segunda-feira, 2 de novembro de 2009

De corrupções e jeitinhos


Ilustração: charge do Duke

“Essa mentalidade ardilosa é uma faca de dois gumes. Na literatura, sua encarnação é Ulisses, que para Homero era um herói sagaz – salvador dos gregos, flagelo de tróia, vencedor de Polifemo e das sereias – e para Dante um mentiroso e embusteiro condenado ao nono círculo do Inferno.”

Alberto Manguel

Há alguns anos uma pesquisa perquiria a população brasileira sobre a prática de atos desonestos ou ilegais. Quarenta e sete por cento dos entrevistados responderam positivamente se já haviam praticado tais atos. Socó Pombo interpretou os restantes dados da seguinte forma: 50% são tão desonestos que não conseguem ser honestos nem no momento de responder a uma pesquisa e os 3% restantes incluem alguns brasileiros honestos e estrangeiros que ainda não aprenderam o ‘jeitinho’. Não serei tão alarmista quanto meu amigo (e espero que ninguém me acuse de estar sendo desonesto). Encaremos, contudo, a realidade: quase metade da população brasileira assume sem qualquer pudor sua tendência à desonestidade. E não podemos esquecer aqueles que, de tão desonestos, acreditam ser honestas suas condutas.
A verdade é que o brasileiro tem muito orgulho do ‘jeitinho’. Seus olhos brilham quando revela um “esquema” de que participou. É incrível o orgulho que algumas pessoas revelam quando contam histórias de como furaram uma fila, saíram sem pagar a conta, fraudaram o INSS, entraram numa festa sem pagar, enganaram o imposto de renda, negociaram produtos piratas e muito mais.
O mestre da ironia Machado de Assis relata nas Memórias póstumas de Brás Cubas que o protagonista encontra uma moeda de ouro (meia dobra) e, tomado pela consciência, remete-a ao chefe de polícia para que seja restituída ao proprietário, recebendo muitas congratulações públicas. Em seguida encontra um pacote contendo cinco contos de réis, e desta vez a consciência nada lhe diz. Ao dirigir-se ao Banco do Brasil para depositar seus achados cinco contos, é congratulado pelo caso da meia dobra. Não quero aqui deter-me na comparação dos valores e dos feitos, ou na moralidade do personagem, mas nas públicas congratulações. Em mais de um século tal perspectiva não mudou: sempre que alguém devolve bens encontrados, recebe reportagem da mídia e tal feito circula na boca do povo. Tão endêmica é a corrupção do nosso povo que simples atos honestos causam surpresa.
Como um caracol, demos uma volta sobre nós mesmos e nosso cotidiano e cheguemos ao círculo superior, o da política. A despeito do orgulho que nosso povo tem do ‘jeitinho brasileiro’, muitos reclamam da corrupção nas mais altas esferas de poder. Alguns até apóiam nossa classe política, dizendo num sorriso: “Eles estão certos. Se fosse eu lá, roubava mais do que eles”. A grande maioria, contudo, continua a recriminá-la.
Analiso o fenômeno apenas cientificamente: vivemos numa democracia representativa, ou seja, os eleitores escolhem seus representantes. Assim como cabe aos idiotas escolher idiotas que os representem, um país cuja metade da população é composta por pessoas corruptas (e aquele que busca distinguir os mais corruptos dos menos encontra apenas argumentos mais justificadores para que a corrupção se alastre) deverá ter necessariamente metade dos seus governantes também corruptos. Se alguém vende seu voto por algum mensalinho, que moral tem para cobrar de seu representante que não se venda por um mensalão?
Lembro ao povo que se orgulha do ‘jeitinho brasileiro’ as palavras de Max Weber: “O predomínio universal da absoluta falta de escrúpulos na ocupação de interesses egoístas na obtenção do dinheiro tem sido uma característica daqueles países cujo desenvolvimento burguês-capitalista, medido pelos padrões ocidentais, permaneceu atrasado.” O Brasil continuará a ser o país do futuro enquanto perdurar sua prática do passado.
Da próxima vez que for cometer um pequeno e inocente ato desonesto, reflita que também você tem sido causa do atraso a que nosso país tem sido condenado.
Não apenas as pessoas honestas são vítimas do ‘jeitinho brasileiro’.
Amâncio Siqueira

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