sexta-feira, 16 de outubro de 2009

De passados presentes e futuros passados

Mapa mundi em 1984, de acordo com o romance de George Orwell

“1984, de George Orwell, é a expressão de um sentimento, e é uma advertência. O sentimento que expressa é de quase desespero acerca do futuro do homem, e a advertência é que, a menos que o curso da história se altere, os homens no mundo inteiro perderão suas qualidades mais humanas, tornar-se-ão autômatos sem alma, e nem sequer terão consciência disso.”
Erich Fromm

Na primeira metade do século XX o mundo passava por problemas antigos fermentados por novas tecnologias. Ao lado da crescente onda de totalitarismos que derrotava os ideais da Revolução Francesa, do ser humano gradualmente automatizado pela Revolução Industrial, surgia um terror cada vez mais crescente: a guerra. Ora, direis, a guerra existe desde que o homo sapiens se viu frente a frente com o neandertal. Não posso discordar. Contudo, a guerra ganhava contornos mais aterradores, visto que a fotografia, o cinema e o rádio traziam os mortos para o interior dos lares. À medida que as guerras se globalizavam, em especial com duas guerras mundiais, as tecnologias bélicas se massificavam. O fenômeno das massas é específico das tecnologias do século XX. Massifica-se a morte, o trabalho, a opinião.
É neste contexto que se inserem as distopias artísticas, nas artes plásticas, no cinema e na literatura. Neste último campo destacam-se Admirável Mundo Novo, de Huxley, e 1984, de Orwell. Como este último, em meu entender, adequa-se mais aos nossos tempos, vou abordá-lo neste espaço. O romance do autor indiano mostra um futuro no qual até mesmo a geografia ganha novos contornos, com a unificação não em blocos de países, como a atual união européia, mas de continentes inteiros sob uma única e rígida ditadura central. É neste contexto que vemos o Grande Irmão (Big Brother): um governante onipresente, onipotente e onisciente. Que tudo sabe por que todos o sabem. Sabem e temem. É incrível o fato desta narrativa que hiper-aludia aos regimes comunistas da época, em especial o stalinismo, aplicar-se perfeitamente ao capitalismo informatizado. Numa época em que os indivíduos se massificam na ânsia de aparecer, com sites de relacionamento, twittes e blogues espalhando-se como a gripe espanhola na época em que o romance foi escrito, todos parecem desejar um pouco da atenção do Big Brother. Atingimos no início do século XXI a massificação das individualidades.
Como o espaço é curto, lembrarei apenas um fato não muito destacado e até mesmo esquecido da obra: a importância da linguagem para o domínio dos indivíduos. No romance, o governo publica periodicamente novos dicionários, com cada vez menos palavras, para frear qualquer criatividade linguística, ou seja, qualquer pensamento dissonante da opinião oficial. Quando faltam as palavras, falta o pensamento. As massas podem ser controladas, pois já não possuem opinião. Impossível não pensar em nosso tempo: há pouco mais de cem anos, os romances de Machado de Assis e José de Alencar eram publicados em forma de folhetins nos jornais diários. Eram uma leitura popular. Hoje, praticamente nenhum estudante do ensino médio consegue compreendê-los sem auxílio de um dicionário e de uma versão resumida. Em tempos de funks, forrós e sertanejos com cada vez menos conteúdo, as pessoas conhecem menos palavras e não percebem que a perda do vocabulário é a perda de sua identidade.
O próprio título do mais popular "show de realidade" mundial alude a esta obra, e com certeza este Big Brother contribui fortemente para a perda da identidade dos indivíduos inseridos nas massas progressivamente homogeneizadas.
Há que individualizar-se. Há que se discutir, que se repensar. Ou nos tornaremos todos animais de rebanho, prontos a repetir que dois e dois são cinco, desde que assim diga o Grande Irmão. Como em verdade já tem ocorrido.

Amâncio Siqueira

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