terça-feira, 10 de novembro de 2009

Magnólia – uma flor de concreto e aço

No princípio era o acaso em suas inextricáveis redes de fatos fortuitos, até que a necessidade de ordem da mente humana buscou no caos a lógica, e a rede de acasos tornou-se uma organizada teia de coincidências. É assim que se apresenta a princípio o filme Magnólia, escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson.

“Na humilde opinião deste narrador isto não é ‘algo que simplesmente acontece’. Isso não pode ser ‘uma daquelas coincidências’. Por favor, não. E o que quero dizer é que não posso dizer que foi uma mera casualidade. Essas coisas estranhas acontecem sempre.” Assim fala o narrador de Magnólia.
Num cinema em que raramente se vê um único personagem ser psicologicamente aprofundado, Anderson ousa aprofundar todas as razões e desesperos de um incrível poliedro de personagens. Personagens dentro de personagens, pois todos ostentam cascas sociais que vão saltando como a pele das serpentes. Uma verdade: mesmo quando falamos a verdade estamos mentindo, iludindo a nós mesmos e aos demais. A vida é um ininterrupto encenar, pois há sempre plateia que espera nossa melhor atuação.
O humor dos personagens alterna como o clima, cujo boletim é apresentado como o início de capítulos, conforme avança o tempo do filme, que se passa durante um único dia.
As pequenas coincidências vão surgindo de maneira ordenadamente aleatória, como numa calma manhã ensolarada; afinal, a única verdadeira coincidência a unir seus destinos seria o fato de morarem em Los Angeles, num bairro cortado por uma rua de nome Magnólia. Ou talvez haja algo mais profundo: cada um carrega seu segredo, algo que lhe importa sobremaneira, embora talvez de fato nada diga a outrem. Contudo, aqui está a maior coincidência: é o segredo que cada um carrega que coincidentemente ou não influi na vida dos demais. Há fatos secretos que o são não porque seus proprietários os queiram assim, mas simplesmente porque passam despercebidos pelos demais. Cada pessoa na multidão é um segredo para mim, pois nada sei de sua vida.
A interesseira Linda é casada com o milionário produtor de TV Earl Partridge, que no primeiro casamento, com Lily, teve um filho, Frank Mackey, criador de um sistema de auto-ajuda ultra-machista chamado “seduza e destrua”, que aos catorze anos viu a mãe morrer de câncer abandonada pelo pai, e que será entrevistado pela jornalista Gwenovier. Entre os programas produzidos por Earl está o “O que as crianças sabem?”, do qual foi estrela nos anos sessenta o hoje fracassado Donnie Smith, e é estrela atualmente o garoto-prodígio-explorado-pelo-pai Stanley Spector; o programa é apresentado por Jimmy Gator, casado com Rose e pai da cocainômana Claudia, que se iniciou no vício ao ser seduzida por Ray, adepto do método seduza e destrua, e o vício a levará a conhecer o policial Jim. Earl está com câncer terminal, e encarrega seu enfermeiro, Phil Parma, de entrar em contato com seu filho.
Óbvio que a personagens humanos tais simplificações são inadequadas. Nada é assim tão simples, e se Linda lesse esse esquema diria: “Você devia ter vergonha.”
Quebrando a angústia dos terríveis segredos, há dois personagens-símbolo: o enfermeiro e o policial, que curiosamente aqui se apresentam como materialização do ideal de suas profissões: servir e proteger. E aqui o serviço vai além do material, além da superfície. Enquanto a jornalista Gwenovier quebra o segredo de Frank para fins meramente profissionais, Phil e Jim não estão interessados em confrontar ou fazer ninguém confrontar-se. Serão apenas ligações, tentativas de redenção dos demais personagens. Entre esses dois, Jim ergue-se como um contraponto de ordem num mundo caótico. Dirá, como único personagem-narrador do filme (embora haja falas de outros que sirvam à narração), em seus monólogos que parecem mantras para afastar o caos exterior: “A lei é a lei, e de jeito nenhum posso quebrá-la. Mas você deve perdoar o próximo, e isso é o mais difícil: o que devemos perdoar? Andar pelas ruas é uma coisa perigosa.”
Jim é tão simples que seu drama, o fato de perder a arma em serviço, parecerá banal em um primeiro momento, contraposto aos dramas dos demais. Aqui se estabelece o contraponto: o desespero que se apossa de nossos corações vem dos nossos sofrimentos ou da maneira pela qual os encaramos?
A teia de coincidências vai se condensando, e já não é apenas nas ligações pessoais, mas na própria estrutura narrativa que passam a se estabelecer. Stanley, em resposta a uma das perguntas do programa, canta um trecho da ópera Carmem, de Bizet, e tal trecho passa imediatamente a trilha sonora do encontro de Jim com Claudia. Earl começa a divagar, em seu leito de morte, sobre o direito que todos temos ao arrependimento e sobre o fato da vida alongar-se por seus sofrimentos (um pensamento bem schopenhauriano) e tais divagações tornam-se reflexões sobre os mais angustiosos momentos dos personagens. Tempestade que se abate sobre todos.
Um dos mais desesperadoramente belos momentos da história do cinema é o falso clímax que se apresenta quando todos os personagens cantam a canção Wise Up, de Aimee Mann, cujo refrão poderia traduzir-se toscamente: “Você espera, mas isso não vai parar. Nunca vai parar, a não ser que você se toque.” Com o cessar da canção cessa a chuva. Arma-se o momento da descoberta. Os grilhões sociais e os segredos se partem.
Mas eles não conseguirão a redenção sozinhos. Na história do cinema encontraremos sublimes momentos de associação da chuva à paz de espírito, como Cantando na Chuva e V de Vingança. Entretanto, em Magnólia a chuva é perigosamente bela, inusitadamente poética. Vidas absurdas se redimem pelo absurdo. Enquanto os personagens param nos sinais da Rua Magnólia, dos céus cai a mais aterradora das chuvas: uma chuva de sapos. Eis o momento de epifania, no qual todos são confrontados consigo mesmos, no qual se encontrarão tal qual são. É aqui que se decide que isso tem que parar; que cada um se toca. As ligações são já mais poderosas que a mera coincidência. Alguns encontrarão a paz, outros serão impedidos de morrer, forçados a encarar a vida e o arrependimento. Pessoas deslocadas descobrem de repente o seu lugar no mundo. Já não se movem como joguetes na mão do destino. Sim, há para cada um um propósito, um lugar no tempo e no espaço. Pode não ser um lugar belo e seguro. Mas é seu lugar. E nisso consiste a redenção.
Sobre o improvável de tal chuva e tais encontros, dirá Stanley: “Mas acontece. Isso é algo que acontece.”
E a guinada está completa: não apenas as vidas dos personagens foram alteradas pela chuva de sapos. Também nós temos nossa epifania. Nossa perspectiva é alterada. Agora a organizada teia de coincidências talvez não passe de uma mera sequência de acasos.

Amâncio Siqueira

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