segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

De selvagens civilizações

Cena do filme Apocalypto, de Mel Gibson



“Nós, alemães, somos de ontem. Sem dúvida, de um século para cá progredimos bastante no caminho da civilização. Mas deverão passar ainda alguns séculos antes que todos os nossos compatriotas se impregnem de espírito e cultura, a ponto que deles possamos dizer: faz muito, muito tempo que eles foram bárbaros.”
Goethe

Bem e mal não dão em árvores. Conceitos abstratos são fruto da sociedade. Não há homens bons ou maus na natureza. Rousseau enganou-se a esse respeito, assim como Locke. A natureza desconhece bem e mal. O antílope não maldiz o diabo por cair na boca do leão, assim como este não bendiz a deus. Não há qualquer critério moral no que praticam. Nenhuma moral na sua história.
O homem nasce propenso a lutar por sua sobrevivência. Os indígenas sul-americanos praticavam rituais antropofágicos e consideravam natural o estupro das mulheres das tribos vencidas. Aborígenes da ilha de Páscoa devastaram a vegetação até a última árvore. Conceitos românticos não resistem a análises históricas, e já não cabe idealizar uma perfeição moral nas sociedades primitivas. O próprio cristianismo funda-se na ideia de um sacrifício humano-divino. Já não são aceitáveis sacrifícios para aplacar a fúria divina. Na verdade, na maioria das sociedades civilizadas sequer se tolera a fúria divina. Também deus evolui em seus preceitos morais, para que se perpetue a fé. As religiões vão-se tornando mais tolerantes, para que continuem sendo toleradas.
Inexiste o mal no estado natural simplesmente porque a sobrevivência do indivíduo e da espécie determina os imperativos categóricos (leis morais “universais”). Não por acaso Kant tributou tais imperativos à razão prática. É a pragmática que define o bom e o mau. Os conceitos morais evoluem no tempo, tornando-se mais e mais civilizados à medida que o ser humano afasta-se da natureza. Não no aspecto físico, mas social: uma sociedade que garante ao homem não necessitar diuturnamente lutar pela sobrevivência. A segurança permite ao indivíduo desenvolver seu senso de justiça e equidade. Até o ponto em que vislumbra a necessidade de proteger a natureza, que no passado era uma ameaça.
Nos países sul-americanos, temos dois problemas morais que não nos permitiram sair da “selva”: o pecado e o perdão. A frase “seja qualquer pecado que tenhas cometido, arrependendo-te, serás perdoado” é um sério empecilho para a evolução ética de nossa sociedade. O pecado é cometido contra deus, e apenas ele detém o poder de perdoar. Nessa falsa noção consiste nosso barbarismo europeu.
É necessário que compreendamos que a vítima de nossos crimes é o nosso próximo, e que a ele devemos pedir desculpas. Vivemos em sociedade, e em sociedade nos determinamos como sujeitos morais. Essa conscientização, contudo, é tarefa árdua, pois estão nossos compatriotas fechados para o espírito e a cultura, e toda evolução moral é precedida de uma evolução cultural.
Há em nossa sociedade uma tendência ao conhecimento enciclopédico de fatos banais. A futilidade domina todas as classes. Os jovens aprofundam-se nas tendências da moda da “rebeldia vazia” e em músicas e filmes sem conteúdo. Adultos masculinos são enciclopédias do futebol; femininas, das novelas e das vidas dos famosos.
Enquanto tal distorção permanecer e o debate de ideias for esvaziado pela separação da atriz da novela das seis, pelo tapa na cara da mocinha da novela das oito, pelo antidoping do jogador do time campeão ou pelo vestido curto da estudante, não encontraremos soluções para nossos verdadeiros problemas.
Nesse ritmo, passarão alguns milênios até que se possa dizer: há muito, muito tempo eles foram selvagens.


Amâncio Siqueira

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