quinta-feira, 8 de outubro de 2009

De “Panis et Circenses” e cultura de massas



"Feliz, pelo contrário, feliz do autor que compõe sob meus auspícios! Não conhece dor nem trabalho, escreve tudo quanto lhe passa pela cabeça, imprime todos os sonhos da sua imaginação esquentada; jamais apaga, jamais corrige, persuadido de que, quanto mais extravagantes as asneiras escritas, tanto maior o número de admiradores, loucos e ignorantes que se extasiarão com a sua obra. Que lhe importa que o reduzido número dos que sabem leia as suas asneiras e as despreze? Os assobios de dois ou três indivíduos sensatos não serão sufocados pelo estrondoso clamor dos incontáveis aplausos que de todas as partes ele recebe?”

Erasmo de Roterdã – Elogio da Loucura

O texto de Erasmo mostra que o conflito entre a qualidade dos bens culturais e a cultura de massas é tão antigo quanto a imprensa. Não é ainda mais antigo porque uma cultura de massas tem que ter meios de divulgação em massa de bens culturais para estabelecer-se. Apesar do reduzido número de pessoas alfabetizadas, a mídia em larga escala mais antiga é a do livro impresso. Que em muitos casos é um livro expresso, como atesta o pensador holandês. Infelizmente, assim como ocorreu com esta mídia, as demais que a sucederam seguiram o mesmo caminho: retirar dos seus segmentos o caráter de obra de arte para massificar a comercialização dos seus produtos. Reduziu-se a qualidade da música quando ela deixou os salões para entrar nas salas comuns por meio do gramofone, e continuou reduzindo à medida que reduzia o meio de gravação e aumentava seu alcance, até chegarmos aos MPs. As artes cênicas perderam grande parte de sua profundidade à medida que se massificavam o cinema e a televisão. A mensagem que nos passam é a de que, quanto mais profunda a cultura, quanto maior o seu caráter artístico, menor será seu apelo ao público. Questionemos esta posição.

É o público que determina a cultura ou a cultura que determina o público? Verifiquemos alguns exemplos de artistas populares mundo afora desde o Renascimento. Shakespeare foi o mais popular autor teatral da Inglaterra do século dezessete. Suas peças eram o deleite do povo, que compreendia seu vocabulário e suas tramas. Goethe foi muito popular na Alemanha do século dezoito e início do dezenove. Vitor Hugo foi um herói nacional na França do século dezenove. Os folhetins publicados diariamente por Machado de Assis no fim do mesmo século eram peça importante dos jornais diários. Em todos os casos citados, as massas que tinham acesso às obras compreendiam-nas e as apreciavam. Todos os autores citados buscaram aperfeiçoar suas técnicas, aprofundar suas obras. Buscaram alcançar a excelência artística.

Daí depreendemos que quem determina a política cultural não é a massa, mas os produtores culturais e os próprios artistas. Ambos têm dado uma incorreta interpretação, mais por conveniência que por boa vontade, à frase “Todo artista tem que ir aonde o povo está”, da canção “Nos bailes da vida”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. A interpretação que tem norteado a cultura é a de que devemos emburrecer a cultura porque o povo é burro e não entenderá obras de arte. É deprimente ver produtores de televisão dizendo que produzem programas idiotas porque as pessoas não entenderiam se fizessem coisas inteligentes.

O escritor que defende a simplificação da linguagem está dizendo aos seus leitores: eu posso escrever bem, porém simplifico minha linguagem para que vocês compreendam. O leitor que segue esse tipo de “escritor” aprova esse argumento e assina seu atestado de burrice.

Ocorre que as pessoas não podem definir do que gostam quando não possuem oportunidade para isso. Se as rádios passam apenas forró estilizado e música sertaneja e o público nunca ouve música erudita, rock ou MPB, a escolha do gênero musical preferido do público é de fato do público, ou das grandes gravadoras? Quando todos os filmes e novelas são iguais, como saber se eu gostaria de algo diferente? A verdade é que a política de nivelar-se por baixo é muito conveniente para a indústria do entretenimento. Se a média dos compositores preferidos do público fosse do nível de Djavan, Belchior ou Caetano Veloso, a gravadora que detivesse o contrato do compositor teria que buscar mantê-lo, com medo da concorrência, pois não se encontraria outro músico da mesma qualidade tão fácil. Na média atual, em qualquer esquina se encontra novos “compositores”. Ou alguém acha difícil “escrever” sucessos como “eguinha pocotó” e “água mineral”?

O extremo desta interpretação é a posição do humorista Falcão, que diz escrever músicas idiotas e de péssima qualidade “porque o brasileiro gosta de merda”. O brasileiro está condicionado a gostar de merda. A política do emburrecimento nos acompanha desde a colonização. Desde nossa infância como país e como pessoas. O fato é que existem poderes interessados no esvaziamento do debate de ideias. No barateamento do artista. Na homogeneização dos produtos culturais. Quando o artista aceita a regra da igualdade, como poderão as coisas ser diferentes?

Deixo aqui meu apelo ao artista verdadeiro: não abdique de sua obra de arte por exigência do mercado. Não se diminua ao diminuir a profundidade e a qualidade de sua obra. Oponha-se à política cultural vigente. As pessoas são capazes e inteligentes e merecem o prazer do acesso a verdadeiras obras de arte.

Não transforme sua obra-prima num produto descartável.

Amâncio Siqueira

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