sábado, 5 de dezembro de 2009

Bartleby e a escrita


No livro Bartleby e Companhia o escritor Enrique Vila-Matas utiliza o personagem criado por Herman Melville para nomear um estado de espírito próprio de alguns escritores: o fato de abandonarem a escrita. Assim como o personagem, o escritor passa a dizer para si mesmo, diante do papel: Prefiro não fazer.

A despeito de apreciar falar de escritores clássicos e fazer a minha crítica de obras consagradas, não é sobre o livro em si, ou sobre o livro que inspirou a nomenclatura de Síndrome de Bartleby; nem mesmo sobre os escritores famosos que sofreram desta síndrome que desejo falar. Desejo aqui fazer um estudo de caso com os próprio colaboradores do Phallos, em especial dos criadores desta ideia.

Remontemos, primeiramente, a um período de uma década atrás, quando os criadores do Phallos decidiram enveredar pelo caminho da literatura. Alessandro Palmeira, com seu Amor, Abstrata Loucura, foi o primeiro a publicar, seguido no mesmo ano 2000 por mim e Jean Wagner, que publicamos o livro Lixismo – Uma busca pelo esquecido, embora o Movimento Lixista tenha sido engendrado por Amâncio Siqueira e Márcio Jardson, que participaram do livro com alguns textos. Siqueira prefaciou ainda o livro de poemas Vidas em Versos, da poeta Vanda, e publicou poemas e contos em jornais e antologias, além de prometer já ter o esqueleto de uns seis romances. Nesta mesma época Edgar Cruz escrevia alguns textos, tendo prefaciado o livro de Palmeira, embora não nos mostrasse nenhum livro em perspectiva.

Estávamos todos entre os dezessete e os vinte anos, e no horizonte havia um futuro brilhante, pois sob nossos pés havia os alicerces de uma grande escola literária, de homens (pois no fim da adolescência já assim nos considerávamos) que influenciariam o mundo. Na minha opinião Jardson e Cruz poderiam merecer o Nobel, se continuassem a escrever como escreviam. Tamanha efervescência criativa germinou de tal maneira, que alguns meses depois criamos o periódico Phallos. Palmeira apresentou a ideia de um jornalzinho estilo suplemento cultural, só que prenhe de criatividade e irreverência. Sugeriu o título Phallos, e Amâncio e Márcio não titubearam: a homenagem a Jung, ou Basílides, era mais do que devida, pois fora uma de suas inflências.

Estes caras nunca nos perguntaram se concordávamos com algo, e nós sempre concordamos. Não apenas concordamos, como mergulhamos felizes na empreitada. Jardson, que era o único que tinha trabalho e acesso a computador, editava o periódico de oito páginas. Siqueira era responsável pela digitação e correção, que fazia no local de trabalho de Jardson, a Secretaria da Fazenda. Palmeira era o editor-chefe e conseguia “patrocínios”, ou seja, cópias gratuitas. Sim, o Phallos começou como um periódico impresso em preto e branco, formato ofício dobrado, fotocopiado e distribuído gratuitamente na faculdade de Afogados da Ingazeira. Entre seus colaboradores, além dos citados, Bruno Senhor e Josué Manfredine.

Sim, e até agora o texto pouco tem de comum com o título. Aqui vem a reviravolta, pois é onde se encaixa a síndrome de Bartleby.

Todo o arroubo criativo, o afã de escrever, a multiplicidade dos assuntos, durou apenas quatro meses.

E não foram quatro meses de publicações semanais ou diárias: o Phallos era mensal. Quatro edições de oito páginas cada foram tudo o que conseguiram aqueles inspirados escritores na mais calorosa juventude. E o Phallos caiu. Emurcheceu-se. Perdeu o tesão.

Foi um hiato de quase dez anos entre sua última ereção impressa e sua primeira ereção virtual. E, incrivelmente, a síndrome de Bartleby ainda ataca nossos colaboradores. Mesmo o Palmeira, que publicou dois livros desde aquela época, sente o peso de tal síndrome. Criou um blogue pessoal, porém deixou o mesmo falecer há um ano, e o seu Prece ao Pecado deixa entrever a fadiga do processo criativo: o romance de espetacular premissa torna-se quase um conto de escrita fragmentária. Siqueira finalizou um dos seus romances em 2005 e novamente perdeu o gosto pela escrita. Os demais sequer produziram algum material nesta década. Seus textos publicados aqui são os mesmos que circularam no Phallos impresso, material esgotado e sem renovação.

Há muitas causas para que o escritor desenvolva o desejo de não escrever, ou perca o desejo de escrever. Desde o esgotamento das palavras, que já não representam tudo que vai em seu íntimo, até a ausência do reconhecimento que acredita merecer, passando pela constatação de que nada do que diga é de fato novo, a extrema humildade de acreditar que não escreve lá grande coisa, a falta de inspiração (há escritores que acreditam na inspiração) e a preguiça. Há ainda causas externas, como uma vida normal. Sim, a normalidade é terrível para o escritor. A necessidade de conseguir um emprego para sustentar-se, a felicidade de um princípio de namoro, a atuação num partido político, a atenção a esposa e filhos, tudo, enfim, que diz respeito à família é um risco para a carreira do escritor. Concordo com Siqueira, quando diz que “a família é a nulidade básica da sociedade”.

Eu mesmo pouco tenho escrito, e quando sai algo é apenas uma crítica a livros ou filmes que gostei. Tem faltado algo de pessoal em mim, algo do arrebatamento que já tive.

Tudo parecia novo: uma nova instigação, um recomeço, uma primavera criativa depois do longo outono se apresentou quando Siqueira, decidido a não voltar a ser normal, a buscar finalizar sua obra e publicá-la, procurou-nos por emeio com a ideia de relançar o Phallos na forma de blogue. Dizia no corpo da mensagem: Voltaremos a escrever, ou nosso Phallos permanecerá deitado eternamente em berço esplêndido?

Todos nos empolgamos, como retornasse o tesão literário da juventude. Todavia, passados novamente quatro meses, nossos colaboradores caem no ostracismo, e mínguam os textos.

E não são apenas os antigos colaboradores que penam para escrever: o novo colaborador Tiago Caldas produziu um único texto e já não envia nada. Para a nossa seção feminina foi convidade a poeta Izabel Goveia, que ainda não enviou seu texto de estreia.

Não faço aqui um apelo aos nossos colaboradores, mas ao leitor: peço-te que compreendas que o processo criativo é difícil. Cada texto dói como um parto, e nem sempre a criança é isenta de maus congênitos.

Haveremos de produzir mais, mas por enquanto esperamos que seja agradável a leitura dos poucos textos que temos disponibilizado.

E aguardamos um tratamento eficaz contra a síndrome de Bartleby.

Socó Pombo


Um comentário:

Phallos disse...

O texto ficou excelente, porém gostaria de fazer minha defesa. Eu não perdi o gosto pela escrita. O problema é que o meu antigo emprego estava consumindo todas as minhas energias, e eu tive que direcionar meu tempo livre para estudar e buscar um emprego público mais tranquilo, para me ver livre das cobranças e frustrações excessivas. Não deixa de ser um aspecto da síndrome de Bartleby, porém o viés é diferente. Acredito que agora estou curado.

Amâncio