segunda-feira, 9 de novembro de 2009

De um caos em palavras e palavras em caos


“Toda a alma contemporânea, violenta, revoltada, se desencadeia e deforma os corpos humanos; somos, com um pulo só, levados na vertigem. Amita sentiu-se arrepiando a essência da arte: a santa embriaguês, uma escapada heróica e desesperada, para fora do lugar e do tempo, para fora da lógica. As palavras desempenham um papel secundário: toda a embriaguês jorra do ritmo que embala os atores desenfreados.”

Nikos Kazantzakis


Palavras são pontes entre a psiquê humana e a realidade. Através delas o ser humano constrói sua alma, abstraindo de suas percepções o construto que poderá denominar universo. O vocabulário do homem traz as menores partículas e as maiores galáxias que compõem seu universo interior.
As palavras moldam um mundo disforme e hostil.
Uma palavra sem sentido para o homem comum é uma ponte que liga dois pontos ignorados. Inútil até que se saiba aonde leva. Para o poeta, todavia, toda ponte é útil, sendo ela própria um construto de beleza indevassada, de novos matizes descobertos a cada novo vislumbre. Cada ponte tem um destino de prazer e mistério. Para o poeta é suficiente que a ponte leve a si mesma.
Para o vate não será suficiente encontrar os significados subjacentes da palavra cantada. Buscará a sua mais primitiva significação, aquilo que vai além da abstração, da ordem. A primitiva palavra que como Verbo criou o mundo do homem. A palavra como a coisa em si, como um ser concreto, que para além do homem confunde-se com a própria coisa e ainda assim é unidade autônoma, um elemento místico.
As palavras postas em ritmo avassalador já não são blocos que constroem o entendimento humano, mas blocos de Verbo a compor a própria realidade vivenciada. Pontes do homem para si mesmo, para o subjacente espírito cravado em sua mente racional.
Na grande literatura, na poesia, não é apenas no significado das palavras que reside seu segredo. Palavras são levadas até seu estado primitivo. O ritmo ganha maior importância. Cada palavra, com seu ritmo e sonoridade únicos, torna-se uma nota musical. O feitor do texto busca, assim, um cantar selvagem e belo, como o canto dos pássaros ou o uivo dos caninos.
A maldição do poeta: sentir em sua alma todo o horror do urro selvagem do universo e mantê-lo preso, ecoando dentro de si, pois não há voz ou palavras que possam traduzi-lo.

Amâncio Siqueira - Trecho do romance Eu, no Hospício

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