terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Um novo evangelho

Pintura: A Morte de Sócrates - Jacques-Louis David

Capítulo IV

Os dois ainda procuravam memorizar as primeiras lições de latim, quando o sol surgiu no horizonte, mostrando o caminho que tomariam. Seus companheiros acordaram surpresos pelo fato de não terem sido chamados para seus turnos de guarda. Entre o preparo da primeira refeição e o desmonte do acampamento, souberam por desenhos traçados na areia que sua viagem seria alongada por uma parada que desviaria sua trajetória: passariam por Antioquia[1] antes de seguir em direção ao crescente fértil[2], passando pelas margens do Eufrates e dando a volta pelo lado oriente do Mar Negro, para enfim chegar ao Quersoneso Táurico, onde os documentos deveriam ser entregues a um general que tinha sua identidade preservada para segurança da missão.
É a partir da passagem que fizeram por Antioquia que começa a narrativa do livro de Tiago
[3], demonstrando a sua impressão da civilização de reminiscência helênica.
Nos dias e principalmente nas noites em que seguiram viagem, Tiago e Melquisedeque se aprofundaram mais na língua latina, e mesmo seus companheiros, radicalmente xenófobos, passaram a estudar. Mas, se todos o faziam por motivações políticas, Tiago desenvolvera em seu íntimo uma outra motivação para o aprendizado da língua gentia: sentia-se curioso em relação a uma cultura que, apesar da imoralidade do culto religioso, dera origem a homens como Horácio e Júlio César
[4]. Sentia o ar mais puro e o dia mais luminoso sempre que esquecia o pessimismo em face da vida para lembrar-se da expressão carpe diem. À medida que crescia em sabedoria, vacilava sua fé na seriedade da vida e seu horror ao pecado. Não seriam os grandes acontecimentos históricos frutos da vontade e do gênio do homem mais que o resultado de desígnios divinos? Foi com esse pensamento gritando e debatendo-se para libertar-se do seu peito que Tiago adentrou as ruas de Antioquia junto de seus parceiros.
Havia cavalgado poucos metros, quando o seu interesse pela língua latina o fez parar para prestar atenção às palavras de um homem que falava a muitas pessoas embaixo de uma oliveira:
― E eu vos digo que este homem, que odiava os erros e as imperfeições das gentes, no entanto amou de tal forma a espécie humana que por ela se recusou a negar sua verdade e a fugir da lei, e morreu por nós. Foi morto pelos poderosos, que o acusaram de blasfêmia por não compreenderem sua teogonia. Foi morto, enfim, porque não estávamos preparados para sua verdade, pois que sua verdade teria mudado para sempre a compreensão dos seres humanos e as estruturas das civilizações.
Tiago compreendeu em partes o que o homem dizia, mais pelo seu tom e seus gestos que pelo discurso em si, e sentiu-se curioso por conhecer a história de que falava. Seus companheiros deram por sua falta e voltaram para chamá-lo. Ele então perguntou a Marco:
― Quem é o homem de que ele fala?
― Semástocles ensina filosofia grega. Nunca ouviste falar de Sócrates
[5]?


[1] Outra importante cidade comercial da Síria, a norte de Tiro.
[2] Região entre os rios Tigre e Eufrates, no Oriente Médio, onde surgiram algumas das mais importantes civilizações da história. Nessa região as lendas babilônias que influenciaram o Gênese situam o Jardim do Édem, o paraíso terrestre.
[3] Na verdade, o livro de Tiago não é bem uma narração, mas uma coletânea de crônicas e poemas que ajudam a compreender a dimensão humana dos conflitos de seu tempo. Estes textos serão usados com propriedade por Siqueira como falas de Tiago em momentos importantes de sua vida.
[4] Gaius Julius Caesar (100 a.C. – 44 a. C.) – Grande general romano, sendo primeiro triúnviro e depois tirano vitalício do império. Apesar de ter governado no fim da República, foi o responsável pela Era Imperial, fato que levou a uma conspiração culminada em sua morte. Escreveu sobre as guerras de que participou.
[5] Sócrates (c. 469 – 399 a.C.) – Filósofo grego que consolidou a filosofia como a conhecemos, separada das ciências naturais. Morreu ao beber uma taça de cicuta, sentença recebida após um julgamento em que foi acusado de corromper a juventude ateniense.


Amâncio Siqueira - Trecho do romance O Evangelho de São Pecador

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