segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Quixote - A ficção mais poderosa que a realidade

Pintura: Dom Quixote por Romanelli

Dom Quixote é o início do romance moderno. Uma antecipação de todos os movimentos literários subsequentes: Realismo, Simbolismo, Modernismo. É um livro que nasce como uma irônica e áspera crítica aos romances de cavalaria, moda na época, que termina por tornar-se o maior romance de cavalaria já escrito. Em outras ocasiões trataremos do romance de viagem, dos personagens dialogais Quixote e Sancho Pança, das inúmeras perspectivas e variações de temas. Quero abordar aqui a intertextualidade e a metalinguagem que permeiam a obra.
O romance dialoga não apenas com outras obras, mas principalmente consigo mesmo, e Cervantes se dispõe a ser personagem do próprio romance, e como tal não poderá fugir do tom irônico da voz narrativa: “Esse Cervantes foi um grande amigo meu por muitos anos, e sei que ele tem mais experiência em infortúnio do que em versos. Seu livro tem alguma faculdade inventiva, propõe algo, mas não conclui nada”, diz o cura ao encontrar na biblioteca de Dom Quixote o livro A Galatéia, do próprio Cervantes.
A carga metalinguística é incrível. O tempo inteiro Cervantes discute autoria, autonomia da obra, o que é ou não real na narrativa, o processo criativo. Aliás, não Cervantes, mas os personagens, também eles autores em grande parte da obra. No início da primeira parte o narrador afirma que depois de iniciada a narrativa não sabe ao certo qual será o destino do seu cavaleiro. Em seguida afirma que lhe chegaram uns velhos papéis escritos em árabe, os quais leva a tradutores que lhe dizem tais escritos pertencerem ao historiador árabe Cide Hamete Benegeli, e tratarem-se coincidentemente da história de Dom Quixote. Cervantes passa a simples editor, publicando a tradução do registro histórico de seu cavaleiro escrito por um mouro.
(Uma questão ética: é válido combater o mal através da ficção?)
No início da segunda parte alude a uma outra segunda parte, publicada anonimamente, cujo autor o haveria chamado “manco e velho”, por ter atrasado sua obra. Faz uma quixotesca (e aqui o termo não é pejorativo) defesa da batalha na qual se feriu, perdendo o movimento da mão esquerda, e da honra de travar tais guerras. Ainda no prefácio da segunda parte declara que mata e sepulta Dom Quixote para que ninguém mais possa usá-lo como personagem doutros livros. Logo Quixote, que se tornaria um dos mais participativos personagens da história, sempre vivo e aventureiro. A seguir os próprios protagonistas encontram o bacharel Sansão Carrasco, que já teria lido suas aventuras, ao qual Quixote inquire: “Com que então, é verdade haver uma história dos meus feitos, e ser mouro e sábio quem a compôs?”. Responde o bacharel: “É tão verdade que tenho para mim que no dia de hoje estão impressos mais de doze mil exemplares de tal história; senão digam Portugal, Barcelona e Valência, onde se estamparam, e ainda corre fama que se está imprimindo em Antuérpia, e a mim me transluz que não há de haver nação em que se não leia, nem língua em que se não traduza.” E daí passam a discutir o que está escrito na primeira parte que tem ou não fidedignidade com os fatos ocorridos.
Por último apresento o início do capítulo V da segunda parte: “Chegando o tradutor desta história ao quinto capítulo, diz que o tem por apócrifo, porque nele fala Sancho Pança com um estilo diverso do que se podia esperar do seu curto engenho e profere coisas tão sutis, que não julga possível que ele as soubesse; mas que não deixou de traduzi-lo, para cumprir o que devia ao seu ofício.”
E aqui ficamos numa encruzilhada de autores, num emaranhado de narrativas sobrepostas que se discutem, de um autor, um tradutor, um editor, um outro autor apócrifo e a realidade de personagens que discutem sua própria existência e a nossa.
Dom Quixote é uma obra inexaurível. Mais que geniais diálogos internos, o livro é um incessante diálogo com toda a literatura universal e com todos os leitores possíveis. Em que se destaque a ingenuidade de Quixote, há que se condenar a malícia dos que o enganam. Contra tais malícias, talvez a única arma justa seja a própria ingenuidade. Dom Quixote, iludido pela heróica inocência dos romances de cavalaria, transpõe-na para a realidade, na qual não encontra lugar. A crítica à ingenuidade eleva-a a um novo patamar de beleza e poesia.
(Uma resposta ética: quando a realidade é uma roda-viva de sofrimento e injustiça, a única ação justa é tomar a lança do irreal e com ela ferir o injusto. Dom Quixote crê no poder do símbolo e com essa firme crença se ergue como símbolo contra a infertilidade da terra e a brutalidade dos homens. Como os santos e os artistas, combate o mal por meio da ficção.)
No fim, um livro que ironiza os ideais de cavalaria exalta esses mesmos ideais, agora não contrapostos a gigantes, feiticeiras e dragões, mas a um mundo em que o mal se alimenta no coração dos homens. Cervantes encontrara o mais terrível símbolo do mal a se combater: a realidade em que vivemos.

Socó Pombo

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