segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

De língua e linguagens

Capa do livro Preconceito Linguístico

"O pai do purismo é o escritor Vaugelas (pronuncia-se vojlá). Ah, sim, desculpe a intimidade: Claude Favre, barão de Pérouges, senhor de Vaugelas (1585-1650)... Com esses títulos, evidentemente, ele só podia achar que a "boa linguagem" era a dos aristocratas. Ele escreveu, de fato, que o uso correto do francês devia se inspirar na língua falada pela "parte mais sadia da Corte". Então, não basta ser nobre, não basta ser aristocrata, é preciso ser mais nobre que a nobreza, mais aristocrata que a aristocracia... O espírito de Vaugelas se incorpora hoje em muitos paspalhos e sacanas que andam por aí atacando as "impurezas" do português brasileiro.”

Marcos Bagno

Uma das mais desconhecidas ciências da atualidade é a linguística. Muitos já ouviram falar dela, sem que, entretanto, deixem de lado as preconcepções e busquem saber o que ela tem a dizer. Alguns acham que tal ciência não merece essa classificação, e consideram que trata-se apenas de um pandemônio de indivíduos que não têm nada melhor para fazer que destruir a língua portuguesa. Outros acreditam que é apenas um estudo para simplificar a língua.
Primeiramente, o foco não é esse. Não se discute uma "simplificação da língua". A língua portuguesa, assim como qualquer outra, é simples, pois tem inúmeros usuários que a compreendem diariamente. A linguística, ao contrário da gramática, não busca impor uma linguagem correta, mas estudar os fenômenos inerentes à linguagem. Camões, por exemplo, utilizava vocábulos como frecha, ao invés de flecha, que se tornou o correto para os gramáticos.
Toda língua possui regras. O fato de alguém usar tu/você é, nós é, vocês é, eles é, é uma regra de conjugação verbal com pouca variação dos lexemas e morfemas, inclusive o inglês a adotou em sua norma culta (you are, we are, you are, they are). É uma regra de conjugação válida como qualquer outra. Você já viu alguém escrever uma frase assim: assim frase viu escrever gostaria alguém saber de só uma já você?
As regras estão implícitas na comunicação, a sintaxe é comum a todos os falantes, que sabem a que sujeito se refere o verbo e quais os complementos que os acompanham.Não se trata de simplificar nada, mas de compreender que todos os usos que se fazem, desde que a língua sirva ao fim de comunicar, são válidos. Nenhum linguista defende o fim das gramáticas, ou da norma “culta”. Nas palavras de Evanildo Bechara, grande linguista, gramático e acadêmico da ABL, trata-se de mostrar ao usuário a possibilidade de ser “poliglota em sua própria língua”.
O estudante deve compreender que, assim como o inglês não é mais correto que o latim, ou o italiano que o alemão, a norma padrão não é melhor ou pior que as variedades regionais ou sociais. Estudar a norma padrão é importante não porque é melhor, mas porque é o norte para o texto escrito, aquele que deve ser compreendido por todos os usuários. A forma escrita da língua varia menos que a oral e tem menos regras, para que qualquer leitor possa compreender o que está no papel (ou na tela), enquanto na linguagem oral há muito de interatividade entre os falantes, que não se compreendem apenas pelas palavras, mas pela entonação, sinais faciais ou manuais et cetera.
Por fim, não se confunda língua portuguesa com norma culta, que é apenas uma das suas milhares de modalidades.
O que a linguística faz em relação à gramática é o mesmo que a psicanálise fez em relação à moralidade: deixou de lado o normatismo e a exigência de rígidos padrões e passou a estudar cientificamente os mecanismos internos, sem preconceitos. Os moralistas continuam considerando a paixão do filho pela mãe e da filha pelo pai como algo abominável, que sequer deve ser citado. A psicanálise sabe que tais fenômenos são comuns, os nomeia como Complexo de Édipo e Complexo de Electra e estuda como funcionam.
Sugiro a leitura de Preconceito Linguístico, de Marcos Bagno. Você terá uma visão mais científica do que estamos discutindo e perceberá que o autor, a despeito de defender o fim do preconceito em relação às variantes não cultas da língua, expressa-se perfeitamente na norma padrão. Que é excelente para a escrita, mas péssima para contar piadas para os amigos no barzinho da esquina.

Amâncio Siqueira

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