terça-feira, 9 de março de 2010

De sincronia e fins de mundo

“Passa um homem com uma placa com os dizeres: ‘Arrependei-vos, pois o fim está próximo.’ Hagar pergunta-lhe: Como você entrou neste negócio? Ao que o homem responde: Herdei do meu avô.”
De uma tira de Hagar, criada por Dik Browne

Sincrônico significa “ao mesmo tempo.” A percepção sincrônica da história pode ser definida como a ausência de perspectiva temporal. A pessoa crê que seu tempo é o único, que sua realidade é a única, e não um evento em um processo lento de evolução. Tal percepção é comum na religião: os escritores da bíblia, por exemplo, não conheciam tamanduás, tatus, cangurus ou coalas, e por isso não os colocaram na arca de Noé. Ao mesmo tempo, conheciam o uso de camelos para cargas, comum no século VII a.C, e atribuíram a Abraão o uso de tais animais, que ainda não eram utilizados na época do patriarca. Exemplo singular de sincronismo histórico pode ser vislumbrado ainda nas artes, como os quadros de artistas da Idade Média de cenas bíblicas: guardas romanos usam armaduras medievais e personagens orientais e africanos europeízam-se, com pele, cabelo e olhos claros.Mas, se de um lado o sincronismo é interessante e até cômico, de outro tem uma faceta triste e trágica: aquele que não tem perspectiva de passado também não a tem de futuro. E lá se vai a dizer que “este mundo não tem mais jeito” ou “o fim está próximo”. Toda vez que passa o cometa Halley, um homem sem perspectiva de passado pensa que é a primeira vez que está passando, que é um símbolo do fim do mundo, e arregimenta outras pessoas igualmente sem perspectiva, num suicídio coletivo à espera do fim. As pessoas vêm uma nova gripe, que mata menos que a antiga, e dizem: “Estão vendo? Foi anunciado que haveria peste, fome e guerra antes do fim”. Como se não houvesse desde o começo.É evidente que os profetas tinham que dizer “eu vejo fome, guerras e peste”, afinal, era só o que viam. Seu tempo traduz-se como todos os tempos, e assim fazemos quando dizemos que era sobre nosso tempo que eles falavam. Como se eles não tivessem coisa mais importante para se preocupar. Você já parou para pensar que só há profetas de desgraças? Nunca vi profecias sobre a descoberta das Américas e da Oceania. Nem sobre viagens de avião, idas à Lua, internet ou telefone celular. O apocalipse, por exemplo, foi escrito na época da destruição de Jerusalém e do segundo templo. Para aquelas pessoas, era o fim do mundo. Sem perspectiva histórica, sem futuro. Sem TV ou computador no fim do horizonte.Se pararmos para pensar historicamente, perceberemos quanto estão errados os que dizem que as coisas estão cada vez pior. Há dois séculos, a expectativa de vida era de trinta anos. Hoje, passa dos setenta. As pessoas atualmente trabalham metade do tempo que então nossos antepassados trabalhavam, e têm direito a uma coisa que não existia: lazer. Dos avanços tecnológicos já falei. Dos da medicina, nem preciso falar. Uma peste bubônica matou pelo menos um terço da população européia na idade média. Hoje, praticamente ninguém morre desta doença. Há cem anos, só os ricos do sexo masculino votavam, e só para eles eram feitas as leis. Ainda têm suas regalias, mas houve avanços. E a perspectiva de quem compara as diversas eras é de melhora constante.Entretanto, se você ainda assim espera pelo fim do mundo, tenho que dizer-lhe que é uma opção sua, um direito seu; mas também me cabe advertir-lhe: tendo em vista que nossa espécie existe há cerca de um milhão de anos na Terra, e que desde tempos imemoriais esperam pelo fim do mundo, e fazendo umas contas cá no meu cérebro que não gosta muito de matemática, diria que, se o mundo um dia vier a acabar-se, a probabilidade de estarmos vivos para presenciar seu fim é de uma para cem bilhões. Pode não ser uma perspectiva muito boa para você, mas pra mim está ótimo.
Amâncio Siqueira/Socó Pombo

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