domingo, 18 de outubro de 2009

Mais um trecho do romance Caim, de Saramago


Sucedeu então algo até hoje inexplicado. O fumo da carne oferecida por abel subiu a direito até desaparecer no espaço infinito, sinal de que o senhor aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos vegetais de caim, cultivados com um amor pelo menos igual, não foi longe, dispersou-se logo ali, a pouca altura do solo, o que significava que o senhor o rejeitava sem qualquer contemplação. Inquieto, perplexo, caim propôs a abel que trocassem de lugar, podia ser que houvesse ali uma corrente de ar que fosse a causa do distúrbio, e assim fizeram, mas o resultado foi o mesmo. Estava claro, o senhor desdenhava caim. Foi então que o verdadeiro carácter de abel veio ao de cima. Em lugar de se compadecer do desgosto do irmão e consolá-lo, escarneceu dele, e, como se isto ainda fosse pouco, desatou a enaltecer a sua própria pessoa, proclamando-se, perante o atónito e desconcertado caim, como um favorito do senhor, como um eleito de deus. (...) A cena repetiu-se, invariável, durante uma semana, sempre um fumo que subia, sempre um fumo que podia tocar-se com a mal e logo se desfazia no ar. E sempre a falta de piedade de abel, os dichotes de abel, o desprezo de abel. Um dia caim pediu ao irmão que o acompanhasse a um vale próximo onde era voz corrente que se acoitava uma raposa e ali, com as suas próprias mãos, o matou a golpes de uma queixada de jumento que havia escondido antes num silvado, portanto com aleivosa premeditação. Foi nesse exacto momento, isto é, atrasada em relação aos acontecimentos, que a voz do senhor soou, e não só soou ela como apareceu ele. (...) Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-te a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado, Esse discurso é sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus, todos os dias diria Abençoados sejam os que escolheram a sedição porque deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo o caso nunca maior que o teu, que permitiste que abel morresse, Tu é que o mataste, Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi dada por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal pagará por isso, Tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica a vigiar o guarda, disse caim, E esse sangue reclama vingança, insistiu deus, Se é assim, vingar-te-ás ao mesmo tempo de uma morte real e de outra que não chegou a haver, Explica-te, Não gostarás do que vais ouvir, Que isso não te importe, fala, É simples, matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por sua causa.
(...)
Este nosso relato, embora não tendo nada de histórico, demonstra a que ponto estavam equivocados ou eram mal-intencionados os ditos historiadores, caim existiu mesmo, fez um filho à mulher de noah, e agora tem um problema para resolver, como informar lilith de que é seu desejo partir. Confiava que a condenação ditada pelo senhor, Andarás errante e perdido pelo mundo, pudesse convencê-la a aceitar a sua decisão de ir-se. Afinal, foi menos difícil do que esperava, talvez também porque essa criança, formada por não mais que um punhado de células titubeantes, exprimisse já um querer e uma vontade, o primeiro efeito dos quais tivesse sido a reduzir a louca paixão dos pais a um vulgar episódio de cama a que, como já sabemos, a história oficial nem sequer irá dedicar uma linha. Caim pediu a lilith um jumento e ela deu ordens para que lhe fosse entregue o melhor, o mais dócil, o mais robusto que houvesse nas estrebarias do palácio. E nisto se estava quando correu pela cidade a notícia de que o escravo traidor e seus comparsas haviam sido descobertos e presos. Felizmente para as pessoas sensíveis, dessas que sempre apartam os olhos dos espetáculos incômodos, sejam eles de que natureza forem, não houve interrogatórios nem torturas, o que talvez se tivesse devido à gravidez de lilith, pois, segundo a opinião de abalizadas autoridades locais, poderiam ser de mau agouro para o futuro da criança em gestação, não só o sangue que inevitavelmente se derramaria, mas também os desabalados gritos dos torturados. Disseram essas autoridades, que os bebês, dentro das barrigas das mães, ouvem tudo quanto se passa cá fora. O resultado foi uma sóbria execução por enforcamento perante toda a população da cidade, como um aviso, Atenção, isto é o mínimo que vos pode suceder a todos.

José Saramago

Nenhum comentário: