sexta-feira, 2 de outubro de 2009

De Cronos e de Crocodilos



“Matamos o tempo, ele nos enterra.”

Machado de Assis

Dentre todas as representações do tempo criadas pelo homem nas mais diversas sociedades e épocas, a que mais gosto é a grega: o deus do tempo é Cronos, que devora seus próprios filhos. Sim, o tempo é devorador de todos aqueles que nasceram dele (ou nele, se o considerarmos como a quarta dimensão). Mas, de todos os seus filhos, os humanos somos os únicos que passamos de geração para geração o lembrete fatal: “Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris.” Por mais bela que seja a jornada, voltaremos ao pó. E mesmo nossa lembrança não passará de cinzas. É a partir da constatação do inevitável que o ser humano cria o sonho da vida eterna. Produz meios cada vez mais sofisticados para preservar a memória, ou minimizar o esquecimento, pelo menos. E o próprio algoz serve, na arte, a este propósito.

O espaço é pouco, então deixarei para outra ocasião o eterno retorno de Nietzsche e as teorias mais científicas e filosóficas, e abordarei apenas algumas obras que tratam o tempo como um cenário ou mesmo como personagem principal. O tempo foi uma inspiração para Aldous Huxley, seja como uma projeção para o futuro, como em “Admirável mundo novo”, seja na narrativa não linear, confusa e poética como a memória que desvanece em “Sem olhos em Gaza”. Em ambas, Huxley mostra a crueldade do tempo, que em círculos nos leva a repetir como novos os mesmos feitos de nossos antepassados. No frenesi de mudar o futuro nossos instintos recriam o passado de violência que nos trouxe até aqui. Orlando, de Virgínia Wolf, trata de nosso sonho íntimo de vida longeva, narrando os 350 anos da vida de Orlando, um jovem que depois se torna mulher. Talvez um sonho que pudesse virar pesadelo, diante das mudanças e das perdas pelas quais passaríamos. Viveríamos o suficiente para perdermos nossa própria identidade, ou finalmente nos encontraríamos? Em Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez, um século de vida latino-americana, simbolizada pela família Buendía, mostra-nos quão relativo é o tempo, e quão solitários somos, pois é de nossa essência que apenas nós vivamos nosso tempo. Nos filmes de Iñarritú (Amores Brutos, 21 Gramas e Babel) vemos a desconstrução do tempo como unidade lógica. Pode o futuro anteceder o passado, ou mesmo recriá-lo? Quantos blocos de acasos são necessários para construir um destino? Por fim, um sucesso mundial no momento, a série de TV Lost (perdidos, em bom português). Muitos procuram o personagem principal, ou afirmam categoricamente que não há um. Há um personagem principal, o bom e velho Cronos. Sim, desde o princípio o personagem principal é o tempo, seja em excesso ou em falta. Flashbacks, flashforwards, efeito Casimir e viagens no tempo, tudo para nos apresentar o golpe fatal: a vida é uma peça sem ensaio. O que aconteceu, aconteceu.

E chegamos ao teatro. Toda nossa vida é uma encenação da peça Peter Pan, de Sir James Matthew Barrie. Na juventude nos imaginamos como Peter Pan, lutando bravamente contra o tempo, negando-nos ao crescimento que significa o encontro do destino final, buscando um lugar fora do tempo, uma Terra do Nunca; porém por fim nos apercebemos que somos todos capitães gancho, fugindo covardemente do crocodilo Tic Tac. Que há de devorar-nos mais vorazmente que o próprio Cronos.

Amâncio Siqueira

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