quinta-feira, 20 de maio de 2010

De inadaptados a adaptações

Tim Burton e Mia Wasikowska durante gravações de Alice no País das Maravilhas

“Cinema e literatura têm linguagens específicas. Nem sempre é fácil acertar a mão na hora de tirar uma história das páginas de um livro e levá-la para a telona. Segundo (Maurício) Aragão, a adaptação não é uma releitura, já que são necessárias várias alterações. Ele também diz que nem todo livro rende um bom filme. E cita como exemplo “Ensaio sobre a cegueira” (2008, de Fernando Meirelles), baseado na obra de José Saramago. “O filme é chato, enquanto o livro é fantástico. A adaptação até que foi boa, mas a obra não funciona no cinema”.

Trecho extraído do saite da Secretaria de Cultura do Ceará

O cinema há algum tempo vem sofrendo uma crise de criatividade. Se analisarmos bem, desde seu início a sétima arte tem dependido de outras fontes de conteúdo para produzir seus sucessos. Contudo, na última década essa dependência de outras mídias aprofundou-se sobremaneira. A princípio com os livros de fantasia, e em seguida com o estouro dos filmes baseados em quadrinhos, chegamos à era dos filmes saídos de brinquedos e jogos eletrônicos. Uma exceção que comprova a regra são as continuações dos sucessos do passado.
À medida que os produtores estudam novas tecnologias, a profundidade das histórias contadas diminui, pois a ótica é a de que arrecada mais quem mais caprichar nos efeitos especiais e nas explosões (sem deixar de lado, obviamente, a sensualidade de astros adolescentes que continuam penteados mesmo depois de transformados em lobisomem, para delírio das tietes, ou modelos que continuam fazendo caras e bocas ao ser perseguidas por monstros assassinos, um colírio para os fãs).
Criador de quadrinhos fantásticos, Alan Moore é radicalmente contrário às adaptações de suas obras para o cinema, não as assiste e ainda as critica. Afirma que as adaptações são péssimas e não respeitam a obra original.
Muitos consumidores (não me vem palavra melhor à mente) de cultura partilham de sua opinião. Entretanto, as adaptações continuam se multiplicando. E, apesar de os produtores estarem ultimamente mais interessados em conceitos de personagens que em histórias, os livros continuam sendo material fértil para novos filmes. O objetivo dessa crônica é analisar as adaptações. Deixemos a criatividade para outra ocasião.
O ponto que levanto aqui é: deve o cinema vivenciar essa relação com outras mídias, adaptando-as para outra linguagem e outro público?
Já não tenho paciência de perguntar a ninguém se gostou de uma adaptação. Sempre me vem com a mesma conversa "o quadrinho é melhor, o livro é melhor, o desenho é melhor, o gueime é melhor, as figurinhas são melhores". É óbvio que há "adaptações" que são verdadeiras deturpações; contudo, há que se abrir para mídias diferentes, e reconhecer que cada uma tem seu tempo, sua estrutura e sua linguagem específicas. Querer que toda a carga emocional e artística de um livro que se lê em cinco dias esteja presente em um filme de três horas é uma exigência infantil, que apenas tirará o gosto de quem assiste à adaptação.
Ademais, o filme traz contribuições outras impossíveis de serem apresentadas na mídia estática, a exemplo da trilha sonora, entonação, do rigor no figurino e nos cenários (embora os quadrinhos também apresentem tais características). A literatura é também uma arte a dois: autor e leitor. Há apenas uma pessoa interpretando a obra de arte. O cinema é uma arte muito mais pulverizada entre interpretadores: há o roteirista, que a adapta, os produtores, o diretor, cada ator interpreta isoladamente seu personagem, os técnicos escolhem os ângulos a serem mostrados, os editores, o que deve ser cortado. E ao espectador cabe não mais interpretar a obra original, mas o resultado de todas as interpretações realizadas até que a ideia inicial chegasse a outra linguagem artística.Sou cinéfilo, embora passe dez vezes mais tempo lendo que assistindo. É um grande sonho meu ver meus livros adaptados para o cinema. O importante é que não se mude as concepções do autor, que não se adéque o filme a um discurso contrário à essência do livro. No mais, é uma outra forma de arte, praticada por outros artistas.
Para que ninguém me venha repetir o óbvio que sempre escapa dos descontentes, eu mesmo repito: o filme é diferente do livro.

Amâncio Siqueira

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