sábado, 17 de outubro de 2009

De platonismo e modernidades

Raffaello Sanzio (1483-1520) Scuola di Atene(1509-1510) Stanza della Segnatura (Vaticano)


“A temperança é uma regulação e domínio de prazeres e desejos. É o que está implicado, de maneira curiosa, na frase “ser senhor de si mesmo” (...)

Significa ela, segundo creio, que na alma do mesmo homem existe algo que é melhor e algo que é pior; diz-se que o “homem é senhor de si mesmo”, o que constitui um encômio. Porém, quando o por educação defeituosa ou em resultado de más companhias o melhor leva desvantagem e é sobrepujado pela força numérica do pior, isto se censura como opróbrio e diz-se do homem em tais condições que é escravo de si mesmo e de um intemperante.”

Platão – A República, livro IV

Platão (428 a. C. – 347 a. C.) nasceu e viveu em Atenas, na época em que esta cidade-estado vivia seu apogeu político, sendo a principal cidade do mundo helênico e, consequentemente, do mundo. Discípulo de Sócrates, fundou a Academia, escola que via o conhecimento como algo vivo e dinâmico, e não como um conjunto de doutrinas que deveriam ser meramente transmitidas (uma das diversas ambiguidades em Platão, que desenvolveu várias doutrinas nos campos da filosofia e da moral e era partidário da teoria Inatista, de acordo com a qual o homem já nasceria bom ou mau e com a razão e o conhecimento da verdade, que a filosofia apenas auxiliaria a relembrar, como um parto da razão, como diria Sócrates).

Defendia uma profunda e imutável hierarquia nas esferas moral e política. A justiça seria o domínio da inteligência sobre os instintos, interesses e paixões, tanto do indivíduo quanto da sociedade, tendo aqueles que adquirissem este domínio o direito de comandar a Pólis (seria um governo dos filósofos). Para justificar tal estrutura social, criou o mito da composição dos homens, segundo o qual os homens mais nobres seriam compostos pelos deuses com os mais nobres metais. Tal mito seria a prova de que os deuses defenderiam a estrutura por ele definida. As descrições desta sociedade nos aparecem belas no seu livro A República. Não podemos nos esquecer, entretanto, que muitas de suas ideias baseavam-se na constituição de Esparta e deram origem aos modernos estados absolutistas e justificaram as monarquias, tiranias e ditaduras ocidentais e a dominação do pensamento pela igreja (Santo Agostinho adaptou o platonismo para a doutrina cristã) e do pensamento da igreja (em verdade, das suas doutrinas estáticas) sobre as ciências e artes do mundo europeu ao longo de mais de mil anos. O predomínio da idéia sobre o mundo físico justificava o bloqueio dos experimentos científicos. Vários pensadores continuaram estudando o tal mundo das ideias eternas mesmo após o Iluminismo, como Kant e Hegel.

Outros, mesmo defendendo a evolução das ciências, não conseguiram fugir do racionalismo tão platônico, como Comte e Voltaire.

Foram muitos os filósofos que condenaram a primazia do mundo das ideias sobre o mundo real, desde Aristóteles, que disse “Sou amigo de Platão, mas amo a verdade”, até Nietzsche, que defendia a transvaloração dos valores e condenava a escolha de Apolo ao invés de Dioníso como patrono da filosofia ("As características que foram dadas ao ‘Ser verdadeiro’ das coisas são características do não-Ser, do Nada. Construiu-se o ‘mundo verdadeiro’ a partir da contradição com o mundo efetivo: de fato, o mundo verdadeiro é um mundo aparente, à medida que não passa de uma ilusão ótica de ordem moral"), e Marx, que teorizou serem as ideias simples ideologias para manter as condições materiais, essas sim dominantes e determinantes do intelecto. Somente Freud, porém, mais de dois mil anos após a fundação da Academia, demonstrou definitivamente que o domínio da razão pregado por Platão seria impossível, dado o fato psicanalítico de que o inconsciente, com suas pulsões e paixões, pode muito mais que a nossa razão e o nosso intelecto, nossa vontade e nossa consciência.

Atualmente o pensamento de Platão em quase sua totalidade pode ser refutado, porém sua influência para o desenvolvimento da filosofia, da política, da moral e da educação, e a reminiscência e aplicabilidade de muitas de suas ideias tornam-no um nome eterno no âmbito da cultura universal e deixa-nos o inegável dever de lembrar seu nome como um pequeno tributo àquele que deixou a maior herança para os que vieram depois dele, seja como defensor de suas próprias ideias, seja como propagador das ideias socráticas.

E, numa época em que as academias estão na moda, uma Academia ao estilo da de Platão seria com certeza uma das ideias perfeitas e eternas que ele defendia.

Amâncio Siqueira


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