
Nietzsche
Para além da teoria literária, adiante da crítica, após o horizonte do livro, subjazem conceitos que se transferem da obra para seu feitor. O ofício da escrita, assim como qualquer outro, exige alguém qualificado intelectual, emocional e fisicamente. A esse profissional da escrita chamaremos escritor, do qual falaremos um pouco mais, para diferenciá-lo daqueles que apenas escrevem e que não devem se confundir com escritores.
Deixemos à parte a técnica, a dedicação, o árduo trabalho de tecitura do texto, e voltemos nossa atenção para algo de suma importância na produção daquilo que podemos chamar verdadeiramente escritor: a personalidade.
O escritor não poderia deixar de ser um homem comum, como os que mais o sejam. Comum a ponto de tornar-se totalmente diferente, um solitário desdenhado por aqueles que não compreendem sua necessidade de compreender. Solitário não porque se ache especial: apenas percebe que as vidas ao seu redor são tão insignificantes quanto a sua própria. É exatamente esse senso de que nada tem de especial que o leva à aventura de espelhar na arte o trágico de ser humano. Apenas os mais humanos podem transcender a individualidade de homem para redimir ou condenar toda a humanidade. Percebem que a única maneira de atribuir sentido ao absurdo do existir é por intermédio da arte.
O escritor não tem medo. Não apenas é corajoso, mas também temerário. Não se trata apenas de não correr do perigo: trata-se de correr para o perigo. O escritor é o perfeito inoportunista. Jamais perde uma oportunidade de ser inoportuno, de bradar verdades dolorosas para todos, para ele inclusive. Não à toa será chamado pelos desafiados víbora: sua verdade é venenosa até mesmo para si. Não pode prendê-la, guardá-la, escondê-la.
O escritor não é aquele que mais sabe de si mesmo ou do mundo. É tão somente aquele que temerariamente não nega o que sabe, aquilo que todos sabem, mas não conseguem admitir. Prefere o veneno da verdade à mentira analgésica de cada dia.
O escritor não se permite ter fé. A fé congela a alma, paralisa o intelecto, ilude os sentidos. Tudo no escritor pede calor, movimento, sensação. Mesmo a ilusão que sai da mente do escritor contém uma venenosa realidade. O personagem é um microcosmo que copia o movimento celeste, ou um macrocosmo para simulação de acasos quânticos.
A verdade é açoite, e o escritor auto-flagela-se antes de açoitar seu público.
Diante do mundo que o ameaça, utiliza-se da mais perigosa técnica de auto-defesa: desfere com suas palavras o mais duro golpe possível, sobre o mais poderoso dogma. Bate da forma mais dolorosa contra o lugar mais doloroso do que se chama autoridade. Maldição para o escritor é não ser amaldiçoado. Cobiça uma milhar de religiões, para conquistar uma milhar de excomunhões. Deseja um milhão de deuses, para ser condenado a um milhão de infernos.
No mais profundo da psiquê do escritor há o temor da segurança. Como sobreviverá sua alma em plácida serenidade? Reside aí uma vontade que o conduz à sua obra: o desejo da fogueira.
Amâncio Siqueira
Nenhum comentário:
Postar um comentário