quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

De minorias e maioridades


“O heterismo é uma instituição social como outra qualquer e mantém a antiga liberdade sexual – em benefício dos homens. Na realidade, embora seja não apenas tolerado, mas praticado livremente, sobretudo pelas classes dominantes, é condenado em palavras. Essa reprovação, contudo, nunca se dirige contra os homens que o praticam e sim, somente, contra as mulheres, que são desprezadas e relegadas para que se proclame uma vez mais como lei fundamental da sociedade a supremacia absoluta do homem sobre o sexo feminino.”

Friedrich Engels

"Quem abre uma escola fecha uma prisão."

Victor Hugo

O homem branco, cristão, ocidental e heterossexual não é a maioria de fato, porém arrogou-se como maioria de direito. Um direito que subsistiu na forma escrita nos países mais atrasados até nossos dias, e ainda é consuetudinário mesmo nos países mais desenvolvidos. Desde o princípio da civilização (de fato, desde o fim da barbárie) a moral dessa classe particular se impôs como a moral correta para toda a família e para o Estado. Tal imposição se deu a ainda se dá através da propriedade. A posse dos bens materiais determina a propriedade da razão, da moral, da religião e do direito. Não é à toa que nosso direito pune com mais rigor os crimes contra a propriedade que os crimes contra a pessoa. É a propriedade que mantém o status quo, o poder do chefe de família, que abaliza o poder do Estado e da igreja.
Tal poder, a partir do domínio da burguesia sobre os meios de produção, passa aos poucos a ser menos evidente, mais enredado nas instituições que buscam a garantia dos direitos humanos e da igualdade entre os cidadãos. Igualdade, evidentemente, apenas ideológica. A ideologia burguesa da igualdade perante a lei, perfeitamente absorvido pela ideia do “sonho americano”, é um poderoso mecanismo de alienação histórico-econômica. Na verdade, a única igualdade que abrange a todos é a liberdade de sonhar. Tal liberdade está presente no cinema e na TV, principalmente, mas encontra forte aliado nos livros de auto-ajuda. Todos esses meios apresentam exceções como se regras fossem. Realizar os sonhos não encontra o mesmo respaldo da sociedade. Não há qualquer possibilidade de igualdade de condições. Não basta ao nosso personagem, o homem de família, deter em suas mãos os três poderes: têm também o quarto. Qualquer tentativa das maiorias de fato minorizadas pelo direito de alterar as estruturas sociais recebe no primeiro momento o enfrentamento dos pelotões de órgãos de mídia, com suas análises imparciais.
Tais órgãos abordam os temas sociais da mesma maneira que as religiões abordaram no passado: falam de sua preocupação com a paz e os fracos, para inserir em seguida o ponto de vista dos fortes, que coincidentemente é o melhor para a nação. São contra as superintendências de desenvolvimento regional, porque são propícias à corrupção. Contrários às reservas indígenas, por enfraquecerem a segurança nas fronteiras. Opostos aos programas sociais, pois geram dependência e são eleitoreiros. Inimigos do sistema de cotas nas universidades, que são segregacionistas. A agora são a favor da redução da maioridade penal.
Não lhes basta o nepotismo, o acesso a melhores escolas, as oportunidades gratuitas dos melhores empregos, a possibilidade de prisão especial e foros privilegiados, a maior proximidade com o poder e as facilidades de corrupção. Não é suficiente que detenham as maiores empresas, que financiam as campanhas de seus candidatos e mantêm a minoria da sociedade como maioria no congresso e nas câmaras e assembleias. Precisam dificultar o acesso dos mais pobres, endurecer as leis contra eles. É óbvio que seus argumentos são poderosos e bem construídos e, com sua ideologia escondendo os reais interesses, mesmo os que mais sofrem com as distorções sociais acabam concordando com suas opiniões.
Como mais uma vez o espaço é insuficiente, deter-me-ei no tema da maioridade penal. Os demais ficarão para outras ocasiões.
Como em todos os outros campos da atividade social, também no que tange aos menores o burguês tem a visão de que é mais fácil apagar o incêndio derrubando a floresta (George W. Bush fez isso literalmente nos Estados Unidos, e uma maneira similar foi praticada no governo FHC, quando, diante das denúncias de corrupção na SUDAM, ao invés de investigar-se e punir os culpados, extinguiu-se as superintendências). Assim tem sido a abordagem dos membros da classe dominante em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
Afirma-se que a maioridade aos dezoito leva o crime e alistar menores, por saber que sofrerão penas menores. Não abordarei, ainda pela falta de espaço, as naturezas e sistemas de penas. Porém devo abrir um parêntese: em muitos casos o menor terá uma privação de liberdade de três anos, superior à pena para a maioria dos delitos do nosso código penal. Dizer que não sofrem nada é mais uma distorção ideológica, com a qual pessoas distantes do sistema concordam, por não conhecerem a natureza concreta dos fatos.
Tal argumento é ainda absolutamente ilógico como desculpa para reduzir a idade limite para a maioridade: se a menoridade é motivo para arregimentar menores, deduz-se que, a cada redução da idade, reduzirá também a idade dos soldados do crime. Reduza-se para dez anos a maioridade, e teremos meninos de nove armados e praticando ilícitos, para que “não sofram nada”.
Por outro lado, tal argumento esconde seu real objetivo: como sempre, o burguês coloca a culpa do sofrimento naqueles que sofrem. A prostituta é degenerada, não importa se é o homem que financia sua profissão. O traficante é o culpado pela violência, mesmo que seja financiado pelo viciado da classe média. O menor é culpado pela sua condição de excluído, pois não presta, é por natureza ruim. Vejamos cruamente os números da violência: as maiores vítimas de homicídio são jovens entre 15 e 24 anos, do sexo masculino, de pele negra e residentes em periferias. Qual o solução para esse problema? Prendê-los cada vez mais cedo e por mais tempo. É lógico que ninguém pretende aumentar as penas para os crimes do colarinho branco, que prejudicam essas populações, desviando recursos que as auxiliariam para paraísos fiscais. Eles simplesmente são maus e merecem o castigo.
Comparar a nossa legislação com a de países desenvolvidos é em si uma idiossincrasia sem tamanho. Os países desenvolvidos punem crianças que tiveram todos os seus direitos essenciais respeitados, tiveram uma educação exemplar e um convívio social e familiar saudável, e mesmo assim praticaram violência, por uma falha de caráter que todo o bom tratamento não foi capaz de coibir. Nossa realidade é bem diferente, e mais uma vez a lei funcionaria apenas contra os pobres, exatamente aqueles que não possuem, em sua maioria, tais condições de desenvolver todo seu potencial intelectual e emocional.
Para concluir, gostaria de propor uma mudança de perspectiva interpretativa do ECA: por que, ao invés de discutir o descumprimento dos artigos sobre a maioridade penal, ou uma mudança na legislação, não se discute o estatuto como um todo? Ao invés de refletir apenas nesses artigos, façamos uma discussão ampla sobre os demais. Antes de condenar a lei, conheçamos o que ela diz.
E, principalmente, comecemos a aplicar a lei. Depois que a criança e o adolescente tiverem seus direitos plenamente respeitados, em especial no tocante à educação e à segurança familiar, poderemos verificar aqueles que de fato praticam crimes por desvio de personalidade e sociopatia e aqueles que o fazem por desvios da sociedade que os impelem a tais comportamentos.
Construamos mais escolas, não apenas como prédios, mas como ideias para uma nova educação social, e veremos muitos desses “maus elementos” deixarem suas prisões.

Amâncio Siqueira

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