segunda-feira, 30 de agosto de 2010

De tiranias do povo, pelo povo e para o povo


“O sufrágio universal é a mais monstruosa e mais iníqua das tiranias, pois a força do número é a mais brutal das forças, não tendo a seu lado nem a audácia, nem o talento.”

Bourget

A democracia surgiu em moldes bem diversos dos das atuais. Quando tal forma de governo foi adotada na Grécia, os cidadãos tomavam parte ativa no governo da Polis. Reunidos em assembleia, votavam diretamente sobre os temas do debate, sem a escolha de intermediários para tomar suas decisões, como ocorre atualmente, com a escolha de “representantes” (embora houvesse cargos eletivos para execução de questões mais práticas). Obviamente, com apenas algumas centenas de cidadãos era mais fácil reuni-los. E para ser cidadão não havia a mesma facilidade que atualmente: mulheres, homens jovens ou pobres e escravos não podiam tirar o título eleitoral. Continuava, portanto, o governo de poucos sobre muitos, embora os poucos passassem a se chamar “maioria”.
Os cargos eletivos foram criando mais e mais importância e acumulando maior poder, até que os cidadãos passaram a participar de um sistema que daria origem ao parlamentarismo: cidadãos escolheriam um conselho de anciãos (senado) que por sua vez escolheriam um governante em situações especiais. A última dessas situações especiais deu origem à tirania de Júlio César, já no incipiente Império Romano, que poria fim à democracia até então praticada.
Nos séculos seguintes, poucos povos tiveram o mesmo ímpeto por auto-governar-se que os gregos. Discordo de Aristóteles, quando diz que “a democracia surgiu quando, devido ao fato de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si”. Vejo no surgimento da democracia grega mais o desejo de não ser superado por outrem do que o de igualdade. O afã de governar, não o de repartir o poder. Não por acaso o próprio Aristóteles diz que “democracia é a mais severa forma de despotismo”. Quando os cidadãos querem, pela força do número, governar seus iguais, determinando seu comportamento em todos os âmbitos da vida, um despotismo da “maioria” está instaurado. Tal despotismo não vê igualdade absoluta entre as pessoas: obriga os desiguais a igualar-se à maioria.
Os movimentos que fizeram ressurgir a democracia a partir do iluminismo não tinham sentimento muito diferente do antigo. Cidadão passou a ser sinônimo de burguês de grandes posses, embora muitos ativistas da Revolução Francesa discordassem disso. O sistema presidencialista, erigido nos Estados Unidos, foi exportado para vários lugares do mundo, inclusive o Brasil. Seria um sistema ideal para qualquer país que quisesse ter um rei eleito pelo povo.
Todas as formas de poder democrático até a atualidade mantiveram o sistema de eleição de representantes do povo, que não toma decisões diretamente. No Brasil, o processo de escolha dos representantes se dá a cada dois anos, com ciclos de escolha de legisladores e governantes municipais intercalados pelos dos estados e da União. O poder judiciário não é eletivo. Na luta pelo poder, via de regra há que se gastar muito dinheiro para obtê-lo. Quantias vultosas são despendidas nas campanhas eleitorais.
Primeiramente, quero frisar bem o termo campanha eleitoral. Erroneamente, as pessoas em sua maioria se referem às eleições como “tempo de política”, e considero importante partir daí para lembrar que é sempre tempo de política, de lutar pela melhoria da polis, da cidade (ou Estado e União, exemplos mais amplos de Polis). Portanto, cabe sempre destacar que campanha eleitoral não é sinônimo de campanha política. Campanha eleitoral é também uma campanha política, o ápice da luta pelo poder na democracia representativa que vivenciamos atualmente. Entretanto, há campanhas políticas que fogem do eleitoral, que mobilizam parcelas populacionais desinteressadas do poder, mas engajadas na luta pelo estado de direito. A campanha pela lei da Ficha Limpa foi um exemplo pontual. Exemplos constantes de campanhas políticas são os movimentos pela reforma agrária, pelos direitos dos homossexuais ou pela descriminalização do aborto. Em geral, os temas debatidos em campanhas políticas extensas e apartidárias não entram no debate das campanhas eleitorais, devido ao fato de serem temas polêmicos, desaprovados pelo público mais amplo, o que faz os candidatos preferirem ignorá-los.
Para obter o poder, o candidato se faz candidato da maioria, pois é a maioria que tem o poder de outorga do governo.
A pergunta que me faço e ao leitor é: será esse o melhor sistema de governar? Talvez o fosse, quando havia barreiras intransponíveis para o reunião de todos os cidadãos para deliberar sobre qualquer assunto. Mas tais barreiras não existem mais. Cem milhões de pessoas podem votar para a saída de algum participante de um reality show. Por que, então, os cidadãos não poderiam participar mais ativamente do governo da nação?
Além de propiciar maior transparência nas decisões do governo, uma democracia mais participativa teria o poder de trazer todas as minorias para o debate social. Talvez, lentamente, a maioria passasse e respeitar os anseios das minorias. E, o mais importante, chegar ao ponto que Platão tanto criticava: “A democracia é uma constituição agradável, anárquica e variada, distribuidora de igualdade indiferentemente a iguais e desiguais”. Não seria exatamente este o ponto: chegar ao respeito e inclusão de todos? Trata-se não de levar todos à igualdade, mas de levar a igualdade a todos. Qual o direito mais igualitário, senão o de sermos todos diferentes?
Democracia modernamente não significa governo de muitos sobre poucos, mas governo para inclusão de todos no processo social. Temos que ter o esclarecimento de que não é porque nossas opiniões são majoritárias que devem ser impostas a todos, quando se trata de questões de foro íntimo.
Quando eu digo que não é um governo de muitos, não quero com isso dizer que uma minoria deve governar. Quero salientar que a democracia deve ser um governo de todos, com a inclusão de todos no processo. Por exemplo, não é porque sou heterossexual que devo determinar que todos o sejam, ou cercear os direitos daqueles que não o são. Incluir também os homossexuais é um exemplo de democracia inclusiva.Em questões de foro íntimo, que não interfiram na vida pública, os particulares devem ter o direito de se determinarem, por mais minorias que sejam. Até que o termo minoria deixe de fazer sentido em outro âmbito que não o estatístico.

Amâncio Siqueira

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Para maiores


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

De fantasmas esquecidos e consciências entorpecidas

“A necessidade de encontrar alternativas ao petróleo já é ponto pacífico. Queremos convencer as pessoas de que todos sairão ganhando com isso. É bom para o meio-ambiente, é bom para a segurança nacional, é bom para a economia, é bom para o futuro dos nossos filhos e, por incrível que pareça, também é bom para o futuro dos povos do Oriente Médio. Qualquer governo que consegue gerar tantas divisas simplesmente porque perfura o solo não tem nenhum tipo de incentivo para educar as crianças, dar estudo às mulheres, envolver o povo no processo político; não tem motivo para fazer nada além de perfurar o solo e extrair o óleo negro (…) É uma vida cômoda, cheia de belos palácios.”

Carl Luft, Instituto para Análise de Segurança Global

O tampão desenvolvido para parar o vazamento de óleo na bacia do Golfo do México tem um poder incrível. Não apenas estancar o mais terrível desastre natural da história, como também mergulhar nossas consciências em torpor, estancando nossa própria indignação com o irrecuperável prejuízo para a fauna e a flora globais. Um tampão para a memória, trazendo um esquecimento que nos prepara para um novo século de petróleo.

Desde a perfuração do primeiro poço de petróleo pelo norte-americano Dake, em mil oitocentos e cinquenta e nove, os combustíveis fósseis queimaram sem parar, tornando-se a principal fonte de energia e matéria-prima das civilizações. Nos cento e cinquenta anos seguintes, a população humana saltou de um para sete bilhões. Passamos do navio a vapor para o ônibus espacial, do telégrafo à internete.

Tais avanços cobraram seu preço em vidas. Não apenas humanas. Somente a civilização baseada no petróleo poderia produzir guerras como a primeira e a segunda mundiais, ou os conflitos estadunidenses com Afeganistão e Iraque. Tais conflitos têm o petróleo por raiz ideológica ou como energia logística; ou ambas. Quanto mais aumenta o poder econômico advindo do ouro negro, mais recrudescem os regimes políticos dos países produtores. Países do Oriente Médio que foram outrora democráticos, ou ao menos respeitosos com os direitos femininos e das demais minorias, tornaram-se regimes teocráticos, fundamentalistas, preconceituosos e reacionários. Contudo, foi o meio-ambiente o mais prejudicado. O último século presenciou a maior extinção de espécies dos últimos sessenta e cinco milhões de anos, num processo crescente de degradação ambiental que não se alimenta apenas do petróleo diretamente derramado, como ainda dos gases tóxicos lançados na atmosfera, dos produtos plásticos que têm no petróleo sua matéria-prima e, indiretamente, na consequência do crescimento populacional desenfreado.

Os irmãos Wachowski levaram seu agente Smith a constatar: os seres humanos não são mamíferos: são vírus. Em nossa voracidade, buscamos a dominação de todo o globo sem a precaução do futuro. Como vírus que matam o hospedeiro, os humanos estamos matando o solo, a água e os seres vivos dos quais nos servimos. O petróleo, resíduo de depósitos sedimentares de matéria orgânica e seres vivos que vieram antes de nós em milhões de gerações, é um fantasma que nos acusa de incompetência para gerir nosso desenvolvimento de maneira sustentável. Um avantesma que nos diz “sou o fruto de infinitas mortes, e vos servirei para mortes infinitas”.

O Brasil tem a liderança global na produção de combustíveis e matérias-primas alternativas, com avançadas tecnologias e uma moderna compreensão do nosso papel no mundo. Todavia, a descoberta de óleo no pré-sal causou um recrudescimento em nossa agenda de sustentabilidade. Delfim Neto bem observou que o “pré-sal é agenda do século vinte, não do vinte e um.”

Em questões tão delicadas quanto esta, cabe-nos evitar o romantismo dos ecólogos mais radicais, mas também o mau-caratismo dos capitalistas preocupados unicamente com lucros. Se nosso avanço até aqui foi garantido através do petróleo, ele agora é um risco não apenas para nosso planeta, como também para nossas sociedades, para a segurança de nossos direitos, para a sustentação da paz. Não bastam os avanços técnicos, se continuarmos prisioneiros de conflitos medievais.

Talvez a chama que iluminará nosso futuro deva ser acesa por combustíveis renováveis e não poluentes, para que continue a nos iluminar sem o risco de apagar toda a vida na Terra.
Amâncio Siqueira