segunda-feira, 17 de maio de 2010

De escritores e autores e suas manias



“Um autor deve considerar-se não um cavalheiro que oferece um banquete particular ou de caridade, e sim alguém que dirige uma casa pública de pasto, na qual são bem-vindas todas as pessoas em troca do seu dinheiro. No primeiro caso, é sabido que o hospedeiro apresenta as iguarias que bem entende; as quais, embora indiferentes ou absolutamente desagradáveis ao paladar do hóspede, não podem ser criticadas (…) Ora, o contrário sucede ao dono de uma casa de pasto. Os homens que pagam o que comem insistirão em satisfazer o seu paladar, por mais delicado e fantástico que seja; e, se alguma coisa lhes for desagradável, reivindicarão o direito de censurar, insultar e livremente maldizer o seu almoço.”
Henry Fielding
Como alguém que escreve, custa-me inserir-me numa categoria ou período ou movimento ou qualquer outro determinismo ou reducionismo. Também não suporto generalizações. O Movimento Lixista é atualmente o movimento de um homem só, e talvez por isso se encaixe tão bem na minha personalidade, embora aguarde avidamente o retorno de seus iniciadores. São excelentes para o lixismo, pois também não suportam generalizações. Dito isto, embora não saiba exatamente o que teria dito, passo ao assunto próprio dessa crônica: tentar generalizar o ofício da escrita.
Primeiramente, gostaria de delimitar aquilo que se pode chamar escritor da restante massa dos que escrevem. Todos que aprendem a ler escrevem algo mais cedo ou mais tarde, e essa é a nossa excludente primordial: o fato de criar um carro de madeira não me faz mecânico. Construir um castelo de cartas não me torna engenheiro. E escrever uma redação de vestibular ou um poema rimado para a namorada não torna ninguém escritor ou poeta.
Para ser mais exato no que pretendo esclarecer: ter um filho não gera um pai ou uma mãe; plantar uma árvore não cria um agrônomo ou agricultor; escrever um livro não produz um escritor. Não direi que o ofício da escrita seja uma vocação, já que me pretendo escritor, embora não seja vocacionado. Entretanto, há algo que delimita um escritor de um autor eventual, mesmo que este escreva mais que o primeiro: o compromisso com a palavra, mais que consigo mesmo. Alguém que tenha um rebento e o abandone na sarjeta é um procriador, não um pai. Aquele que lança ao vento seu texto, sem um mínimo de cuidado com o mesmo, é um autor, não um escritor.
E vemos que a multidão de livros sem escritor cresce mais que a de filhos sem pai atualmente. É feio um pai dizer “a educação é muito difícil; prefiro criar meu filho solto, de qualquer jeito, e ele que encontre um rumo”. Todavia, é costumeiro acessar fóruns de autores na internete que dizem com orgulho “a língua portuguesa é muito difícil; eu escrevo sem regras mesmo, pois o importante é a história”. Algo ainda mais salutar: em todas as profissões, os maus funcionários costumam ridicularizar os bons. Trabalhei como atendente em uma empresa, e disputava com um colega para ver quem atendia mais clientes. Aqueles que não atendiam ironizavam: “vão ganhar um aumento por isso.” Algo bem simplório, comparado aos autores que grassam na rede: “Eu que não leio um chato como Camões. Guimarães Rosa? Um lixo incompreensível. Machado de Assis? Melhor ler bula de remédio. Balzac é o tédio personificado. As descrições de José de Alencar são horrorosas. João Ubaldo Ribeiro é um pornográfico.” E segue o despeito daqueles que não conhecem sequer o objeto sobre o qual trabalham, contra aqueles que tão perfeitamente o trabalharam.
Outro ponto crucial: o compromisso. O autor não tem compromisso com a arte, com a linguagem ou com a realidade. Mesmo seu senso de compromisso consigo é deturpado: é o pacto com a fama, com o dinheiro, não com sua consciência, com suas dúvidas. Portanto, cria um laço de dever com o leitor, buscando adequar-se à moda para vender mais. Como a moda é sempre a fuga da realidade, o autor está sempre fugindo da verdade que o cerca, e tem verdadeiro prazer nisso. Afinal, nunca foi seu desejo confrontar-se com o mundo assustador à sua volta. Devo aqui fazer um breve parêntese: compromisso com a realdade não é realismo. Literatura é ficção, porém não é mentira. Quem entender o que digo saberá a diferença para a literatura entre um hobbit fascinado pelo poder de um anel e um vampiro adolescente cursando segundo grau.
O único compromisso que o escritor deve ter para com o leitor é o da honestidade: não mente para si mesmo, por que mentiria para quem o lê?
Desse compromisso excluem-se mais uns tantos milhões de autores, com seus segredos e sonhos e sucessos fáceis, embalando na mentira as multidões de miseráveis que precisam continuar vivendo. Um autor tem respostas. Um escritor tem perguntas.
Esclarecido simploriamente o que não é um escritor, tentemos definir o que é esse animal arisco e em vias de extinção:
Já disse que um escritor tem perguntas, não respostas. São essas questões que o mobilizam. Sabe-se mortal, vê a vida sem sentido tal qual é. Percebe o universo que pouco se importa se vivemos ou morremos. Sabe que o mundo não é perfeito e pensar o contrário é ilusão. Não mente a si mesmo.
Ama a língua, a palavra. Não se satisfaz com uma história, com a fama. Pretende construir uma obra perfeita. Visa extrair de sua constatação do mundo, de sua dor existencial, arte, pureza, beleza. Das imperfeições das tragédias humanas, retirar a perfeição estética, a emoção ainda mais clara e mais profunda do que o é em realidade. Procura a palavra exata e cria uma se não a encontra.
O escritor sabe-se só, e sabe que todos o somos. Sabe, e não dirá somos todos um, todos iguais. Dirá apenas “sim, sei de tua solidão, pois ela também é minha.”
Encara a irremediável mortalidade, o inexorável fim, e não busca subterfúgios. Sabe que não há soluções fáceis.
O escritor é naturalmente inoportunista. Escolhe exatamente o momento em que sua verdade será mais inoportuna, e a derrama violentamente sobre as gentes. Sem medo de ser insultado e livremente maldito.
Os autores têm gerações. Os escritores são sempre póstumos. Distantes da moda, desagradam o público. Solitários, desafiam os rebanhos. Sinceros, empecilham as religiões e os poderes. Escritores são como o rochedo que se interpõe no percurso do vagalhão, mesmo sabendo que será destruído. O autor segue a onda.
Contudo, talvez esse conjunto de delimitações seja uma generalização difícil de verificar pragmaticamente.
Talvez apenas o escritor desse texto tenha tais manias.


Amâncio Siqueira

Nenhum comentário: