Sofredores, Poetas e Poetas Sofredores
“O artista não exprime as suas emoções. O seu mister não é esse. Exprime, das suas emoções, aquelas que são comuns aos outros homens (...). Assim, o primeiro princípio da arte é a generalidade. A sensação expressa pelo artista deve ser tal que possa ser sentida por todos os homens por quem possa ser compreendida.”
Fernando Pessoa
“Para ter a alegria de dizer que não sou normal. E que escrever é a loucura de gramaticar erros.”
Alessandro Palmeira
O fato de não ser poeta me torna suspeito para falar sobre o fazer poético, ou sobre o conceito de poesia. Entretanto, isso não me impede de degustar poesia e pensar a respeito de seus melhores representantes.
É trivial ver poetas e apreciadores falando sobre inspiração, sentimento, introspecção e coisas igualmente diáfanas e incomensuráveis como interseção espiritual indispensável para o fazer poético. O poeta deve derramar sua alma, para ser autêntico. Se ele não sentir, não cria.
Diria Picasso: "Inspiração é uma maravilha. Pena que não apareça quando estou trabalhando."
A obra, qualquer que seja, nasce do trabalho. Não é à toa que é exatamente quando o escritor está trabalhando em seu texto que surgem as alternativas e resoluções de problemas para o andamento do mesmo. Mesmo quando vem aquela frase genial, a mesma não surge do nada, mas do trabalho do inconsciente, que aflora de repente. Não vem do nada, mas do esforço do autor para solucionar o texto. Tampouco é revelação divina.
Mudemos o foco do fazer para o feitor. Analisemos os grandes poetas. Será que Shakespeare e Goethe esperavam a inspiração para fazer falar suas almas? E o Pessoa, possuía oitocentas almas, cada uma com o estilo de um heterônimo? As cores e luzes de Borges e Milton foram inspiradas por sua cegueira? E Cabral de melo Neto, que sempre disse que sua poesia era puro trabalho, pois inspiração simplesmente não existe? Ainda sobre o talento: Goethe destruiu seu primeiro Fausto, escrevendo outro anos mais tarde. Talento desperdiçado?
Aqui devo deixar clara a definição de poesia que considero mais válida, embora não esgote o assunto. Coaduno a opinião de Janilto Andrade, que considera poesia como linguagem elevada ao máximo grau de significação. Que, ao invés de reduzir a poesia, amplifica até o infinito. Só descarta textos em prosa divididos em versos. Se o texto tem um sentido só, se não é carregado de referências, se cada palavra não é exata, então é um texto dividido em versos, e não poesia. Um ofício dividido em estrofes e rimas ricas não deixa de ser um ofício.
Um crítico inimigo nosso pega esses textos carregados de sentimentos e diz: "Isso é um tremendo vômito intelectual." Ou seja, o escritor que se resume a regurgitar-se, a falar de si mesmo, jamais será um profissional. Já pensaram se a Capela Sistina fosse uma série de auto-retratos de Michelangelo? Que falar de um ator que só interprete a si mesmo?
Lembro que a ideia do vômito intelectual não é minha, mas de um crítico literário. Achei importante colocá-la para as pessoas que escrevem poesia e pretendem ser publicadas. Os críticos pensam assim, e quem quiser profissionalizar-se deve atentar para isso. Envie um original molhado em lágrimas e outro com um texto enxuto e bem construído, e verá qual será publicado.
Toda arte é assim. Ou se busca o universal, ou deixa de ser arte.
Sartre fala bem sobre isso no Ser e o Nada, quando diz que não há diferença entre o ser e a aparência, afirmando que Proust não é um gênio pela capacidade de criar uma obra, mas pelo resultado da obra criada. É a obra o fenômeno em si, e não o potencial que a antecipa. Se o escritor não trabalha, não escreve, nunca será um gênio, simplesmente porque não aparecerá.
Ainda sobre o conceito de poesia que deixei, segue um exemplo do poeta Alessandro Palmeira:
"Na ausência da água, tomei a sede."
Cada palavra é exata. Não precisa ter a palavra amor, ou a palavra sofrer, ou lágrima, desejo ou tantas outras. Milhões de interpretações. Poesia para pensar e refletir por anos. Universal.
Evidentemente, quem precisa de um texto rápido (não confundir com texto curto – texto rápido é aquele que se esgota automaticamente, que não exige do leitor), carregado de palavras fáceis, na verdade prosa dividida em versos, não encara tal texto como poesia. Cadê o sentimento derramado? A introspecção do poeta?
Sirvo-me dessa interpretação negativa do poético comum em rodas de poetas para lembrar de Umberto Eco: um texto não quer dizer nada. Um texto não é seu autor: é seu leitor. É o leitor que dá sentido ao que vem no texto. Especialmente poesia. Se o autor não é capaz de sentir o que não sente, de provocar no leitor sentimentos e pensamentos que ele mesmo não traz em si, então ele não é escritor, apenas autor de textos escolares. Capazes de emocionar amigos e familiares, e que não dizem nada para os demais.
Não digo que qualquer um pode ser escritor apenas com trabalho. Mas ninguém o será sem isso. Ao menos eu nunca encontrei um. Talvez o Bukowski. Embora não duvide que ele sempre trabalhou seus textos.
Quando tinha dezesseis anos, vi uma mulher e inspirei-me a escrever uma estrofe. Depois de passada a primeira emoção, escrevi uma segunda. Meu amigo Márcio Jardson leu ambas e disse: "Interessante, a estrofe escrita sem inspiração ficou melhor que a outra." Desde então percebi que o sentimento que o escritor sente ao tecer o texto dissipa-se até para ele mesmo. Qual o poeta que lerá um poema de vinte anos e sentirá a mesma emoção que sentiu então? Emoções são emaranhados de substâncias químicas agindo no cérebro. O texto deve ser mais que isso.
Sobre a autenticidade do sentir do poeta: para quem acredita (e isso é realmente questão de fé) que poesia verdadeira tem que ser sentida, e que o sofrimento auxilia a criar autenticamente, aconselho que comece imediatamente a ler os melhores poetas: os haitianos