quinta-feira, 24 de junho de 2010

De leis mortas por “defensores da vida” ou um embrionário diálogo sobre fatos e fetos


“O que a sua geração não sabe e a minha quase já esqueceu é o quanto éramos ignorantes naquele tempo, como eram estranhas nossas atitudes – para com sexo e tudo que se relacionava a ele. Anticoncepcionais, divórcio, homossexualismo, doença venérea. E gravidez fora do casamento, nem pensar, a pior coisa que podia acontecer. Nas décadas de 1920 e 1930 famílias respeitáveis internavam as filhas grávidas em asilos de loucos. Mães solteiras eram obrigadas a marchar pelas ruas, humilhadas pelas instituições que deviam tomar conta delas. As moças se matavam tentando o aborto. Parece loucura agora, mas naqueles dias, uma jovem grávida provavelmente achava que todos estavam certos e ela era louca e merecia todo o castigo. As atitudes oficiais eram extremamente punitivas, extremamente rigorosas.”

No trecho acima, extraído do romance Cães Negros, de Ian McEwan, a personagem fala das décadas de vinte e trinta do século XX, na Europa; contudo, não pude deixar de pensar que as mulheres do fim desse século nas Américas, e mesmo do fim do próximo, nos países teocráticos islâmicos, poderão referir-se com o mesmo alívio e espanto quando falarem das suas próprias décadas de vinte.

Sempre que se pede uma justificativa para as grandes tragédias naturais, os fiéis das religiões abraâmicas dizem que os desígnios de deus, qualquer deles, são inescrutáveis, e não nos cabe tentar compreender as milhares de mortes de inocentes. Entretanto, esses mesmos fiéis parecem possuir uma linha direta com sua divindade, quando se trata de nossa sexualidade. São verdadeiros psicólogos de deus, conhecendo cada pormenor de seus traumas. Sim, pois deus deve trazer terríveis traumas de infância, para se preocupar tanto com o que as pessoas fazem com seus pênis, vaginas e ânus, com seus testículos e úteros.

E essas pessoas, que desejam carregar consigo os traumas do seu deus, que consideram pecado a felicidade e o prazer, que consideram boa e bela a auto-castração, não se limitam a conduzirem-se (quando se conduzem, o que é raro) conforme acreditam ser vontade de deus, mas querem transformar sua conduta privada em lei pública, obrigatória mesmo para aqueles que não compartilham das mesmas certezas que eles sobre o que seja deus ou sua vontade.

Há países em que a mulher que puser fim ao fruto de um estupro será condenada à prisão perpétua, lei essa que recebe a bênção da Igreja Católica, que aliás não considera mesmo estupro como algo grave. Nos Emirados Árabes, recentemente um caso chamou atenção mundial, quando líderes religiosos, sabendo que uma menina havia nascido grávida, devido ao embrião de seu irmão gêmeo ter-se unido ao seu útero em formação, não quiseram permitir o aborto, preferindo condenar a criança à morte a extirpar algo que jamais se tornaria um ser humano. São comuns penas de morte na Indonésia, maior país islâmico. Nos Estados Unidos, os mesmos grupos religiosos que invadem clínicas de aborto e fazem campanhas para derrubar leis que permitem sua prática, que são contrários à eutanásia, ao suicídio assistido e às pesquisas com células-tronco, também vão às portas das penitenciárias defender a pena de morte.

Na verdade, é impressionante como é exatamente na parcela da população que mais defende o “não matarás”, dos auto-declarados “defensores da vida”, que encontramos os maiores defensores da pena de morte, inclusive com requintes de crueldade, enquanto se opõem ferrenhamente a que uma pessoa que saiba que tem uma moléstia progressiva que a tornará um vegetal, uma cruz para sua família, possa morrer dignamente.

É também muito comum ver pessoas religiosas que, ao saber que uma grávida decide abortar um feto sem cérebro, desejam que a mãe também morra no processo, e que vá arder no inferno. São defensores da vida, claro.

Evidentemente que não há muita gente que faça questão de ir para o paraíso passar um trilhão de anos acompanhado dessa gente, mas deixemos o além e todo o paraíso para esses indivíduos, e pensemos na realidade que sabemos que existe, a nossa.

Primeiramente, para acalmar os fanáticos que chegaram até aqui, devo dizer que as leis penais servem para dizer o que não se deve fazer, e não o que se deve; ou seja, uma lei que descrimine o aborto não obrigará aquelas que não quiserem fazê-lo a aderir. Todas continuarão tendo a liberdade de ter seus filhos (embora os argumentos dos líderes religiosos digam o contrário: pastores vivem no Congresso dizendo que a legalização do casamento gay será o fim da família, como se todo mundo fosse gay e estivesse apenas esperando a liberação para começar a casar com pessoas do mesmo sexo. Da mesma maneira, acham que nenhuma mulher tem instinto materno, e que não nascerá mais ninguém, pois todas abortarão tão logo deixe de ser proibido).

Agora que está claro que as que não quiserem não serão obrigadas a abortar, assim como quem quiser continuar vegetando não será obrigado a receber eutanásia, pensemos naquelas que poderão optar, seja por questões sociais, médicas ou econômicas, pelo aborto.

Atualmente, estima-se que setenta mil mulheres morrem anualmente ao praticar abortos ilegais, noventa e cinco por cento delas nos países em desenvolvimento, exatamente aqueles que têm maioria religiosa e leis que criminalizam o aborto. Os mesmos países que estão atrasando sua medicina ao impedir pesquisas com células-tronco embrionárias, e que possuem péssimos sistemas de saúde e programas deficitários de segurança. Preciso lembrar da educação?

O cientista Carl Sagan defendia como critério para a permissão do aborto o período de formação daquilo que diferencia o ser humano dos demais animais: o neo-córtex cerebral. Essa camada do cérebro, que recobre nossa psiquê reptiliana e mamífera, forma-se no início do segundo trimestre de gestação. Seria esse o período limite para Sagan. Pensamento até retrógrado ou reacionário para alguns países europeus, que permitem o aborto até o início do terceiro trimestre. Todavia, compreendo que seja muito avançado para países como o nosso, que ainda permitem campanhas contra o uso de contraceptivos em nome da liberdade religiosa. Infelizmente, em nome da religião se permite o estelionato, a lavagem de dinheiro e a desinformação em massa, o ativismo contra a ciência e a educação, a verdadeira guerra contra a liberdade de opinião. Mas prossigamos.

Sendo o pensamento de Sagan avançado para nossos padrões, já que o critério que os religiosos insistem em utilizar é não o da humanidade, mas o do início da vida, considero que um passo importante seria tomar como critério para o começo da vida o mesmo que utilizamos para decidir seu fim: o funcionamento do cérebro, ou a atividade encefálica. Tal entendimento solucionaria não apenas a questão do aborto, como das pesquisas com células-tronco embrionárias.

Nossa lei concorda com a opinião científica de que, a partir do momento em que o indivíduo deixa de apresentar atividade encefálica, deixa de estar vivo, mesmo que aparelhos o façam respirar. É justo, então, considerar que o embrião, quando não apresenta ainda atividade encefálica, ou seja, antes de desenvolver um cérebro e órgãos auxiliares (o que ocorre por volta da sétima semana de gravidez, com a encefalização), não é um ser vivo, mas apenas um corpo que respira com a ajuda de um aparelho, a mãe.

A única diferença é que aqui não se desliga o aparelho, mas o ser que funciona sem sentir e sem saber.

Desumano? Apenas para aqueles que creem que um erro deve ser carregado para todo o sempre, ou que a vida deve ser vivida não importa como, com que dores e desgraças. Para esses, planejamento familiar é desnecessário, assim como condições básicas de vida que garantam a dignidade das famílias e de seus recém-nascidos. Para aqueles, o sofrimento é satisfatório e merecido. Para ambos, viver sem atividade encefálica é mesmo uma bênção.

Nada contra. Queremos apenas que não imponham sua bênção aos demais.


Amâncio Siqueira

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