domingo, 31 de julho de 2011

Um erístico engano


Devo confessar-me entre o número das pessoas iludidas.

Entretanto, não o fui por um descuido dentro do debate. Posso dizer que o fui somente antes que o debate se iniciasse.

Esse é o problema da atualidade: o adversário usa de artimanhas erísticas mesmo antes de começar a debater.

O debate a que refiro, assim como o engano em que caí, foi a compra do livro Como vencer um debate sem precisar ter razão, publicado pela Topbooks. O primeiro estratagema usado pela editora é o argumentum ad verecundiam, já que ela atribui a Arthur Schopenhauer um livro de Orvalho de Carvalho. Obviamente que tal argumentum é extremamente eficiente, tanto que eu comprei o livro por querer aprofundar-me na obra do filósofo alemão (além do prazer que tenho em ler suas tiradas de ácido pessimismo). Se eu não compraria um livro de Olavo de Carvalho antes de conhecê-lo, muito menos o faria após.

Bem, no debate dialético que ocorre entre um livro e seu possível leitor, no qual o livro apresenta argumentos favoráveis e contrários à própria compra, saiu vencedora a editora, pois acabei cedendo aos argumentos favoráveis. Todavia, no debate com o livro já comprado, quando passa-se a discutir com o próprio autor, posso dizer que me saí melhor. Ao menos não comprei inadvertidamente seus conceitos.

Posso afirmar que muito disso se deve à falta de tato do Olavo mesmo. Sua nota prévia de dez páginas, nas quais só fala de si mesmo, já deixa o leitor alerta para possíveis enganos travestidos de erudição. Lá pelas cinquenta páginas que se passa à procura de Schopenhaeur, surge essa engenhosa descrição do mesmo: essa alma religiosa e sofredora. Pensei: teria pego um tratado sobre Kierkegaard por engano? Não, eu não estava enganado sobre o livro que tinha em mãos, e também não fui, daí em diante, enganado por ele.

Das duzentas e cinquenta páginas do volume há sim umas cinquenta do próprio Schopenhauer, e todas as outras são de Olavo de Carvalho comentando Aristóteles ou “demonstrando” o quanto Schopenhauer não é aristotélico. Ele poderia ao menos ter se perguntado se Schopenhauer tinha alguma intenção de ser aristotélico.

Corrijo-me: longe de serem todas as páginas escritas por Olavo comentários sobre Aristóteles, e estaria cometendo e sujeito e ser alvo de ampliação indevida: há um enorme espaço dedicado ao combate contra a “esquerda intelectualóide”, à defesa do mccarthismo como verdadeira prática democrática, e de empresas ou indivíduos investigados pelas ditatoriais CPI's do Congresso Nacional.

Em comentários sobre o argumentum ad verecundiam (argumento de autoridade), depois de uma longa nota em que reflete sobre a dificuldade que esquerdistas têm para raciocinar por si mesmos, e sensibilizado pelo fato de, para a “esquerda”, qualquer indivíduo sem nenhuma capacidade intelectual erigir-se a autoridade em qualquer matéria pelo simples fato de ter sido torturado pelo regime militar, escreve: “A autoridade dos poetas varia conforme a época e lugar. Clássicos gregos não exercem em geral, no Brasil de hoje, o menor efeito. Nos meios universitários, é preciso citar Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges ou Nélson Rodrigues (por irônica coincidência, todos conservadores, politicamente).” De fato, que “irônica coincidência” que seu exemplo posterior simplesmente contrarie sua tese! O autor simplesmente faz uma instância, ou exemplum in contrario, de si mesmo.

Porém não se engane o leitor, caindo numa pista falsa, ao acreditar ser isso um símbolo de honestidade de Olavo de Carvalho.

Veja como ele consegue utilizar diversos estratagemas erísticos para “rebater” a refutação do argumento ontológico de Anselmo de Canterbury, feita por Kant:

“(Anselmo) diz, em essência, o seguinte: 'deus é, por definição, o ser perfeito; ora, a inexistência é uma imperfeição; logo, ela não faz parte da natureza de deus'. Segundo Kant, a prova ontológica, sendo a priori, só se refere ao conceito de deus e não implica que o objeto conceituado exista realmente. Dito de outro modo, da análise de um conceito não se pode deduzir a existência de seu objeto. Mas as coisas não são tão simples. Coloco à refutação de Kant as seguintes objeções: 1º A evidência de uma proposição pode ser reconhecida não só pelo sentido de certeza, isto é, subjetivamente, mas também por análise lógica: proposição auto-evidente é aquela que só pode ser contraditada por uma proposição equívoca, isto é, de duplo sentido. 2º logo, um juízo auto-evidente não pode ser hipotético ou puramente formal: é sempre um juízo categórico de alcance ontológico. 3º A proposição “um ser necessário existe necessariamente” é auto-evidente, porque é impossível decidir se sua contraditória é “um ser necessário não existe de maneira necessária” ou “um ser necessário necessariamente inexiste”. 4º Logo, o juízo “um ser necessário existe necessariamente” não pode ser hipotético, não se aplicando portanto, ao caso, a distinção entre “Deus” e “o conceito de Deus”. Fica assim derrubada a objeção kantiana.”

Primeiro estratagema: misto de distinção de emergência e mutatio controversie: o argumento ontológico trata de perfeição, e não de necessidade.

Segundo: manipulação retórica e argumento sofístico: o jogo de palavras é bem lindinho, mas não passa de um jogo. Olavo parte de uma premissa “subentendida” que ninguém comprovou ou aceitou inicialmente: deus é necessário, e esse deus é o cristão. Ele deveria ter demonstrado como chegou a uma conclusão que tornou-se premissa para seus floreios retóricos. Como conheço alguns cristãos, dou-me a liberdade de imaginar o processo:

Um ser necessário é aquele do qual se necessita,

Eu necessito de deus; logo, ele é necessário.

O deus em que acredito é o cristão;

logo, os outros deuses não são necessários.

Conclusão: o deus necessário é o deus cristão.

Lembrando que essa lógica do “argumento auto-evidente” pode ser usada para afirmar ou refutar qualquer coisa. O Alcorão diz que atribuir um filho a deus é loucura, e que o fato de deus não ter nenhum filho é uma verdade auto-evidente. Devo então converter-me ao Islã?

Terceiro: falsa proclamação de vitória. Olavo de Carvalho derruba por terra a refutação ao argumento ontológico, aos seus próprios olhos. (Por que será que Craig não pensou nisso antes?)

Para não escrevermos um texto muito longo, atenho-me a outro exemplo aberrante de lógica:

Schopenhauer faz alusão à frase Quid est veritas?, atribuída a Pilatos, Olavo de Carvalho acresce uma nota comedida e necessária ao bom andamento do livro:

“Não devemos esquecer que, ao fazer essa pergunta com ar tão sábio, o pedantíssimo Pôncio tinha a verdade bem diante dos olhos da cara, e não a reconheceu.”

Por óbvio, um prisioneiro ferido que se nega a defender-se é também uma verdade auto-evidente. Sem contar que um livro de Schopenhauer não poderia passar sem uma apologia ao cristianismo. Na próxima vez, a Topbooks poderia contratar Silas Malafaia para comentar O Anticristo, de Nietzsche.

Aliás, a elegância dos argumentos ad hominem, de rótulo odioso e ad personam de Olavo são um capítulo à parte.

Para um Olavo de Carvalho que se arroga defensor da racionalidade, sua última frase é emblemática: “É sempre a tentação da Árvore da Ciência que leva o homem a perder a Árvore da Vida.”

Nada mais adequado para um filósofo do conhecimento, que despende grande volume dos comentários a um livro pretensamente de Schopenhauer a combater o “irracionalismo” do filósofo alemão.

Socó Pombo

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