terça-feira, 1 de dezembro de 2009

De criação e patrocínio ou independência e morte

Pintura: Delacroix - A Liberdade Guiando o Povo

“A primeira dessas potências é o egoísmo das classes dos comerciantes que têm necessidade da ajuda da cultura e desejam ajudá-la em troca, mas naturalmente também lhe prescrever fins e limites. (...) Formar o maior número possível de homens de um tipo corrente, no sentido que se usa para moeda corrente, esse seria o objetivo; e com esse ponto de vista uma nação seria tanto mais feliz quanto possuísse um maior número desses homens de modelo corrente. (...) Tem-se horror de toda espécie de cultura que torne o homem solitário, propondo-lhe fins superiores ao dinheiro e ao lucro, porque semelhante cultura exige muito tempo.”
Nietzsche, in Schopenhauer como educador

Ainda não havia os grandes conglomerados econômicos, as gigantes multinacionais. O ciclo do petróleo apenas assinalava seu início. Nietzsche, com sua argúcia, ao analisar os métodos de fomento à cultura que seguiam ainda um modelo de mecenato corrente desde o renascimento, anteviu, porém, como o “egoísmo das classes comerciantes” cercearia a independência da produção cultural nos anos vindouros. Enquanto o modelo de patrocínio aristocrático incentivava a elevação do indivíduo pela cultura, o modelo burguês determinaria que a cultura tivesse dois únicos objetivos: distrair as classes baixas e expandir as possibilidades de lucro.
A cultura de massas, rigorosamente controlada por grandes empresas midiáticas patrocinadas pelos conglomerados econômicos, não pretende que um único indivíduo torne-se superior, que em sua solidão indague-se sobre os valores da sociedade em que está inserido e na sua independência desafie o status de ditadura de mercado em que vive. Em verdade, a solidão é bombardeada como um mal, algo a se combater. Os indivíduos são levados a crer que não relacionar-se virtualmente com milhões de indivíduos tornados moeda corrente é o caminho para o esquecimento e para a depressão. Só há cultura se o indivíduo pulveriza sua personalidade entre bebidas alcoólicas em lugares barulhentos. Quem não se despersonaliza para seguir a moda é excluído, pois a diferença, perigosa para os interesses econômicos, recebe a pecha de perigosa também para a sociedade.
Empresas gestam e procriam a ideia de que seus interesses são os interesses da nação. E já não é o público que determina que bens consumir, pois ninguém pode comprar um livro que não chega às livrarias ou um cd que não é reproduzido.
Outro aspecto dessa arte patrocinada é o esvaziamento da reflexão da realidade. Quanto mais distante da realidade, quanto menos reflexiva, mais a produção cultural tem chances de ser patrocinada e difundida. Se não puderem ser megaproduções estrangeiras, ao menos que sejam músicas com muita luz, muito erotismo e barulho, para que ninguém tenha espaço para pensar.
Os poderosos do mundo econômico derrubaram as monarquias para tomar seus lugares, e os artistas tornaram-se menos que bobos, pois já não podem, mesmo que humoristicamente, criticar seus patrões.
Aldous Huxley, na obra Admirável Mundo Novo, previu uma sociedade controlada, na qual os dissidentes seriam isolados em ilhas. A cultura já se encontra neste ambiente de controle, visto que artistas independentes são relegados a ilhas dentro do continente, a bolsões de cultura, fora dos quais não possuem qualquer visibilidade. O isolamento não se determina pela qualidade da obra, mas pelo conteúdo discursivo. Ou o artista esvazia seu discurso, ou sua obra não ganhará abrangência. O artista que quer aprofundar seu tema corre o risco do desaparecimento.
O que a sociedade ainda não percebeu e talvez só o perceba quando já for muito tarde é que este modelo pode disseminar-se para todos os âmbitos da vida social. Quando um profissional discordar das práticas de mercado de determinado segmento, poderá ser preterido por todas as empresas deste segmento, pois pertencerão todas a um único cartel global. Pode haver concorrência dentro das práticas, mas as práticas tendem a homogeneizar-se. Os interesses serão sempre os mesmos: a ditadura de um modelo de consumo sem a perigosa individualização. A moda da massificação, de seres padronizados, coletivizados.
Já não cabe ao artista falar de independência ou morte, pois, a não ser que encontre um emprego para sustentar-se e tornar-se mecenas de sua própria obra, ser independente significará de fato a sua morte. A menos que consiga viver de donativos de piedosos burgueses.

Amâncio Siqueira

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