sábado, 26 de dezembro de 2009

Um velho diálogo

Pintura: Hieronymus Bosch - Tentação de Santo Antonio

- Meu jovem rapaz, a ética nos impede causar tal transtorno e tamanha desfeita. Devemos manter a palavra, pois ela carrega nossos nomes. Minha família jamais perdoaria tal descaso. Os laços da honra prendem-nos à palavra dada.

- Homessa! Ora, Lúcia, tenha suas próprias volições. Auto-independa-se de qualquer promessa, de qualquer palavra, de qualquer ética, de qualquer honra, de qualquer ulrapassado conceito de certo e errado. Não siga o que te disseram, sem a liberdade de julgar por si mesma. Pensa a respeito. Por toda sua vida você seguiu as regras do jogo. Experimente agora fazer suas próprias regras. Não se arrependerá como daquela vez, pois já não há quem lhe impeça. Com certeza, não esqueceu aquela linda manhã ensolarada, há trinta anos. Lembra-se que seus pais diziam: Nunca vá ao lago sozinha. Nunca. Não se esqueceu que queria muito ir ao lago, mas sua mãe não a quis levar. Era seu aniversário, mas sua mãe estava tão atarefada que tempo algum podia delegar à sua felicidade. Estou fazendo o almoço, disse ela. O que você fez? Desobeceu sua mãe pela primeira vez. Última e única. Lembra que sentiu o gosto da plena liberdade? O sentimento de pureza, sentada numa pedra à beira do lago, levantando seu limpo e engomado vestido e banhando seus pés na água cristalina? Ah, jamais se esquecerá da eufórica caminhada até sua casa, do seu sorriso, de sua alegria ao sentir a liberdade plena inundar todo o seu ser... e tampouco esquecerá do que ocorreu ao chegar em casa. O rosto de desespero de sua mãe e suas duras palavras: Onde estavas, menina desnaturada? Procurei-te por toda parte. Olha só teu vestidinho, todo sujo e amassado. Fui ao laguinho, mamãe. Foste? Pois jamais esquecerás deste dia... Foi a maneira de sua mãe demonstrar a alegria de ver a filha sã e salva. De fato, você jamais esqueceu do único momento em que foi tocada pela violência, sua mãe batendo com mãos e palavras; e sua irmã Ângela rindo de você e de seu sofrimento. Ria de sua vergonha, de sua humilhação. Das suas lágrimas. Sentiu naquele dia liberdade e dor plenas, contrabalanceando-se. Todavia, pareceu-lhe a dor mais poderosa que a liberdade, pois a liberdade trazia dor. A dor, porém, não trazia liberdade. A dor era apenas dor. Estava errado o catecismo. Não existia redenção. Contudo, hoje você pode desobedecer sua mãe e tudo que ela disse. Está lá, ao lado de sua querida Ângela. Hoje, se você quiser sentir a liberdade da desobediência, não sentirá a dor como paga. Não será espezinhada pela humilhação de sua irmã escarnecendo. Apenas o prazer pleno e total da liberdade. O que escolhe, Lúcia, o compromisso ou a felicidade de sua filha? A ética ou a alegria, a honra ou a liberdade? Faça sua escolha.

Lúcia olhava dentro dos olhos de Luiz, e em cada traço do seu rosto adivinhava verdade. Cada palavra despertava-lhe o prazer que sentira naquele dia e despertava-lhe o desejo de reparação. Deleitou-se ao imaginar os rostos tristonhos e indignados. A água da liberdade, que outrora banhara seus pés, correria caudalosa sobre todo seu ser. Ao ouvir as últimas palavras, abriu um sorriso, entrevendo a tão reprimida vontade de desforra desabroxar numa oportunidade tão latente. Tinha em suas mãos o poder de escolha, sem o temor do castigo.


Amâncio Siqueira

Um comentário:

Phallos disse...

Que é isso, Socó Pombo? Entreguei o livro pra você destruir, não para publicar.

Amâncio