segunda-feira, 15 de março de 2010

O verdadeiro São Pecador


Há pouco mais de um ano, o meu amigo Amâncio Siqueira disse-me que, pesquisando seu nome na internete, havia encontrado um romance de um escritor espanhol de mesmo nome. Curioso, havia procurado o referido livro e conseguido uma cópia, a qual havia apreciado e queria que eu lesse. Tomei o livro e, com exceção do interesse pela coincidência, não fiquei muito empolgado. É que não sou tão interessado por história quanto meu amigo, e tratava-se de um livro sobre o século II.
Porém isso mudou quando, após alguns meses, passei a folheá-lo aleatoriamente e encontrei passagens extremamente profundas.
Comecei a lê-lo e encontrei uma introdução de Eugênia de Sant'Anna, na qual revelava-se que Amâncio Siqueira não era o autor, mas apenas o pseudônimo do Frei Luiz Vaz Quevedo, que havia encontrado manuscritos em aramaico datados do século IV e adaptara-os para o espanhol. A própria Sant'Anna havia traduzido a versão em espanhol para o português, acrescendo-lhe notas explicativas. Quevedo havia criado o pseudônimo para evitar ser identificado e perseguido pela igreja e pelo regime franquista, responsável pela morte de Lorca, entre tantos outros.
Entre os manuscritos adaptados, um evangelho apócrifo de Jesus e textos esparsos sobre a vida de Tiago de Ariman, importante personagem de seu tempo.
Li o livro em dois dias, de um só impulso, e fiquei de fato muito impressionado. Conheço vários autores clássicos, porém ali estavam questões tão atuais, palavras que me diziam tudo o que sempre veio em meu íntimo sem que soubesse colocar na tela do computador.
Tive que reler o livro, porém de forma mais pausada. E posso dizer que descobri o truque.
Sim, Siqueira conseguiu enganar-me por algum tempo, o que é um grande mérito. Se não conhecesse seus outros escritos e seu estilo, com certeza ainda não saberia da verdadeira autoria do Evangelho de São Pecador. Uma das grandes jogadas foi a mudança de estilo, aproximando-se muito do da época. Ao contrário de livros como Ivanhoé e O Nome da Rosa, nos quais seus autores também utilizaram a história do manuscrito anônimo, Siqueira alterou totalmente seu estilo. E por um lado não teria sido difícil: o livro se passa em tempo e local muito próximos das narrativas bíblicas. Profundo conhecedor da Bíblia, não foi difícil lançar mão de concordância e vocabulário bíblicos, alcançando grande verossimilhança.
Disse por um lado, pois pelo outro ele acabou por se denunciar. É muito difícil para um escritor escrever tão mal quanto os escribas de deus, e ele não conseguiu fazê-lo em todo o texto. Há períodos inteiros em que se percebe o escritor moderno, as construções firmes, a palavra exata, a poesia lançada sobre a frase. O questionamento da literatura, a busca pela arte. E isso é ótimo. É exatamente aí que reside a excelência do conteúdo do romance, que de outro modo teria valor apenas extratextual.
Outro fato a se destacar: os personagens. Nos nomes dos personagens há o desejo do verdadeiro autor de denunciar-se, de mostrar que há alegoria no seu texto, um significar além do que vai aos nossos olhos. Shiva, Ahmenops, Helena Sofia. Índia, Egito e Grécia. Influências sobre o pensamento ocidental. Origens da filosofia. E Tiago de Ariman, um judeu de influências persas errante absorvendo tudo isso e gerando algo novo, engendrado no sangue de seu deus.
Entretanto, de fato não posso dizer que o Siqueira seja autor desse Evangelho, embora o seja. Não é o escritor que eu conheço nessas páginas; ao menos não inteiramente. Posso afirmar que o Amâncio Siqueira aqui é apenas um pseudônimo do verdadeiro escritor, o Frei Luiz Vaz Quevedo, um bem construído heterônimo do nosso Siqueira.
E a história desse heterônimo é outro ponto importante integrante do livro, que me ajudou a desvendar a verdade da sua autoria: o autor é espanhol, o que me levou de imediato aos jogos literários de Dom Quixote, de Cervantes (ou de Cervantes em Dom Quixote), e as diversas autorias dentro do romance espanhol.
Outro espelho quixotesco: essa busca por libertar-se de deus, esse moinho de vento transformado gigante pela nossa cultura.



Socó Pombo

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