Mostrando postagens com marcador cinema. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador cinema. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A inocência baleada do coronel Nascimento


A esperança foi baleada e respira com a ajuda de aparelhos na UTI. Torcemos para que ela abra os olhos, sem perceber que são nossos olhos que precisam abrir-se.
Tropa de Elite 2 é uma poderosa metáfora. E também uma tese de sociologia:
O sistema estende seus tentáculos a uma distância muito maior do que podemos captar, e sabe usar tudo que toca, mesmo aqueles que pensam combatê-lo.
Capitão Nascimento, agora coronel, passa por uma jornada que, de tão oposta, é idêntica à de Dom Vito Corleone, que no capítulo final de O Poderoso Chefão descobre que, quanto mais tentamos legalizar nossas ações, mais afundamos no lamaçal de um sistema inerentemente corrupto.
As atuações magistrais do todo o elenco abrilhantam o genial roteiro. Há um duro aprendizado não apenas para Nascimento, como para todos nós. A realidade subjacente estapeia nossas caras e diz: vocês são moleques. Peçam pra sair.
O sistema não tem um comando central. Como a Hidra de Lerna, crescem-lhe novas cabeças à medida que uma é cortada. Seus tentáculos multiplicam-se. Vencê-lo é um trabalho hercúleo.
Devemos deixar de lado o simplismo das ideologias, seja à esquerda ou à direita, e compreender como o sistema funciona em suas mais profundas raízes. Sim, esta obra-prima do nosso cinema é também uma lição.E não são apenas seus personagens que aprendem da forma mais dolorosa.
Socó Pombo

quinta-feira, 20 de maio de 2010

De inadaptados a adaptações

Tim Burton e Mia Wasikowska durante gravações de Alice no País das Maravilhas

“Cinema e literatura têm linguagens específicas. Nem sempre é fácil acertar a mão na hora de tirar uma história das páginas de um livro e levá-la para a telona. Segundo (Maurício) Aragão, a adaptação não é uma releitura, já que são necessárias várias alterações. Ele também diz que nem todo livro rende um bom filme. E cita como exemplo “Ensaio sobre a cegueira” (2008, de Fernando Meirelles), baseado na obra de José Saramago. “O filme é chato, enquanto o livro é fantástico. A adaptação até que foi boa, mas a obra não funciona no cinema”.

Trecho extraído do saite da Secretaria de Cultura do Ceará

O cinema há algum tempo vem sofrendo uma crise de criatividade. Se analisarmos bem, desde seu início a sétima arte tem dependido de outras fontes de conteúdo para produzir seus sucessos. Contudo, na última década essa dependência de outras mídias aprofundou-se sobremaneira. A princípio com os livros de fantasia, e em seguida com o estouro dos filmes baseados em quadrinhos, chegamos à era dos filmes saídos de brinquedos e jogos eletrônicos. Uma exceção que comprova a regra são as continuações dos sucessos do passado.
À medida que os produtores estudam novas tecnologias, a profundidade das histórias contadas diminui, pois a ótica é a de que arrecada mais quem mais caprichar nos efeitos especiais e nas explosões (sem deixar de lado, obviamente, a sensualidade de astros adolescentes que continuam penteados mesmo depois de transformados em lobisomem, para delírio das tietes, ou modelos que continuam fazendo caras e bocas ao ser perseguidas por monstros assassinos, um colírio para os fãs).
Criador de quadrinhos fantásticos, Alan Moore é radicalmente contrário às adaptações de suas obras para o cinema, não as assiste e ainda as critica. Afirma que as adaptações são péssimas e não respeitam a obra original.
Muitos consumidores (não me vem palavra melhor à mente) de cultura partilham de sua opinião. Entretanto, as adaptações continuam se multiplicando. E, apesar de os produtores estarem ultimamente mais interessados em conceitos de personagens que em histórias, os livros continuam sendo material fértil para novos filmes. O objetivo dessa crônica é analisar as adaptações. Deixemos a criatividade para outra ocasião.
O ponto que levanto aqui é: deve o cinema vivenciar essa relação com outras mídias, adaptando-as para outra linguagem e outro público?
Já não tenho paciência de perguntar a ninguém se gostou de uma adaptação. Sempre me vem com a mesma conversa "o quadrinho é melhor, o livro é melhor, o desenho é melhor, o gueime é melhor, as figurinhas são melhores". É óbvio que há "adaptações" que são verdadeiras deturpações; contudo, há que se abrir para mídias diferentes, e reconhecer que cada uma tem seu tempo, sua estrutura e sua linguagem específicas. Querer que toda a carga emocional e artística de um livro que se lê em cinco dias esteja presente em um filme de três horas é uma exigência infantil, que apenas tirará o gosto de quem assiste à adaptação.
Ademais, o filme traz contribuições outras impossíveis de serem apresentadas na mídia estática, a exemplo da trilha sonora, entonação, do rigor no figurino e nos cenários (embora os quadrinhos também apresentem tais características). A literatura é também uma arte a dois: autor e leitor. Há apenas uma pessoa interpretando a obra de arte. O cinema é uma arte muito mais pulverizada entre interpretadores: há o roteirista, que a adapta, os produtores, o diretor, cada ator interpreta isoladamente seu personagem, os técnicos escolhem os ângulos a serem mostrados, os editores, o que deve ser cortado. E ao espectador cabe não mais interpretar a obra original, mas o resultado de todas as interpretações realizadas até que a ideia inicial chegasse a outra linguagem artística.Sou cinéfilo, embora passe dez vezes mais tempo lendo que assistindo. É um grande sonho meu ver meus livros adaptados para o cinema. O importante é que não se mude as concepções do autor, que não se adéque o filme a um discurso contrário à essência do livro. No mais, é uma outra forma de arte, praticada por outros artistas.
Para que ninguém me venha repetir o óbvio que sempre escapa dos descontentes, eu mesmo repito: o filme é diferente do livro.

Amâncio Siqueira

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Mais uma invasão alienígena?

Avatar, escrito e dirigido por James Cameron, é em muitos aspectos um aviso e uma constatação. Tanto em seu contexto interno como externamente. Externamente, podemos constatar que a tecnologia cinematográfica já não possui barreiras. O aviso: a única barreira para a tecnologia cinematográfica é a da imaginação.
Sim, o espectador poderá deliciar-se com um admirável novo mundo de maravilhas coloridas em três dimensões e alta-definição. Um panorama em tudo gigantesco e grandiloquente. Mas, como todos os mundos já imaginados pela ficção, este também é apenas uma cópia do nosso. Estão cavalos, rinocerontes, lêmures e panteras, que não deixam de sê-lo apenas por possuírem um par de pernas a mais. E é o a mais que diferencia Pandora, uma das luas do planeta Polyphemus, do nosso. Tudo aqui é maior, desde os humanóides até as árvores gigantescas. E é de fato um Novo Mundo, uma América virgem e paradisíaca indefesa contra a cultura da expropriação do homem branco.
Só que o filme se passa em 2154, época em que todos os homens (ou quase todos) serão brancos, senão na cor, nas ações de conquista e depredação. Ao menos na visão de Cameron. Que não deixa de ser a minha. Aqui já não serão chamados de povo do mar, como os europeus que desembarcavam por aqui, mas de povo do céu. Os humanos, para poder moverem-se em Pandora sem as dificuldades próprias da diferença de gravidade e atmosfera, criaram os avatares, construtos biológicos geneticamente iguais aos espécimes do povo Na’Vi, humanóides de cultura aborígene.
O fuzileiro Jake Sully vê nestes avatares uma chance de recuperar o movimento das pernas. Sendo um soldado num grupo de cientistas, não demora a ser cooptado pelo coronel Quaritch, que quer sua lealdade para infiltrar-se entre os indígenas (inimigos) e obter o máximo possível de informações. Para a invasão. Há pouco de humanista no interesse dos exploradores, em especial dos militares, que já não escondem os interesses econômicos que os movem, sendo empregados por uma grande mineradora (as multinacionais serão ainda mais descaradas que na era Bush). O metal que desperta o novo bulionismo é o unobtanium, raríssimo no universo e abundante neste planeta.
Jake Sully perder-se-á na selva em sua primeira missão e será salvo por Neytiri, futura líder espiritual de um clã Na’Vi. A partir daqui inicia-se um Pocahontas ou Dança com Lobos futurista, mas previsível. Teremos uma ampla visão da relação dos invasores e dos nativos com o planeta vivo, uma extrema sublimação da visão romântica dos indígenas, criada após sua quase extinção. Todos os Na’Vi são Iracemas dos lábios de mel ou Peris corajosos, completamente integrados ao seu planeta, como nossos índios à natureza, como nos ensinam no Dia do Índio. A pureza dos nativos cria o sentimento antiimperialista diante da inevitabilidade da invasão por interesses econômicos. Entenderão os americanos que a mensagem é contra eles mesmos?
É inevitável o romance entre o alienígena espião e a nativa sábia e forte. Como toda ficção científica, esta não deixa de ser um estudo sobre o passado. Como ocorreu e como poderia ter ocorrido. Aqui vemos a importância de um grande líder, capaz de unir os mais variados clãs e conclamar a própria natureza a defender seu mundo dos invasores. O fato é que não foram os europeus que escravizaram os negros e dizimaram os índios: os próprios negros do litoral escravizaram e entregaram aos europeus os membros da tribos inimigas. Os próprios indígenas do litoral apoiaram os europeus na conquista do continente, destruindo as tribos inimigas. Em Pandora os clãs superarão suas diferenças para enfrentar o invasor. Como teria sido nosso passado, se nossos aborígenes tivessem feito tal escolha?
Desde minha adolescência pretendia escrever um conto futurista sobre invasores alienígenas que se revelassem nossa própria espécie. Seria um tanto diferente de Avatar, mas a mensagem é semelhante: talvez façamos tantos filmes de invasão alienígena a nosso planeta porque atribuamos às raças de outros mundos nosso próprio princípio de pilhar e destruir tudo à nossa volta.
Avatar é uma grande realização do empenho conjunto de atores, produtores, roteiristas e artistas gráficos. Um filme que, a despeito de ser comercial, não esvazia o discurso do seu diretor e faz pensar. Ideal para quem busca no cinema a emoção de todos os sentidos e da inteligência, e quer sair da sala com uma sensação de que algo mudou. Não apenas na tecnologia cinematográfica.

Socó Pombo

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

De imaginosas realidades

“- Ora, mas eu tenho certeza de que estivemos embaixo desta árvore o tempo todo! Todas as coisas estão justamente como eram antes!
- Mas é claro que estão – disse a Rainha – De que jeito você queria que estivessem?
- Bem, em nosso país, Vossa Majestade, (...) em geral a gente chega a um lugar diferente. Quer dizer, quando se corre assim tão depressa como nós corremos.
- mas que país lento, esse de onde você veio! (...) Mas por aqui, é como você vê. É necessário correr e mais correr, com o máximo de velocidade, somente para permanecer no mesmo lugar.”

Lewis Carroll, Alice no País do Espelho

Todos passamos por um período “Alice” em nossas vidas. A sensação de cair em um mundo em que mudamos de tamanho o tempo todo e uma lagarta em nossa mente pergunta: “Quem é você?”. E já não nos sentimos como éramos há poucos instantes. Um mundo de regras cuja lógica não compreendemos demanda decisões sempre contrárias à nossa razão e sensibilidade. Enquanto a maioria adéqua-se às normas e passa mesmo a defendê-las, algumas pessoas sentem isso por toda sua vida. O caso de uma delas pode ser sentido no filme A Menina no País das Maravilhas.
O casal de escritores Hillary e Peter Lichten educou suas filhas Phoebe e Olivia de modo a desenvolverem toda a sua inteligência através da criatividade e da imaginação. Enquanto Olivia, de sete anos, admira pessoas como Mozart e Marx e demonstra um talento precoce para a poesia, Phoebe, às portas da pré-adolescência, fascinada pelo universo fantástico dos livros Alice no país das Maravilhas e Alice no País do Espelho, de Lewis Carroll, passa a apresentar comportamentos estranhos, que levam a deduzir que ela sofra de transtorno obsessivo-compulsivo.
Adultos passam a associar o fato de Phoebe cuspir nas colegas, xingar, imitar as pessoas e falar em momentos inoportunos com sua obsessão por Alice. Estranhamente, apenas quando ela está ensaiando a peça Alice no País das Maravilhas, sob a supervisão da excêntrica professora Miss Dodger, não apresenta comportamento desviante do padrão. Sua mãe se tortura, por achar-se culpada pelo mundo de fantasia no qual a filha se enredou, já que foi ela a incentivá-la a penetrar no universo de Carroll, objeto de seus estudos para uma tese.
Na ponte entra a realidade e a fantasia se instauram o drama familiar, a dor de lidar com o desconhecido, a luta pela aceitação da filha, que os próprios pais fraquejam em aceitar. A mãe buscará demonstrar por todos os meios que o hábito da filha de conversar com os habitantes do Bosque do Espelho não configura esquizofrenia.
O mais belo e dramático paralelo entre o filme e os livros de Carroll é os momentos que associam a realidade com a cena em que Alice e a Rainha Vermelha correm. Talvez não apenas no País do Espelho, mas também em nossa própria realidade corramos desesperadamente apenas para chegar ao mesmo lugar.
Dirigido e roteirizado pelo novato Daniel Barnz, A Menina no País das Maravilhas (Phoebe in Wonderland) é um belo conto sobre o poder avassalador da imaginação. Um poder capaz de destruir ou salvar uma vida.

Amâncio Siqueira

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Magnólia – uma flor de concreto e aço

No princípio era o acaso em suas inextricáveis redes de fatos fortuitos, até que a necessidade de ordem da mente humana buscou no caos a lógica, e a rede de acasos tornou-se uma organizada teia de coincidências. É assim que se apresenta a princípio o filme Magnólia, escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson.

“Na humilde opinião deste narrador isto não é ‘algo que simplesmente acontece’. Isso não pode ser ‘uma daquelas coincidências’. Por favor, não. E o que quero dizer é que não posso dizer que foi uma mera casualidade. Essas coisas estranhas acontecem sempre.” Assim fala o narrador de Magnólia.
Num cinema em que raramente se vê um único personagem ser psicologicamente aprofundado, Anderson ousa aprofundar todas as razões e desesperos de um incrível poliedro de personagens. Personagens dentro de personagens, pois todos ostentam cascas sociais que vão saltando como a pele das serpentes. Uma verdade: mesmo quando falamos a verdade estamos mentindo, iludindo a nós mesmos e aos demais. A vida é um ininterrupto encenar, pois há sempre plateia que espera nossa melhor atuação.
O humor dos personagens alterna como o clima, cujo boletim é apresentado como o início de capítulos, conforme avança o tempo do filme, que se passa durante um único dia.
As pequenas coincidências vão surgindo de maneira ordenadamente aleatória, como numa calma manhã ensolarada; afinal, a única verdadeira coincidência a unir seus destinos seria o fato de morarem em Los Angeles, num bairro cortado por uma rua de nome Magnólia. Ou talvez haja algo mais profundo: cada um carrega seu segredo, algo que lhe importa sobremaneira, embora talvez de fato nada diga a outrem. Contudo, aqui está a maior coincidência: é o segredo que cada um carrega que coincidentemente ou não influi na vida dos demais. Há fatos secretos que o são não porque seus proprietários os queiram assim, mas simplesmente porque passam despercebidos pelos demais. Cada pessoa na multidão é um segredo para mim, pois nada sei de sua vida.
A interesseira Linda é casada com o milionário produtor de TV Earl Partridge, que no primeiro casamento, com Lily, teve um filho, Frank Mackey, criador de um sistema de auto-ajuda ultra-machista chamado “seduza e destrua”, que aos catorze anos viu a mãe morrer de câncer abandonada pelo pai, e que será entrevistado pela jornalista Gwenovier. Entre os programas produzidos por Earl está o “O que as crianças sabem?”, do qual foi estrela nos anos sessenta o hoje fracassado Donnie Smith, e é estrela atualmente o garoto-prodígio-explorado-pelo-pai Stanley Spector; o programa é apresentado por Jimmy Gator, casado com Rose e pai da cocainômana Claudia, que se iniciou no vício ao ser seduzida por Ray, adepto do método seduza e destrua, e o vício a levará a conhecer o policial Jim. Earl está com câncer terminal, e encarrega seu enfermeiro, Phil Parma, de entrar em contato com seu filho.
Óbvio que a personagens humanos tais simplificações são inadequadas. Nada é assim tão simples, e se Linda lesse esse esquema diria: “Você devia ter vergonha.”
Quebrando a angústia dos terríveis segredos, há dois personagens-símbolo: o enfermeiro e o policial, que curiosamente aqui se apresentam como materialização do ideal de suas profissões: servir e proteger. E aqui o serviço vai além do material, além da superfície. Enquanto a jornalista Gwenovier quebra o segredo de Frank para fins meramente profissionais, Phil e Jim não estão interessados em confrontar ou fazer ninguém confrontar-se. Serão apenas ligações, tentativas de redenção dos demais personagens. Entre esses dois, Jim ergue-se como um contraponto de ordem num mundo caótico. Dirá, como único personagem-narrador do filme (embora haja falas de outros que sirvam à narração), em seus monólogos que parecem mantras para afastar o caos exterior: “A lei é a lei, e de jeito nenhum posso quebrá-la. Mas você deve perdoar o próximo, e isso é o mais difícil: o que devemos perdoar? Andar pelas ruas é uma coisa perigosa.”
Jim é tão simples que seu drama, o fato de perder a arma em serviço, parecerá banal em um primeiro momento, contraposto aos dramas dos demais. Aqui se estabelece o contraponto: o desespero que se apossa de nossos corações vem dos nossos sofrimentos ou da maneira pela qual os encaramos?
A teia de coincidências vai se condensando, e já não é apenas nas ligações pessoais, mas na própria estrutura narrativa que passam a se estabelecer. Stanley, em resposta a uma das perguntas do programa, canta um trecho da ópera Carmem, de Bizet, e tal trecho passa imediatamente a trilha sonora do encontro de Jim com Claudia. Earl começa a divagar, em seu leito de morte, sobre o direito que todos temos ao arrependimento e sobre o fato da vida alongar-se por seus sofrimentos (um pensamento bem schopenhauriano) e tais divagações tornam-se reflexões sobre os mais angustiosos momentos dos personagens. Tempestade que se abate sobre todos.
Um dos mais desesperadoramente belos momentos da história do cinema é o falso clímax que se apresenta quando todos os personagens cantam a canção Wise Up, de Aimee Mann, cujo refrão poderia traduzir-se toscamente: “Você espera, mas isso não vai parar. Nunca vai parar, a não ser que você se toque.” Com o cessar da canção cessa a chuva. Arma-se o momento da descoberta. Os grilhões sociais e os segredos se partem.
Mas eles não conseguirão a redenção sozinhos. Na história do cinema encontraremos sublimes momentos de associação da chuva à paz de espírito, como Cantando na Chuva e V de Vingança. Entretanto, em Magnólia a chuva é perigosamente bela, inusitadamente poética. Vidas absurdas se redimem pelo absurdo. Enquanto os personagens param nos sinais da Rua Magnólia, dos céus cai a mais aterradora das chuvas: uma chuva de sapos. Eis o momento de epifania, no qual todos são confrontados consigo mesmos, no qual se encontrarão tal qual são. É aqui que se decide que isso tem que parar; que cada um se toca. As ligações são já mais poderosas que a mera coincidência. Alguns encontrarão a paz, outros serão impedidos de morrer, forçados a encarar a vida e o arrependimento. Pessoas deslocadas descobrem de repente o seu lugar no mundo. Já não se movem como joguetes na mão do destino. Sim, há para cada um um propósito, um lugar no tempo e no espaço. Pode não ser um lugar belo e seguro. Mas é seu lugar. E nisso consiste a redenção.
Sobre o improvável de tal chuva e tais encontros, dirá Stanley: “Mas acontece. Isso é algo que acontece.”
E a guinada está completa: não apenas as vidas dos personagens foram alteradas pela chuva de sapos. Também nós temos nossa epifania. Nossa perspectiva é alterada. Agora a organizada teia de coincidências talvez não passe de uma mera sequência de acasos.

Amâncio Siqueira