domingo, 6 de junho de 2010

De Sofredores, Poetas e Poetas Sofredores

Imagem: Capela Sistina - Michelangelo

“O artista não exprime as suas emoções. O seu mister não é esse. Exprime, das suas emoções, aquelas que são comuns aos outros homens (...). Assim, o primeiro princípio da arte é a generalidade. A sensação expressa pelo artista deve ser tal que possa ser sentida por todos os homens por quem possa ser compreendida.”


Fernando Pessoa


“Para ter a alegria de dizer que não sou normal. E que escrever é a loucura de gramaticar erros.”


Alessandro Palmeira


O fato de não ser poeta me torna suspeito para falar sobre o fazer poético, ou sobre o conceito de poesia. Entretanto, isso não me impede de degustar poesia e pensar a respeito de seus melhores representantes.

É trivial ver poetas e apreciadores falando sobre inspiração, sentimento, introspecção e coisas igualmente diáfanas e incomensuráveis como interseção espiritual indispensável para o fazer poético. O poeta deve derramar sua alma, para ser autêntico. Se ele não sentir, não cria.

Diria Picasso: "Inspiração é uma maravilha. Pena que não apareça quando estou trabalhando."

A obra, qualquer que seja, nasce do trabalho. Não é à toa que é exatamente quando o escritor está trabalhando em seu texto que surgem as alternativas e resoluções de problemas para o andamento do mesmo. Mesmo quando vem aquela frase genial, a mesma não surge do nada, mas do trabalho do inconsciente, que aflora de repente. Não vem do nada, mas do esforço do autor para solucionar o texto. Tampouco é revelação divina.

Mudemos o foco do fazer para o feitor. Analisemos os grandes poetas. Será que Shakespeare e Goethe esperavam a inspiração para fazer falar suas almas? E o Pessoa, possuía oitocentas almas, cada uma com o estilo de um heterônimo? As cores e luzes de Borges e Milton foram inspiradas por sua cegueira? E Cabral de melo Neto, que sempre disse que sua poesia era puro trabalho, pois inspiração simplesmente não existe? Ainda sobre o talento: Goethe destruiu seu primeiro Fausto, escrevendo outro anos mais tarde. Talento desperdiçado?

Aqui devo deixar clara a definição de poesia que considero mais válida, embora não esgote o assunto. Coaduno a opinião de Janilto Andrade, que considera poesia como linguagem elevada ao máximo grau de significação. Que, ao invés de reduzir a poesia, amplifica até o infinito. Só descarta textos em prosa divididos em versos. Se o texto tem um sentido só, se não é carregado de referências, se cada palavra não é exata, então é um texto dividido em versos, e não poesia. Um ofício dividido em estrofes e rimas ricas não deixa de ser um ofício.
Um crítico inimigo nosso pega esses textos carregados de sentimentos e diz: "Isso é um tremendo vômito intelectual." Ou seja, o escritor que se resume a regurgitar-se, a falar de si mesmo, jamais será um profissional. Já pensaram se a Capela Sistina fosse uma série de auto-retratos de Michelangelo? Que falar de um ator que só interprete a si mesmo?

Lembro que a ideia do vômito intelectual não é minha, mas de um crítico literário. Achei importante colocá-la para as pessoas que escrevem poesia e pretendem ser publicadas. Os críticos pensam assim, e quem quiser profissionalizar-se deve atentar para isso. Envie um original molhado em lágrimas e outro com um texto enxuto e bem construído, e verá qual será publicado.
Toda arte é assim. Ou se busca o universal, ou deixa de ser arte.
Sartre fala bem sobre isso no Ser e o Nada, quando diz que não há diferença entre o ser e a aparência, afirmando que Proust não é um gênio pela capacidade de criar uma obra, mas pelo resultado da obra criada. É a obra o fenômeno em si, e não o potencial que a antecipa. Se o escritor não trabalha, não escreve, nunca será um gênio, simplesmente porque não aparecerá.
Ainda sobre o conceito de poesia que deixei, segue um exemplo do poeta Alessandro Palmeira:
"Na ausência da água, tomei a sede."
Cada palavra é exata. Não precisa ter a palavra amor, ou a palavra sofrer, ou lágrima, desejo ou tantas outras. Milhões de interpretações. Poesia para pensar e refletir por anos. Universal.
Evidentemente, quem precisa de um texto rápido (não confundir com texto curto – texto rápido é aquele que se esgota automaticamente, que não exige do leitor), carregado de palavras fáceis, na verdade prosa dividida em versos, não encara tal texto como poesia. Cadê o sentimento derramado? A introspecção do poeta?
Sirvo-me dessa interpretação negativa do poético comum em rodas de poetas para lembrar de Umberto Eco: um texto não quer dizer nada. Um texto não é seu autor: é seu leitor. É o leitor que dá sentido ao que vem no texto. Especialmente poesia. Se o autor não é capaz de sentir o que não sente, de provocar no leitor sentimentos e pensamentos que ele mesmo não traz em si, então ele não é escritor, apenas autor de textos escolares. Capazes de emocionar amigos e familiares, e que não dizem nada para os demais.

Outro ponto: nunca diferencio maniqueistamente razão e emoção. Só quem nunca ouviu falar em Freud faria isso. Assim como apenas alguém que nunca leu nada sobre neurociência, em especial neurilinguística, pode falar sobre escrever com o coração.
Não digo que qualquer um pode ser escritor apenas com trabalho. Mas ninguém o será sem isso. Ao menos eu nunca encontrei um. Talvez o Bukowski. Embora não duvide que ele sempre trabalhou seus textos.
Quando tinha dezesseis anos, vi uma mulher e inspirei-me a escrever uma estrofe. Depois de passada a primeira emoção, escrevi uma segunda. Meu amigo Márcio Jardson leu ambas e disse: "Interessante, a estrofe escrita sem inspiração ficou melhor que a outra." Desde então percebi que o sentimento que o escritor sente ao tecer o texto dissipa-se até para ele mesmo. Qual o poeta que lerá um poema de vinte anos e sentirá a mesma emoção que sentiu então? Emoções são emaranhados de substâncias químicas agindo no cérebro. O texto deve ser mais que isso.
Sobre a autenticidade do sentir do poeta: para quem acredita (e isso é realmente questão de fé) que poesia verdadeira tem que ser sentida, e que o sofrimento auxilia a criar autenticamente, aconselho que comece imediatamente a ler os melhores poetas: os haitianos

Amâncio Siqueira

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