terça-feira, 13 de abril de 2010

De vítimas culpadas e culpados vitimados


“Então parece que 1)Ratzinger estava bastante disposto a acertar as contas com padres que lhe dessem qualquer problema e 2)ele era bastante firme a respeito de um ponto crucial da doutrina: Pegue as crianças ainda novas. Diga a elas durante a infância que elas é que são as pecadoras. Incuta nelas o sentimento de culpa necessário. Isso não é de todo irrelevante para o nojento escândalo no qual o papa agora irremediavelmente mergulhou a igreja que lidera. Quase todo episódio desse show de horror envolveu crianças pequenas sendo seduzidas e molestadas em confessionários.”

Christopher Hitchens

Imagine por um momento que o chefe de estado de um país estrangeiro tome conhecimento de que seus embaixadores em nosso país têm praticado crimes encobertos pela imunidade diplomática de que gozam. Que os crimes são sequenciais e praticados contra as vítimas mais inocentes e indefesas. Que tais agentes estrangeiros se aproveitam mesmo da confiança que recebem dos nativos, e praticam seus crimes no momento em que cumprem suas funções diplomáticas. Tendo conhecimento de tudo isso, o grande líder estrangeiro não apenas não pune seus diplomatas e agentes, como dá-lhes seu perdão e os transfere para novas embaixadas, para terem um ambiente sem desconfianças, que lhes permita continuar suas práticas criminosas sem gerar constrangimentos para seu país. Imagine agora que nosso estado e nossa população calam-se ante tais crimes, e defendem a nação estrangeira que os praticou e os acobertou.
Agora pare o exercício mental: é desnecessário imaginar o que proponho, quando a realidade é mais escabrosa, vil, horrenda, dura e irreversível. Pois tudo isso ocorreu, nas mais diversas embaixadas do Vaticano no mundo. Em inúmeros casos, as vítimas eram não apenas crianças: eram surdas. Não bastassem as barreiras morais que as impediam de denunciar seus agressores, havia ainda barreiras físicas.
Recorda-me o caso da menina pernambucana de nove anos que, vítima de estupro, teve uma gravidez de gêmeos interrompida, pois, além de ser uma gravidez criminosa e indesejada, quase certamente causaria a morte da menina. Na época, o chefe da igreja católica em Recife/Olinda excomungou os médicos responsáveis pelo procedimento e a mãe da garota, que autorizou. Disse José Cardoso Sobrinho: “Esse padrasto cometeu um pecado gravíssimo. Agora, mais grave do que isso, sabe o que é? O aborto, eliminar uma vida inocente.” Na época, muitos espantaram sua postura, por não excomungar o padrasto, que cometeu o estupro. Hoje, tudo se inverte: causa estranheza que ele tenha tido a coragem de dizer que o estupro fora um “pecado gravíssimo”. Não tem medo o clérigo de ser excomungado, por pecadizar uma prática corriqueira de sua instituição? Esse cara merecia uma medalha, por ser tão moderno para os posicionamentos de sua igreja.
Criaturas assim continuam seu ministério nas mais diversas nações, causando destruição de personalidades em formação, interferindo nas leis, na educação, na cultura dos povos. Não basta seu empenho em impedir pesquisas científicas e conquistas sociais. Não basta seu poder de disseminar a discórdia, de difundir o preconceito, de cercear a racionalidade. Eles não querem apenas transformar sua doutrina em lei universal. Querem nossas crianças.
Buscam nas crianças os fiéis desajuizados do futuro. Querem incutir, desde a mais tenra idade, o pecado original. Sim, todos são pecadores, e cabe apenas a nós, com nosso imenso poder, perdoar seus pecados.
Todavia, o mais impressionante não é a inversão das vítimas em culpados: é a metamorfose de culpados em vítimas. A cada centena de novas vítimas descobertas, a cada nova dezena de representantes da igreja denunciados, a cada dúzia de cartas e documentos e solicitações e implorações ignoradas e espezinhadas por Ratzinger, um novo porta-voz do país estrangeiro que mais interfere em nossa soberania (e não falo dos Estados Unidos) vem a público comparar seu estado teocrático a vítimas do holocausto, ou afirmar que se trata de estratégias políticas para minar a autoridade desses animais sádicos e suas togas esvoaçantes. Talvez a palavra animal seja indecorosa, já que os pobres bichos nada têm que ver com tais selvagerias.
Fato importante: quanto mais católico o país, mais confiança os criminosos tinham para suas práticas criminosas. Os fatos se avolumam, mas os culpados ainda estão não apenas soltos, como pregando sua moral, seu deus que fecha os olhos para suas práticas criminosas, seus dogmas bárbaros, seus costumes atávicos.
Quanto será preciso ainda para que se dê um basta para tamanhos crimes?
Todos os que se calam diante de tamanha patifaria são também culpados. Todos os que ainda têm a cafajestice de defender Ratzinger e seu conluio de criminosos são também culpados. Esses, porém, só poderiam ter seu castigo no íntimo das consciências que não possuem. Se ao menos existisse o inferno em que acreditam...
Aos que praticaram os crimes, contudo, cabe a todo o mundo civilizado condenar. Até quando esperaremos que esses criminosos morram, para prestar contas ao seu deus que a tudo ignora? Há leis na Terra.
Que as leis humanas, por natureza falhas, condenem duramente os representantes da perfeita lei divina.


Amâncio Siqueira

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