quarta-feira, 21 de outubro de 2009

De processos, excessos e retrocessos II

Ilustração de Baiano

”A revolução ecumênica, embora aparentemente fascinante, tem-se demonstrado apenas como um outro Cavalo de Tróia, através do qual o poder católico, vestido de trajes contemporâneos, continua a deixar claro que a Igreja está mais ativa do que nunca. Os exemplos chocantes do terrorismo católico contemporâneo, ocorridos em Malta e no Vietnã, muitos dos quais tiveram lugar durante o ofício do “bondoso e velho Papa João XXIII” e, de fato, sob o pontificado de Paulo VI, dispensam qualquer elucidação. Eles são as provas mais condenatórias de que a Igreja Católica, apesar de sua alegada liberalização, fraternização e atualização, basicamente não mudou sequer um til.”

Avro Manhattan, Introdução ao livro O Holocausto do Vaticano

O escritor pernambucano Raimundo Carrero fez uma crítica a José Saramago, não do ponto de vista literário, mas religioso, devido às suas recentes declarações contra o papa atual e ao lançamento do livro Caim. Seguem algumas de suas palavras:

(Rebatendo a seguinte declaração do português: “A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana. É um livro sem o qual os seres humanos seriam provavelmente melhores”) “O antigo Testamento conta a queda do homem após o pecado, então, não havia como revelar bons costumes. A segunda parte, que narra a presença de Cristo entre nós, refere-se à redenção do homem, quando ele renasce e vai para a luz.” .

“Ele ainda pensa de acordo com o programa do partido comunista da primeira metade do século 20, motivado por uma leitura equivocada de Nietzsche. A partir dos anos 1960 e 1970, o próprio partido reviu sua posição, depois que a igreja o fez ver que Jesus também tinha um lado humano, que o colocava ao lado dos oprimidos, dimensão claramente expressa na Teologia da Libertação. Saramago perdeu o bonde da história e não conseguiu evoluir.”

Como a crítica é no campo pessoal, ater-me-ei a esta esfera, deixando de lado a crítica literária ao romance.

As palavras grifadas de Carrero servem muito bem para a igreja, que elegeu um papa ligado ao fascismo e à Inquisição, que tem cometido, ao demonstrar seu pensamento íntimo, terríveis “gafes” contra os seguidores de outros credos.

É fato importante contextualizar que essa história de antigo testamento falar da queda e o novo da redenção é um tremendo descarrilamento do bonde da história. O antigo testamento foi escrito no século VII a.C. para justificar o domínio do reino de Judá sobre os vizinhos através de um mal-ajambrado pacto com um Deus que em geral só aparecia como autor das grandes tragédias que assolavam a região. O fato de os religiosos aconselharem a leitura de outros textos bíblicos que não os citados por Saramago mostra o quanto os mesmos são perigosos para a fé em um Deus que é Amor e mesmo assim teria ordenado o rei Davi a escolher entre “três anos de fome na sua terra, três meses fugindo de seus inimigos ou três dias de peste em Israel” pelo terrível pecado de mobilizar o “IBGE” para recensear o seu povo. Isto é um exemplo de como os escritores bíblicos tratavam as tragédias mundanas como vingança divina. O deus bíblico é vaidoso, invejoso e perverso, e no novo testamento não é diferente. Essa história de matar o próprio filho para perdoar a humanidade é de extrema ilogicidade. Se um cara pode criar um universo, pode perdoar quem desejar sem precisar matar ninguém. A depender das igrejas, hoje a medicina ainda estaria tratando pragas como ira divina e doenças como demônios possuindo gente. E é isso o que Saramago denuncia.

Os religiosos, sabendo que a Bíblia é o único livro que dá algum testemunho da existência de deus, pregam sua veracidade e a fé no livro como escritura saída da própria caneta do mestre do universo, contudo escondem tais passagens sob o tapete da ignorância e hipocrisia. Não querem encarar de frente as contradições e inexatidões dos textos nem as injustiças que os mesmos inspiraram ao longo da história. E, por falta de ideias racionais, não rebatem os argumentos que os desmascaram, mas tentam desabonar os argumentadores.

Carrero foi bem mais respeitoso que outros defensores do judaico-cristianismo, porém devemos lembrar que Saramago ataca não pessoas em particular, mas a religião, e tem recebido em troca ataques pessoais.

Em relação ao argumento de Saramago pretensamente rebatido, os maus costumes e crueldade que o português refere não são apenas humanos, mas também atribuídos ao senhor do universo. No mais, permanece a tradição religiosa de condenar os contrários por blasfêmia e buscar excluí-los, o invés de convencer por meio da lógica. Acusar alguém de comunista (que não é nenhum crime) para deturpar seu argumento é uma contra-argumentação do século vinte, não do vinte-e-um.

Chamar alguém de ultrapassado em defesa da igreja católica é ridículo.

Tomemos todos o bonde da história e busquemos o debate de ideias, não as rixas pessoais e a intolerância.

E que todos tenham direito a conhecer os múltiplos lados das questões antes de posicionarem-se. Fecho com um argumento comum em adesivos e incomum na realidade: Leia a Bíblia. Não deixe que a leiam para você. Aí sim você saberá o que está defendendo.

Amâncio Siqueira



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