segunda-feira, 2 de novembro de 2009

De Literatura e literaturas


“A literatura é uma de minhas ‘loucuras’. Álvaro Lins ensinou-me a distinguir os grandes autores dos medíocres, e assim fiquei vacinado contra a subliteratura.”
Edson Nery da Fonseca

“Então, pelo resto de suas vidas, põem-se a vegetar e a dissipar suas faculdades com aquilo que se chama de leitura fácil. (...) Outra coisa não pode acontecer a não ser um embotamento da visão, uma estagnação da circulação vital e uma degeneração de todas as faculdades intelectuais. É este pão vulgaríssimo que é assado diariamente em quase todos os fornos, com mais frequência do que o puro pão de trigo integral ou de centeio. Infelizmente tem mercado garantido. (...)
Após ter sido alfabetizados, deveríamos ler o melhor da literatura e não somente ficar repetindo para sempre nosso bê-á-bá e nossos monossílabos.”
Henry David Thoreau

Tenho analisado as listas dos livros mais vendidos nos últimos anos. Invariavelmente as primeiras posições carregam os mesmos temas: seres fantásticos vivendo conflitos tipicamente adolescentes (um tipo de adolescente bem americano) e auto-ajuda. Ou um misto de ambos. Depois de vários anos de romances de fantasia adolescente e auto-ajuda no topo, a leitura que faço deste panorama é tenebrosa: não há leitores adultos no Brasil ou, se os há, não chegam à maturidade. Pior, parece que quando chegam à maturidade se deparam com a realidade e não conseguem encará-la, recorrendo à auto-ajuda.
As editoras também não têm se importado com a imaturidade de nossa população ou com o fato de tantos leitores jovens abandonarem o hábito na fase adulta. Cada novo fast food internacional que surge recebe tratamento diferenciado em divulgação e tiragem. Os autores nacionais, a não ser que se adéquem ao modelo fantasia+auto-piedade, são excluídos das livrarias. Os leitores não são vacinados contra subliteraturas e acabam perdendo o gosto pela leitura, pois a leitura que não aprofunda seus temas, que não enraíza na mente do leitor, fatalmente deixará de ser instigante. Leitores com prazo de validade.
Para contribuir para a formação de leitores para toda a vida elaborei um guia de vacinação contra subliteraturas:
Toda grande arte tem por objetivo causar estranheza, emoção, reflexão e reconhecimento. Com a literatura não é diferente. A arte que tem as palavras por matéria-prima deve ter um primeiro impacto no leitor que não o permita permanecer o mesmo. Dupla estranheza, a grande literatura conclama o leitor a repensar-se, pois estranha as palavras lidas e a si mesmo, pelo eco que fazem em sua mente. Para que se gere tal estranheza, necessário é que o sentido não seja único e evidente. Que haja significações que gritam e silenciam nas linhas, entrelinhas, sublinhas, sobrelinhas e principalmente nos pontos, nos quais os desafios são lançados à imaginação. Primeira lição: desconfia do livro descrito sempre com as palavras “com linguagem clara e acessível”. Trata-se de um livro que não pretende a estranheza, não pretende buscar no mais frio recôndito de tua alma o que há de agreste. Um livro que não pretende que tu te denuncies a ti mesmo. É um livro “despretensioso”.
Um livro pretensioso alcançará os subconscientes sentimentos, os inomináveis anseios. Delatará uma vivência em dor e desejo que sempre tiveste. As emoções aflorarão não das palavras lidas, mas das palavras que tua alma dirá quando leres a boa literatura. O bom livro é um espelho que reflete o leitor, não em seus preconceitos e em suas mentiras, mas tal qual é. E é neste selvagem reflexo que residem a estranheza e a emoção. Lição dois: desconfia do livro que incita ao autocontrole, à paz de espírito. Desconfia do livro que quer ensinar a ser feliz, a viver sem dor. Um humano sem dor é menos que um animal doméstico. Um livro sem dor é menos que subliteratura.
Um grande livro não traz em si soluções. Desconfia do livro que, uma vez fechado, não incita a ser repensado, a ser discutido. Desconfia do livro que acaba quando termina. Sobretudo evita o livro que se quer fazer dogma. Um livro que se fecha em si mesmo é perigoso como uma pessoa que acredita ter todas as respostas. Foge de ambos. Esta foi a terceira lição.
Antes de falar do reconhecimento, cabe salientar que nada é tão simples, principalmente quando se trata de obras de arte. Estas lições são como as camadas de uma mousse. O bom livro justapõe as camadas e seu sabor é insuperável. É no sabor que reside o reconhecimento. Como diria Rubem Alves, o bom livro carrega a carne e o sangue do seu autor transmutados em palavras. Se essas forem saborosas ao leitor, haverá comunhão. O leitor sentir-se-á parte daquele livro que é agora parte dele. Reconhecer-se-á nas palavras escritas e subentendidas. Ler é ler-se. Quarta lição.
Importante: em todo processo evolutivo os seres devem conhecer as normas para depois esquecê-las.
A literatura, como arte que é, é um processo. Um processo individual e coletivo. Nele, não apenas a arte ascende em auto-descoberta. Também o povo que a produz, também o leitor que a consome se auto-descobre. E todo processo exige evolução e esforço.

Amâncio Siqueira

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