segunda-feira, 16 de novembro de 2009

De literatura e mídias


“O significado da palavra inglesa kindle é “arder, acender, incendiar”. Querem saber de uma coisa, aqui entre nós? Esse kindle me parece fogo de palha.”
Rubem Fonseca

O ser humano é um animal artístico. Cria para si representações do mundo que habita e de mundos inexistentes. Das matérias-primas utilizadas artisticamente, nenhuma mostrou-se mais maleável que as palavras. A esta arte que se aproveita da maleabilidade das palavras chamamos literatura. Um caráter de tal arte que surge no seu princípio e jamais a deixa é o lúdico. O jogo das palavras é o primeiro jogo coletivo a que os seres humanos têm acesso.
Aqueles dentre nós que se tornam mestres em jogar com as palavras causam encantamento nos demais. Poucas dessas peças lançadas no tabuleiro da literatura dão origem a lances de pura genialidade.
Ao longo do tempo foram muitos os meios sucessivos e sincrônicos que serviram para veicular a literatura para seus leitores: os grandes poemas coletivos, como os Vedas, e nacionais, como a Ilíada, surgiram a partir da oralidade, de uma longa tradição de poetas contadores de histórias. O advento da escrita levou-os para os manuscritos em argila, madeira e papiro. A criação da imprensa por tipos móveis produziu-os em larga escala e lhes deu alcance universal. A internete legou aos leitores a possibilidade de acessá-los instantaneamente. Os meios eletrônicos a princípio apresentavam barras de rolagem, tendo o leitor que rolar o texto, como num papiro. Novas plataformas deram ao livro eletrônico um aspecto assemelhado ao dos livros convencionais, possibilitando folheá-los, e por fim a literatura fecha um ciclo, retornando à oralidade, agora com som digital, com os áudio-livros. As façanhas das lendas voltam a ser declamadas.
Tudo que de fato é novo, devido à quebra de paradigma que representa, torna incerto o futuro. A imprevisibilidade abre um vazio, no qual as possibilidades antevistas pela mente turva de profetas otimistas ou pessimistas em geral não corresponderão à realidade vindoura. Especulações são saudáveis exercícios de imaginação, desde que não sejam levadas a sério.
Adeptos do “novo” continuam afirmando que as bibliotecas físicas serão assassinadas pela internete. Defensores do “velho” vêem com maus olhos tal substituição ou afirmam que jamais se processará. Há os que prevêem o fim não apenas da leitura como a conhecemos, mas mesmo da escrita, a exemplo de Humberto Eco, que tem afirmado que no futuro ninguém será capaz de escrever à mão.
Tais correntes não faltaram no passado e não faltarão no futuro. O fato é que, a despeito das paixões de “futuristas” e “tradicionalistas”, suas profecias jamais se concretizaram.
A escrita não obliterou a literatura oral, como atestam os contadores de histórias e os repentistas; assim como a escrita manual permaneceu em uso vários séculos após o advento da imprensa, e a imprensa não foi substituída pelo meio eletrônico.
As palavras continuam sendo maleáveis e, em sua maleabilidade, se reproduzem nas mais diversas mídias, pois são todas as mídias auxiliares do verdadeiro meio no qual germinam as obras artísticas: a mente humana.
Amâncio Siqueira

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