quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

De deseducação e avaliações


"Se a boa escola é a que reprova, o bom hospital é o que mata."
Hamilton Werneck

Quando tinha seis anos ingressei na escola. Na primeira semana a professora entregou-nos alguns rolos de massa de modelar e pediu-nos que fizéssemos um prato com frutas. Nossa primeira natureza morta. Encantado com um elefante que vira na caixa de massas, decidi fazer o meu. A professora observou meu elefante, minha primeira natureza viva, e disse: “Ficou muito bom, Amâncio. Agora desmanche e faça a bandeja com frutas que pedi.” Desde então intuí que a escola queria me fazer igual aos demais. E segui o caminho da igualdade na escola, embora continuasse cultivando meu lado artístico em casa.
Qual a função da escola?
É uma questão a ser debatida de vários ângulos diferentes, desde o mais ideal ao mais pragmático, passando por nuances econômicas e sociais. Sem esquecer, evidentemente, o viés histórico. Como conheço pouco da realidade oriental, tratarei apenas de experiências do ocidente. Para que serviam as primeiras escolas, misto de universidade e preceptoria? Despertar a curiosidade e a inteligência, e ensinar aos aristocratas a liderança. Isso mudou drasticamente a partir do cristianismo, quando as escolas passaram a formar clérigos. Aprendiam ainda a liderança, pois eram comandantes do rebanho, mas já não podiam ser curiosos. A educação continuava acessível aos aristocratas apenas.
Por que se criou o sistema de notas? Porque as pressões sociais obrigaram os governos a oferecer educação estatal aos pobres. Como os pobres vinham de uma defasagem de saber em relação aos ricos, que contavam com preceptores e livros desde a mais tenra infância, o sistema de notas levava os pobres a atrasarem-se e desistir da escola, como até hoje ocorre. Então deduzimos que a escola burguesa serve para ampliar as diferenças sociais, e o Estado é participante ativo disso, pois oferece uma educação deficiente para os pobres, enquanto os ricos usufruem do melhor ensino superior - o público - depois de ter uma educação privada de qualidade.
Lembro-me de um fato já integrado ao ideário popular: uma professora numa prova fez a pergunta “Qual minha fruta preferida?”. Todos responderam maçã, com exceção de um, que respondeu uva. Este perdeu a questão.
Imagine se houvesse o sistema de notas na antiguidade grega: Platão teria reprovado Aristóteles, que não sabia apenas repetir o que o mestre dizia. O sistema de notas é muito útil para o controle social, pois obriga o estudante a macaquear o professor, ou ser reprovado.
Os filhos das pessoas que não estudaram são aqueles que continuam sem estudar, num círculo vicioso de divulgação maciça da ignorância.
Não é surpresa que os principais meios de comunicação se posicionem tão veementemente contra os sistemas de cotas. Não apenas porque seus funcionários mais eminentes se aproveitaram do sistema aristocrático para sua formação, mas principalmente porque os grandes grupos econômicos que patrocinam aqueles meios querem manter este sistema de separação das classes. A alta burguesia sempre quis substituir a aristocracia, e a forma mais democrática de fazê-lo é por meio da educação. Já não é o sangue que determina quem tem acesso à educação, mas o dinheiro.
A educação dividida em ciclos por séries/anos não apenas é injusta com os estudantes de nível mais baixo, mas também com o de mais elevado. A educação pública nivela por baixo. O estudante que já conhece os assuntos tem que esperar que os demais o acompanhem. Não pode seguir adiante. Neste sistema de freios e contrapesos, a inteligência e a curiosidade são preteridas diuturnamente.
Ninguém se pergunta por que a criança ingressa na escola cheia de perguntas e expectativas e sai entediada e feliz por não mais precisar estudar?
A escola se dedica desde o princípio a livrar o indivíduo de sua individualidade. Tira suas dúvidas não por respondê-las, mas por privá-lo da vontade de aprender. Em especial no Brasil, com uma educação tão próxima da igreja católica, dedicada não às dúvidas, mas às certezas. Trabalho próximo a uma escola cuja diretora diariamente obriga os estudantes a cantar músicas cristãs e rezar rezas do terço católico. É assim que funciona o nosso Estado laico.
Recentemente a União Europeia condenou a Itália a retirar os crucifixos das salas de aula, para não condicionar os alunos à religiosidade obrigatória. O Brasil segue o caminho inverso, fazendo acordos com o Vaticano.
A solução para a educação passa pelos professores, estudantes, pela família e o Estado. Um dos segredos seria o retorno ao método clássico, e quando me refiro a clássico não falo da escola tradicional, mas à metodologia grega: que o estudante não apenas repita o que lhe dizem; que construa seu conhecimento. Que possa comprovar o conhecimento que lhe é passado. Que tenha sua curiosidade aguçada. Que passe de nível de acordo com seu desenvolvimento pessoal e não fique condenado à mediocridade.
Que os indivíduos aprendam a individualizar-se. A buscar e propor soluções para os problemas. E que o conhecimento não seja uma questão de fé, mas de raciocínio.

Amâncio Siqueira

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