segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Do filósofo e dos técnicos

Pintura: Rembrandt - Filósofo em meditação

“Tomem suas precauções. Quando (...) aparecer um pensador em nosso planeta, logo tudo estará em perigo. É como quando um incêndio se alastra numa grande cidade e ninguém sabe o que o fogo vai respeitar nem onde vai se deter. Então não há mais nada na ciência que não possa ser derrubado amanhã, nenhuma reputação literária estará assegurada, nem qualquer uma das celebridades ditas imperecíveis; tudo o que é muito caro e precioso nesse tempo só o será com relação às ideias que se levantaram no horizonte espiritual dos grandes pensadores e que produzem a ordem presente, como a macieira produz maçãs. Um novo grau de cultura causaria logo uma inversão de todo o sistema das atividades humanas.”
Ralph Waldo Emerson

As universidades esqueceram-se do significado de seu nome. Esqueceram-se que os estudos de universidades abrangem exatamente um conhecimento universal, a universalidade do conhecimento. Já há algum tempo não merecem esse título. Os estudantes a cada nova formatura especializam-se mais. Os cursos especializam-se mais. A cada dia uma cadeira de um curso mais abrangente torna-se um curso isolado. Cadeiras que anteriormente não mereceriam sequer uma especialização tornam-se cursos técnicos com diploma de nível superior. Particularmente, não compreendo como um nível Superior pode ser adquirido em menos tempo que um de nível médio, com menos estudo e conhecimentos direcionados a uma única carreira, sem abrangência de conhecimentos universais. É como se fosse mais fácil ser superior que mediano. Ou como chegar ao nível superior continuando na mediocridade.
Cada vez se faz mais difícil gerar-se um filósofo no seio da universidade. Criam-se, sim, muitos cientistas, das mais diversas disciplinas, mas me parece que o filósofo deverá abster-se do ensino superior se quiser desenvolver sua sabedoria. O cientista é muito importante para o mundo, e sou adepto ferrenho das ciências, porém não posso deixar de concordar com Nietzsche, quando diz: “Uma segunda qualidade do cientista é a perspicácia para com as coisas próximas, unida a uma forte miopia para o que é distante e geral. Seu campo de visão é geralmente muito restrito e tem necessidade de aproximar o objeto de seus olhos, até tocá-lo. Se quer passar de um ponto já estudado a outro, dirige para esse novo objeto seu aparelho visual inteiro e decompõe a imagem em fragmentos mínimos. (...) Se, por exemplo, se tratar de julgar um escrito, como é incapaz de abrangê-lo em seu todo, ele o julga de acordo com alguns fragmentos, algumas frases ou alguns erros. Seria tentado a afirmar que um quadro é um amontoado incoerente de manchas coloridas.”
Os cientistas que se formam nas universidades são como seres humanos deficientes: Têm um órgão, seja o olho, a língua ou a mão, hipertrofiado, de excelente utilidade, enquanto o restante do corpo é atrofiado, quase inútil. Assim se dá a formação do cientista: de modo a torná-lo um sábio em uma determinada área e um tolo nos demais conhecimentos que compõem a universalidade da cultura humana.
O cientista será incentivado a ler publicações especializadas, a frequentar fóruns e cursos especializados, a atualizar-se em sua área especializada. A especialização determina cada vez mais as práticas, essas cada vez menos abrangentes e mais isoladas do contexto maior. O cientista que haja assim até pode dizer: sim, de fato é assim, porém estou contribuindo, na minha área, para o bem da humanidade. De fato. Contudo, direi que há males que afligem a humanidade que não residem numa área específica, mas naquilo que há de universal, e que a pulverização do saber torna cada vez mais difícil diagnosticar.
E há ainda o fato de a maioria dos nossos universitários não estar se formando cientistas, mas técnicos. E seguem a mesma rotina do cientista, com leituras, cursos e simpósios específicos de sua carreira. Estes sequer podem dizer que seus esforços levam à descoberta de algo substancial para a evolução da espécie, pois todo seu conhecimento volta-se apenas para sua melhoria financeira, para sua profissionalização.
Neste contexto, surge fora da universidade o gênio que enxerga na especialização, na profissionalização, um desvio de seu curso. Sua mente é um rio caudaloso, poderoso e destrutivo, e a especialização levá-lo-ia a um desvio represado, a transmutar seu raciocínio em um lago de águas paradas, controlado pela brisa dos financiamentos governamentais e contido pelas fixas margens da opinião pública, da orientação da faculdade e dos interesses comerciais.
Na universidade o novo não significa uma quebra do paradigma, mas um aprofundamento do velho para obtenção de maior lucro com maior segurança.
O filósofo não tem interesse no lucro e odeia a segurança. Não se aterá às publicações específicas ou sequer à leitura do jornal diário para compreender o mundo atual, pois sabe que o mundo atual é resultado dos mundos de ontem e anteontem, e muitas vezes inclusive do que se espera do de amanhã. Exercerá uma profissão apenas para ter a independência em suas pesquisas, sem o patrocínio do comércio ou do estado. Buscará um conhecimento de abrangência universal, não para tecer generalizações, mas por saber que tudo está interligado e é preciso compreender a junção de todas as cores para que se possa compreender e apreciar o quadro.
O filósofo sabe que na história, assim como são necessários cem acasos para conceber um destino, são precisos mil destinos para conceber um acaso. Este último acaso, porém, o seu acaso, traz em si um destino. Um destino para além de tudo que é convencional, inclusive sua própria vida.
Um verdadeiro filósofo, desses que surgem no nosso planeta um, no máximo dois a cada século, não terá compromissos outros que não seu compromisso pessoal com sua verdade e com a elevação do gênero humano. Nada teme, a não ser perecer antes de ver concluída sua obra. E sua obra é dinamite, pronta a implodir os alicerces de toda a verdade até então aceita, inclusive a verdade das classes, dos estados e das universidades.


Amâncio Siqueira

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