quarta-feira, 25 de novembro de 2009

De simbologia e censura

"Mas é impossível, por muito que se conte como foi, alguém poder entender a humilhação de um escritor perante a censura. É uma experiência muito dolorosa. Nunca mais voltamos a ser os mesmos. É de tal forma cruel que aprendi a auto censurar-me. Palavrões, por exemplo, nunca os consegui empregar. Mesmo nos temas eróticos, que também eram tabu, naturalmente. Lobo Antunes, de outro tempo, emprega-os sem dificuldade". Mesmo depois do 25 de Abril "senti dificuldade em adaptar-me a uma nova escrita."

Urbano Tavares Rodrigues

Quando conheci a música Cálice passava pelo meu período de fanatismo religioso (quem não cometeu seus erros na adolescência?), e a associei de imediato à passagem narrada no evangelho em que Jesus hesita a respeito de sua morte. Passou o tempo, foram-se o fanatismo e a religião, vieram novas concepções e um conhecimento do nosso passado, quando “a nossa pátria, mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações; seus filhos erraram cegos pelo continente, levaram pedras feito penitentes, erguendo estranhas catedrais.” As músicas de Chico Buarque tornaram-se essenciais para conhecer uma época que não vivi, na verdade as muitas épocas que não vivi, nas quais alguém que tem o que dizer é forçado a calar-se ou falar por meio de símbolos.
Cheguei a pensar, diversas vezes, que nascera na época errada: uma época em que não poderia ser queimado ou perseguido pelas minhas ideias. Demorou um pouco para aperceber-me que as ditaduras apenas aprimoram suas técnicas de censura. Quem detém o poder econômico não precisa mais comprar senadores e deputados ou financiar máquinas militares para deter o poder sobre a informação. Até se divertem deixando os “independentes” livres para publicar seus textos subversivos na internete. Dá uma ilusão de liberdade de expressão, enquanto o público recebe apenas a informação pretendida pelos poderosos. Diante de tamanha bundialização, de tanta baixaria permitida, de “músicas” sem qualquer conteúdo, esvaziadas na imagem de dançarinas nuas, aqueles que pedem “afasta de mim este cale-se” soam paranóicos.
Jamais vimos um tamanho “pileque homérico no mundo” como agora. O pensamento simplesmente não encontra brechas para mostrar-se. Crianças são lançadas pelos próprios pais na moda da futilidade ainda no ventre materno; o que assistem, o que lêem, o que vestem, tudo rigorosamente pesquisado para agradar o mercado. Quando perceberão que “de muito gorda a porca já não anda”?
Há os que criticam os grandes autores do período da ditadura, afirmando que perderam a criatividade. Simplesmente os símbolos que eram usados já não servem à moda, pois ninguém mais curte a luta contra o poder. E tais autores, ao menos os autênticos, não se renderiam aos símbolos da moda, às fantasiações de vampiremos, escolas de bruxos e bandas adolescentes. Têm uma mensagem, e não esvaziarão seus discursos, vilipendiando a inteligência, para adequar-se ao novo modelo de ditadura.
A censura impõe uma auto-censura que torna os autores um tanto indiretos e simbólicos. Os símbolos continuam poderosos, pois representam o mundo e nossa maneira de vê-lo. Se a música já não os comporta, pois assim determina o mercado, gênios como Chico Buarque migram para a literatura, na qual serão sempre válidos.
O pensador sempre gritará: “Mesmo calada a boca resta o peito. Mesmo calado o peito resta a cuca. Afasta de mim esse cale-se”. E sempre haverá os que, a despeito de todo o barulho que recebem para coibir o próprio pensamento, conseguirão ouvir este clamor e levantar também sua voz. E, assim como Sócrates, dirão: dá-me o cálice de cicuta, pois não negarei minha verdade.

Amâncio Siqueira

Abaixo, trecho do show da Phonogram de 1973, no qual Cálice foi censurada:

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