sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Consciências personalísticas

Pintura: Sísifo, por Tiziano

Li recentemente um comentário no Digestivo Cultural de um leitor que disse não gostar de Saramago. Sua razão para tal: ”Os personagens não têm vida e a história está lá para dar voz às pontificações do autor.”

Pensei em responder-lhe apenas com um “Bemvindo à literatura”, mas ao ler O Homem Duplicado encontrei este texto interessantíssimo, no qual o próprio Saramago ironiza sua queda pelas pontificações:

“Um parêntesis indispensável. Há alturas da narração, e esta, como já se vai ver, foi justamente uma delas, em que qualquer manifestação paralela de ideias e de sentimentos por parte do narrador à margem do que estivessem a sentir ou a pensar nesse momento as personagens deveria ser expressamente proibida pelas leis do bem escrever. A infracção, por imprudência ou ausência de respeito humano, a tais cláusulas limitativas, que, a existirem, seriam provavelmente de acatamento não obrigatório, pode levar a que a personagem, em lugar de seguir uma linha autónoma de pensamentos e emoções coerente com o estatuto que lhe foi conferido, como é seu direito inalienável, se veja assaltada de modo arbitrário por expressões mentais ou psíquicas que, vindas de quem vêm, é certo que nunca lhe seriam de todo alheias, mas que num instante dado podem revelar-se no mínimo inoportunas, e em algum caso desastrosas.”

Na literatura imortal não têm os autores servido como amigos imaginários ou vozes de consciência para seus personagens? As narrativas são meios para o desabafo de almas atormentadas. Longe de tirar a vida dos personagens, é a voz do autor que preenche de sangue suas veias.

Embora no mais das vezes os personagens discutam e discordem do autor, em alguns momentos até sabem ouvir seus conselhos, que nem sempre vêm para o seu bem.

Pontificações como a baleia branca de Melville ou os moinhos de vento de Cervantes jamais serão apagadas, pois simbolizam a pedra no caminho de Drummond, o trabalho de Sísifo que é arrumar a casa. A eterna busca a que nós nos entregamos vida afora, quando nos propomos uma missão, um sentido para o existir. Eterna não porque fora do tempo, e sim porque circular. Vivenciamos todos em nossa vida fugaz o eterno retorno nietzschiano. Os grandes personagens literários mostram isso. Quanto maior sua tarefa, mais certo o fracasso que leva ao recomeço.

Isso é vida.

Socó Pombo

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