domingo, 31 de julho de 2011

De críticas à feminilidade e feminilidades críticas

“Essa questão sobre literatura feminina é uma questão de poder, e não de literatura. Tanto é uma questão de poder que não alcança as grandes escritoras. Ninguém questiona a literatura de Cecília Meireles como literatura feminina.”

Marina Colassanti

Na Flip 2011, em mesa composta por Pola Oloixarac e Valter Hugo Mãe, a escritora argentina afirmou que a crítica tem uma abordagem diferenciada em relação às escritoras, deixando de abordar os temas pertinentes à literatura para abordar outros que não deveriam ser importantes para o leitor, ao mesmo tempo em que trata alguns temas como estranhos às escritoras. Quando o autor português expressou o projeto de escrever um livro sobre o desejo de ser pai, Oloixarac ironizou: "Se eu escrevesse um livro sobre este mesmo tema, iriam dizer que eu soava como uma das garotas daquele seriado, 'Sex and the City'”.

Em conversa com Luzilá Gonçalves e Marina Colassanti, durante o Festival de Inverno de Garanhuns, Cida Pedrosa perguntou exatamente se existe uma “literatura feminina”, e parte da resposta de Colassanti abre este texto.

Confesso que essa questão, assim como tantas outras internas ou externas à literatura, como se Capitu traiu ou não, ou se o Jabuti foi ou não justo, sempre passaram alheias a mim. Entretanto, são questões que se apresentam vez ou outra, e às vezes nos exigem um pouco de reflexão, nem que seja para que passem novamente ao alheamento.

Sobre o tema da paternidade ou maternidade em literatura, calhou de eu estar lendo exatamente no momento da efervescência do debate sobre a feminilidade literária o Balé Branco, de Carlos Heitor Cony, que traz uma bailarina que quer ter um filho de forma independente como a personagem principal, e é uma perfeita mostra de um tratamento literário para tal tema sem resvalar no simplismo de uma literaturagem.

Talvez a leitora ache que eu penso dessa forma pelo fato de o livro ser escrito por um homem e trazer uma ótica pouco feminina, com sua frase final: “Também, para quê?”. Nada mais distante da realidade. Primeiramente, por não considerar que haja um sentimento homogêneo que possa chamar-se feminino, e Betinha me pareça tão feminina quanto qualquer outra personagem. E, de maneira ainda mais profunda, pelo fato de eu não dar importância para as questões de gênero na literatura exatamente por nunca ter colocado tais vendas em minhas leituras. Não atoa, um dos melhores livros que já li, Memórias de Adriano, foi escrito por uma mulher, Marguerite Yourcenar, e trata precipuamente de um amor homossexual masculino.

Vejo uma crítica diferenciada por gêneros, porém por um ângulo diferente: recebem destaque exatamente mulheres que fazem literaturagem para mulherzinhas, de preferência adolescentes que leem Capricho ou recém-chegadas ao mundo de Contigo e Caras.

Sou admirador das Marguerites Yourcenar e Duras, de Isabel Allende, Laura Esquivel, Clarice Lispector, entre tantas outras escritoras de literatura, e o que observo, ao menos na internete, é que pouco valor se dá para esse tipo de escritoras, ou ao menos a novas escritoras que pertençam a essa categoria. Talvez essa preocupação exacerbada com as aparências que contamina toda a nossa sociedade esteja também impregnada no meio literário, e também aí atinja em cheio as mulheres, que não hesitam em manter essa indústria de massificação da moda. Talvez o fato dos escritores não fazerem muita questão de serem bonitos os livre de uma exigência do público e da crítica nesse sentido. Creio que passaremos ainda alguns anos sem a necessidade de um muso nas feira literárias, enquanto as musas serão cada vez mais destacadas.

Ao menos o que deduzi das falas de Oloixarac foi uma aparente contradição: ao mesmo tempo o desejo de tratar de temas a la Sex and the City sem esteriotipização da crítica e a vontade de ter direito de tratar temas profundos. Ou talvez ela tenha tecido duas críticas distintas a duas críticas distintas: uma crítica universitária mais hermética, preocupada com o trato da linguagem e a abordagem dos grandes temas de forma inovadora, e a crítica jornalística, “superficial”, que, até mesmo por causa do pouco espaço, atribui rótulos, e está sempre à procura do novo bestseller com linguagem-simples-como-um-roteiro-de-cinema. Vale lembrar que um volume altíssimo de ambas é produzido por mulheres.

O que depreendi da crítica internética e jornalística é que é impossível escrever bem e escrever para o mercado, seja um escritor ou uma escritora. Não que uma excelente obra não possa tornar-se sucesso de público, mas tais grandes obras necessariamente passarão por um caminho mais longo para chegar a tal. Como qualquer outro produto, o livro é mais difícil de ser vendido quando não traz um rótulo que o identifique com determinado público alvo.

Note-se que, no afã de escrever uma crônica contra os rótulos, acabo de rotular Balé Branco e Memórias de Adriano. Os rótulos que acabo de criar não traduzem o poder desses livros. Nenhum resumo de duas linhas é capaz de dar uma ideia mínima de um grande livro. Rótulos são necessários para que consumidores massificados sejam atraídos para produtos industrializados, prontos para o consumo. E é aí que, a meu ver, se encaixam as literaturagens para mulherzinhas, adolescentinhos, homossexuaizinhos, nerdinhos, negrinhos, cristãezinhos, ateuzinhos ou quaisquer outros. Livros de vitrine, com público alvo, conteúdos ensacados com tabela de nutrientes por porção.

Em tempo: sobre o projeto de Valter Hugo Mãe: que temazinho de homenzinho, hein?

Amâncio Siqueira

Nenhum comentário: