terça-feira, 3 de novembro de 2009

De um oceano de cultura com ilhas e continentes


Ilustração de Kevin O’neill. A Liga Extraordinária é um conjunto de personagens clássicos dos romances do século XIX, reunidos por Alan Moore


“Inúmeras vezes ouvimos os homens falar como se o estudo dos clássicos fosse finalmente dar lugar a estudos mais modernos e práticos. Todavia, o estudante ousado sempre estudará os clássicos, seja qual for a língua em que estejam escritos e por mais antigos que possam ser. O que são os clássicos, enfim, senão o registro dos mais nobres pensamentos do homem? Os únicos oráculos que não decaíram são essas obras.”

Henry David Thoreau


Os colaboradores phállicos não se arrogam o título de eruditos. Somos apenas mochileiros, perambulando prazenteiramente por um universo vasto em cultura. E é para mochileiros como nós que indicamos a leitura dos clássicos. Até porque a produção dos últimos trinta dias não se pode comparar com a dos últimos trinta séculos.
Primeiramente deixo claro que clássico não é sinônimo de velho. E o digo não apenas porque há clássicos contemporâneos surgindo diuturnamente, mas principalmente porque a obra que pode ser chamada clássica é aquela que jamais envelhecerá. Traz em si uma eterna juventude, pois o que traz de primevo, de selvagem e sublime, imprime-lhe uma potência jovial que resiste até mesmo ao próprio fim.
Há poucos dias comprei um cd de Rossini, pensando que nunca ouvira sua música. De repente, todas as músicas que ouço são minhas velhas conhecidas. Sim, o clássico continua existindo para além de si mesmo. Para além de seu autor, para além de seu meio original, de sua cultura. Poucos sabem quem é Jonathan Swift, muitos sabem quem é Gulliver e praticamente todos já leram, ouviram, viram ou polimidiatizaram paráfrases da história do viajante que encontrou seres diminutos e seres gigantescos em suas viagens. Ao longo dos séculos Ulisses sobrepujou Homero, Dom Quixote se tornou mais real que Cervantes.
Tais obras ultrapassam a ideia de posse. Não pertencem a uma classe, a uma faixa etária, a uma etnia, a uma religião ou a uma nação. Por tocar aquilo que jaz mais encoberto, por denunciar o que há de mais evidente na universalidade do gênero humano, os clássicos são universais. Por pertencer a todos, o clássico não pertence a ninguém.
Obras clássicas são aquelas que sobrevivem às desavenças entre povos e nações, às agruras do fogo e da guerra, aos desmandos dos poderes, às disparidades entre as línguas. À indiferença do tempo. Ultrapassam o preconceito e a intolerância. O clássico é como uma semente guardada no tronco de uma árvore arrostada ao mar. Espera apenas chegar à terra fértil para medrar.
É evidente que em seus meios originais tais obras carregam uma maior profundidade, uma maior carga de expressão. Tais icebergs, contudo, mantêm suas pontas emersas na superfície do oceano da cultura universal. Muitos formam verdadeiras ilhas ou mesmo continentes, nos quais o mochileiro da cultura deverá necessariamente desembarcar, ou terá singrado os sete mares sem jamais ter conhecido as maravilhas dos portos ou a beleza selvagem das ilhas.

Amâncio Siqueira

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